Uma década depois da aprovação da lei do piso nacional do magistério, o governo do Rio Grande do Sul segue discutindo o assunto na Justiça e já responde a 90 mil ações de professores insatisfeitos. O passivo acumulado pelo Estado por nunca ter cumprido a regra à risca, segundo dados da Secretaria da Fazenda, chegou a R$ 22,1 bilhões em dezembro de 2017 – o equivalente a 15 folhas de pagamento do Executivo – e tem potencial para triplicar a dívida de precatórios.
O impasse começou em 2008, quando governos estaduais – incluindo a administração da então governadora Yeda Crusius (PSDB) – questionaram a constitucionalidade da medida no Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2011, a Corte validou a lei, mas o imbróglio jurídico continuou e, agora, se aproxima do fim.
Hoje, educadores de escolas públicas com contratos de 40 horas semanais não podem receber vencimento básico abaixo de R$ 2.455,35 no Brasil. No caso do Rio Grande do Sul, considerando a mesma carga horária, o básico inicial é de R$ 1.260,16.
Para que ninguém ganhe menos do que isso, o Estado paga um completivo mensal a 35,6% dos docentes. O problema é que a verba adicional não incide sobre o básico, como manda a lei.
A alternativa começou a ser praticada em 2012, na gestão de Tarso Genro (PT), e segue valendo no mandato de José Ivo Sartori (PMDB), sob a justificativa de que não há dinheiro suficiente para a adoção da regra de outra forma. Uma das explicações para isso, segundo o governo, é o formato do plano de carreira do magistério, de 1974.
Como o documento estabelece o vencimento básico inicial como referência para todas as etapas da vida docente (que se divide em seis níveis e seis classes), sempre que esse valor é reajustado, o aumento repercute na totalidade da folha – inclusive em aposentadorias, vantagens e gratificações. O impacto é bilionário.
Desde 2012, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) tenta convencer o Judiciário de que é inviável aplicar a lei do piso sobre a matriz do plano. O assunto foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e agora está no STF, ainda sem data prevista para julgamento. Enquanto isso, as 90 mil ações estão temporariamente suspensas.
— Todos nós concordamos que o professor deve ser bem remunerado, mas é preciso haver coerência entre as normas — sustenta a procuradora Luciane Fabbro, da PGE.
Secretário estadual da Educação, Ronald Krummenauer diz que, até o fim do ano, pretende colocar em discussão uma série de mudanças no sistema de ensino gaúcho, incluindo a atualização do plano de carreira. O texto nunca foi alterado por resistência dos professores, que temem perder direitos. Para Krummenauer, a questão é "mais ampla" e "precisa ser debatida por toda a sociedade".
— Com esse plano de carreira, nenhum governo vai conseguir pagar o piso. Se fosse possível, é óbvio que já estaria sendo pago há muito tempo, mas já tivemos governos do PSDB, do PT e agora do PMDB, e nenhum conseguiu. Que governador não gostaria de fazer isso? — questiona Krummenauer.
A vice-presidente do Cpers-Sindicato, Solange Carvalho, discorda. Na avaliação da dirigente sindical, "falta vontade política" aos governos, especialmente o de Sartori. Solange é uma das professoras que ingressou na Justiça contra o Estado e torce pelo desfecho favorável aos mestres. Ela afirma que a entidade não aceita discutir o plano de carreira com a atual gestão, por não confiar nos interlocutores e por temer o achatamento dos salários.
— Como vamos discutir plano de carreira com um governo que não paga nem a reposição da inflação? Acreditamos que a lei do piso pode ser cumprida, sim, desde que o governador priorize a educação. Educação não é gasto. É investimento — diz Solange.
