Instituído em 1891, na primeira Constituição da República, o foro privilegiado protege hoje cerca de 22 mil autoridades e coloca em campos opostos o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto parlamentares tentam fazer prosperar manobras para dificultar eventuais punições, ministros da mais alta Corte do país defendem enxugamento na blindagem judicial. Dos políticos com mandato eletivo, apenas vereadores não desfrutam da prerrogativa de função. No total, 32 categorias – incluindo promotores e juízes de primeira instância – têm direito a só serem julgados em tribunais.
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Nos últimos dias, pelo menos dois membros do STF criticaram o expediente. Relator da Lava-Jato, o ministro Edson Fachin disse, na sexta-feira, que o foro privilegiado é "incompatível com o princípio republicano". Luís Roberto Barroso foi além. Em despacho enviado ao plenário do Supremo, afirmou que a regra atual é uma "perversão da Justiça" e que foi feita para não funcionar.
"O foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque dele resulta maior demora na tramitação dos processos e permite a manipulação da jurisdição do tribunal", escreveu o ministro.
As manifestações vieram na sequência de investida do senador Romero Jucá (PMDB-RR) para impedir que os presidentes da Câmara e do Senado fossem processados por atos anteriores ao mandato. Tanto Jucá quanto os atuais presidentes das duas casas do Congresso – Eunício Oliveira (PMDB-CE), no Senado, e Rodrigo Maia (DEM-RJ), na Câmara – são citados na Lava-Jato. A proposta recebeu o endosso de 29 senadores, mas acabou retirada após reação da opinião pública.
– As investigações do Ministério Público duram mais de dois anos. E o mandato dos presidentes dos poderes é de dois anos. Então não há objetivo de blindar ninguém – tentou justificar Jucá.
Para Barroso, é justamente a extensão do foro privilegiado o maior embargo à celeridade da Justiça no país. De acordo com o ministro, tramitam no STF 357 inquéritos e 103 ações penais somente contra parlamentares. Levantamento do projeto Supremo em Números, da Fundação Getulio Vargas, mostra que, de 2011 a março de 2016, apenas 0,74% dos réus com foro privilegiado foram condenados e 68% dos processos prescreveram. Em geral, a Corte demora 565 dias para receber uma denúncia, ante uma semana na primeira instância.
No despacho com críticas ao foro, Barroso examinava ação penal contra o atual prefeito de Cabo Frio (RJ), Marcos da Rocha Mendes, acusado de oferecer dinheiro e carne em troca de votos em 2008. Mendes respondia ao Tribunal Regional Eleitoral, mas, ao final do mandato, o processo desceu à primeira instância. O político, contudo, era suplente de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na Câmara e acabou herdando a cadeira de deputado após a cassação do titular. Com isso, a ação subiu para o Supremo. Em outubro passado, Mendes foi eleito prefeito novamente, caracterizando o que Barroso chama de "disfuncionalidade prática do foro".
Para o jurista Vladimir Passos de Freitas, presidente da Associação Internacional de Administração de Tribunais, o foro privilegiado criou um sistema de castas, garantindo tratamento desigual perante a lei. Freitas, que presidiu o Tribunal Regional Federal da 4º Região, em Porto Alegre, defende que a prerrogativa de foro só tenha validade para as atividades desempenhadas no exercício da função, tese semelhante à encampada pelo ministro Barroso.
– Qualquer crime está protegido pelo foro privilegiado. Se você brigar no seu condomínio e um vizinho que for promotor lhe der um soco, ele só poderá ser processado no Tribunal de Justiça. É um absurdo – reclama o jurista.
Quem tem direito ao benefício
Cargo – Foro
Presidente da República e vice-presidente – Supremo Tribunal Federal
Ministros do Supremo Tribunal Federal – Supremo Tribunal Federal
Deputados federais, senadores e ministros de Estado – Supremo Tribunal Federal
Procurador-geral da República e advogado- geral da União – Supremo Tribunal Federal
Ministros de tribunais superiores (STJ, TST, TSE, STM e TCU) – Supremo Tribunal Federal
Embaixadores – Supremo Tribunal Federal
Governadores – Superior Tribunal de Justiça
Desembargadores – Superior Tribunal de Justiça
Membros de tribunais de contas dos Estados – Superior Tribunal de Justiça
Membros de tribunais regionais federais, do Trabalho e Eleitorais – Superior Tribunal de Justiça
Conselhos de tribunais de contas dos municípios e agentes do Ministério Público que atuem em tribunais – Superior Tribunal de Justiça
Juízes federais, do Trabalho, militares e procuradores da República – Tribunais Regionais Federais
Juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais – Tribunal Superior Eleitoral
Juízes eleitorais – Tribunal Regional Eleitoral
Deputados estaduais, secretários de Estado e prefeitos – Tribunal de Justiça dos Estados
Juízes de Direito e promotores de Justiça – Tribunal de Justiça dos Estados