Com votação transferida para quarta-feira na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, o projeto que endurece as punições para o crime de abuso de autoridade é a polêmica da vez no Congresso. Relator da proposta, o senador Roberto Requião (PMDB-PR) diz que o objetivo é combater excessos, mas integrantes da Operação Lava-Jato identificam na iniciativa manobra para "calar de vez" a força-tarefa que revelou o maior escândalo de corrupção do país.
O texto lista condutas que devem ser criminalizadas. Entre elas, estão o uso da condução coercitiva "manifestamente descabida ou sem prévia intimação" e a divulgação, sem relação com provas, de gravações que exponham a intimidade de investigados ou acusados.
Leia mais
Advogado com clientes na Lava-Jato e procurador divergem sobre projeto
Lobão marca votação no Senado do abuso de autoridade para dia 26
CCJ do Senado inicia debate sobre abuso de autoridade em sessão esvaziada
Na versão original, o projeto foi apresentado em 2016 pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), mas o tema vem sendo discutido desde 2009, na esteira da Operação Satiagraha – que prendeu o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e outras 14 pessoas por suspeita de lavagem de dinheiro.
Alvo de pelo menos 12 inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF), Renan tentou levar o projeto a votação em diferentes momentos de 2016, mas acabou recuando diante da repercussão negativa. Setores do Judiciário e do Ministério Público classificaram as medidas sugeridas como "tentativas de intimidação".
Com o recuo, a matéria foi encaminhada à CCJ e, sob a relatoria de Requião, passou por mudanças, mas voltou a causar controvérsia. Para aplacar as críticas, o senador paranaense disse ter adotado sugestões enviadas pelo Ministério Público Federal (MPF) e ter consultado o juiz federal Sergio Moro, que teria aprovado o conteúdo. Na última quarta-feira, quando Requião leu seu parecer na CCJ, Moro publicou nota oficial desmentindo o relator e alertando para "o risco à independência judicial". No mesmo dia, o MPF também reagiu.
Em vídeo postado nas redes sociais, três procuradores da Lava-Jato pediram o apoio da população contra a proposta. Acompanhado de Deltan Dallagnol e Isabel Groba, Carlos Fernando Santos Lima disse que o "projeto promove uma verdadeira vingança contra a Lava-Jato".
– O que desejam é processar criminalmente o policial que os investiga, o procurador que os acusa e o juiz que os julga – declarou Lima.
Os pontos mais debatidos da proposta incluem a possibilidade de processar privadamente autoridades públicas e a criminalização da interpretação da lei, a chamada hermenêutica, por parte de magistrados (veja abaixo). A celeuma em torno desses temas levou ao adiamento da votação, à revelia do relator.
– Não há aqui um único artigo que se oponha à Lava-Jato. Estamos na tentativa de pôr ordem nessa bagunça – disse Requião na quarta-feira.
Ontem, Renan também subiu o tom. Em discurso na tribuna, falou sobre a existência de um "arrastão para desmoralizar homens públicos de bem" e condenou o teor do vídeo do MPF por entender que "deforma a realidade e confunde a população":
– Há um movimento direcionado para empurrar a representação popular para um gueto dos imorais, sob o aplauso dos inocentes, dos desinformados e da má-fé.
A saída para o impasse, na avaliação de Claudio Lamachia, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), é o diálogo. Lamachia lamenta o que chama de "radicalização do debate" e diz que a entidade promoverá audiência pública em busca de consenso.
– Esse tipo de discussão não pode ser movido por paixões. Criou-se uma polêmica absolutamente desnecessária. O fato é que não podemos debater esticando ainda mais a corda. É preciso dialogar – argumenta Lamachia.
O projeto
-Apresentado pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) em 2016, o projeto atualiza e amplia as punições para o crime de abuso de autoridade.
-Em razão das críticas e da repercussão negativa que teve, o texto foi alterado pelo relator, senador Roberto Requião (PMDB-PR).
-O parecer foi lido na última quarta-feira, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
-Com a nova controvérsia, houve pedido de vista coletivo, e a votação na CCJ foi transferida para a próxima quarta-feira.
O que diz
-O texto final apresentado por Requião tem 30 artigos definindo os crimes de abuso de autoridade. Exemplos de ações que serão punidas:
-Decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado "manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo".
-Fotografar ou filmar presos, internados, investigados, indiciados ou vítimas sem consentimento ou com o intuito de expor a pessoa e colocar algemas em preso quando não houver resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco.
-Divulgar gravação ou trecho sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada, ou ferindo honra ou a imagem do investigado ou acusado.
-Quem for condenado poderá sofrer as seguintes punições: obrigação de indenizar o dano causado, inabilitação para o exercício do cargo, mandato ou função pública pelo período de um a cinco anos ou perda do cargo.
-Se aprovada, a lei valerá para servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas, membros dos poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e dos tribunais e conselhos de Contas.
Pontos polêmicos
Processo privado contra juiz
-Se aprovada, a lei permitirá que qualquer pessoa que se sentir ofendida por uma autoridade pública possa processá-la privadamente.
-Para entidades como a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, consolida a possibilidade de "vingança privada" de investigados e criminosos contra aqueles que investigam e julgam.
Interpretação
-Outro ponto polêmico tem relação com a chamada hermenêutica, isto é, a interpretação da lei. Segundo o texto, "a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso".
-Os críticos argumentam que o critério é subjetivo, abrindo margem a questionamentos. Em nota, o juiz Sergio Moro classificou a redação como "imprecisa" e declarou que "persiste, com ela, o risco à independência judicial". Segundo Moro, "o juiz não pode ser punido por mera divergência na interpretação da lei".
Condução coercitiva
-O texto diz que será crime de abuso de autoridade se o magistrado decretar condução coercitiva "manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo". A prática ficou conhecida a partir da Lava-Jato e causou polêmica em 2016, ao ser usada com o ex-presidente Lula. Ele afirmou que, se tivesse sido intimado, teria comparecido.
-Quando a controvérsia veio à tona, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu nota defendendo a medida. Segundo o MPF, serve para evitar "a dissipação de provas ou tumulto na sua colheita, além de propiciar uma oportunidade segura para um possível depoimento".