A evolução do piso
O valor do piso é estabelecido anualmente pelo Ministério da Educação para professores da rede pública da Educação Básica com contrato de 40 horas semanais (dados em R$)
2009 950
2010 1.024,67
2011 1.187,14
2012 1.451
2013 1.567
2014 1.697
2015 1.917,78
2016 2.135,64
2017 2.298,80
2018 2.455,35
Quanto ganha um professor estadual
O vencimento básico inicial para profissionais com 40 horas semanais é de R$ 1.260,16 no RS, chegando a R$ 3.780,48 no topo da carreira. Considerando gratificações e vantagens, a remuneração média bruta, segundo a Secretaria Estadual da Fazenda, é de R$ 4.570, levando em conta ativos e inativos.
O que entra na conta
Além do vencimento básico, os professores do Estado têm direito a vantagens temporais, abono permanência, gratificação de difícil acesso, gratificação de unidocência (para regentes de classe), vale-refeição, vale-transporte e, no caso daqueles que ganham menos do que o piso, completivo mensal.
Uma polêmica de 10 anos
- A lei do piso nacional do magistério foi sancionada em 2008 e determinou que nenhum professor da rede pública da Educação Básica receberia vencimento básico inferior a R$ 950 por 40 horas semanais e que o valor seria reajustado anualmente. Hoje, o piso vale R$ 2.455,35 (variação de 158,46%).
- Sem recursos, governos estaduais (inclusive o RS) entraram com ações na Justiça alegando que a norma era inconstitucional. Em 2011, o STF validou a lei.
- Não há punição prevista para quem descumpre a regra, mas o passivo vai se acumulando e pode gerar problemas financeiros no futuro.
- No caso do RS, a discussão segue na Justiça e há cerca de 90 mil ações de professores suspensas, aguardando definição.
Por que a lei é descumprida
- O governo diz que não tem dinheiro para aplicar o piso sobre o vencimento básico dos professores, devido ao formato do plano de carreira do magistério.
- O plano tem seis níveis e seis classes, cujos valores são definidos a partir do vencimento básico inicial, de R$ 1.260,16 para 40 horas semanais.
- Sempre que o governo aumenta o valor inicial, gera um efeito-cascata em todos os demais níveis e classes, com repercussão na folha dos aposentados e nas gratificações e vantagens.
- Só em 2018, isso representaria aporte de R$ 5,6 bilhões (equivalente a quatro folhas mensais do Executivo).
- O plano de carreira é de 1974 e nunca foi atualizado, porque o Cpers-Sindicato teme a perda de direitos.
O imbróglio judicial
- Em 2011, o Ministério Público do RS (MP) ingressou com ação contra o Estado exigindo o cumprimento integral da norma.
- Em 2012, após acordo com o MP, o Estado passou a pagar completivo mensal aos professores, para que nenhum ganhasse menos do que o piso.
- Como esse adicional não altera o vencimento básico, a ação seguiu tramitando.
- Ainda em 2012, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ) determinou que o piso fosse pago sobre o vencimento básico, tendo como referência o plano de carreira do magistério.
- A Procuradoria-Geral do Estado (PGE) recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que era inviável aplicar a lei do piso, de 2008, sobre o plano de carreira, de 1974.
- Em 2017, o STJ acolheu parcialmente o recurso, mantendo a exigência de pagamento mas determinando que o TJ reexaminasse aplicação do piso sobre a matriz do plano de carreira.
- A PGE entrou com recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) por entender que a decisão do STJ deixou de fora alguns pontos, como a necessidade de previsão orçamentária.
- O recurso foi admitido em março deste ano e ainda não há data para exame no STF.
O tamanho do problema
- Dependendo do resultado da discussão jurídica, o passivo do Estado com os professores pode triplicar a dívida com precatórios, de R$ 12,3 bilhões.
- Precatórios são dívidas do Estado com pessoas e empresas e precisam ser quitados até 2024.
- As 90 mil ações de professores estão suspensas até que o impasse seja resolvido.
O completivo
Hoje, 57.786 educadores (35,6% da categoria) recebem o adicional. Em 2018, o custo previsto é cerca de R$ 260 milhões.