Eram quase 21h de sábado (5), véspera da eleição, e Maria do Rosário (PT) ainda não havia discursado no último evento de campanha no primeiro turno. Afônica após 232 compromissos em 45 dias, ela fez apenas um breve cumprimento à militância que se estendia por três quadras atrás do carro de som na Cidade Baixa.
A voz que escapou a Rosário na reta final não lhe faltou nas urnas. Com 26,27% dos votos, a candidata vai disputar o segundo turno da corrida à prefeitura de Porto Alegre. Seu adversário será o atual prefeito e postulante à reeleição, Sebastião Melo (MDB), que obteve 49,72% dos votos.
Ao lado da candidata a vice, Tamyres Filgueira (PSOL), e da cúpula do PT, Rosário comentou o resultado da eleição no início da noite deste domingo (6), no comitê central de campanha. Num pronunciamento de nove minutos, a petista disse que a mudança venceu em Porto Alegre e fez um aceno à Juliana Brizola (PDT), que ficou em terceiro lugar, com 19,69% dos votos.
— A partir desse momento, nossa prioridade é o diálogo, é a mão estendida, é o respeito ao programa de governo de Juliana Brizola, a responsabilidade diante das ideias de seu vice também, doutor Thiago, que fez um belíssimo trabalho nesse primeiro turno — afirmou a candidata.
Apelo
Antes de subir no caminhão de som para falar à multidão que a aguardava na frente do comitê, Rosário fez um apelo para reduzir a abstenção no segundo turno e cumprimentou Melo pela votação, mas salientou as diferenças que os separam.
— Faremos um debate sério, mas respeitosamente quero dizer que o atual prefeito não tem um projeto de futuro para a cidade. Nós temos. Nosso projeto está alinhado com a democracia, com a sustentabilidade e com a proteção das pessoas, para que nunca mais a cidade viva o negacionismo que viveu na pandemia, sem atenção às vacinas, ou o negacionismo que vive nesse momento na questão ambiental. É hora da ciência, da técnica e do amor humano — discursou.
Rosário votou pela manhã, às 8h40min e passou boa parte do dia dando entrevistas à imprensa. À tarde, se recolheu para aguardar o início da apuração. Vestindo calça jeans e blazer vermelho sobre uma camiseta branca, ela chegou ao comitê às 17h35min, quando a Justiça Eleitoral começava a divulgar as primeiras parciais da votação.
Pesquisas
Ao final, o escore eleitoral confirmou as expectativas do comando de campanha. Apesar do temor com o crescimento de Juliana Brizola (PDT) nas pesquisas, o comitê tinha confiança na força da esquerda na Capital, onde o piso da coalizão política que apoia Rosário jamais teve menos de 26% dos votos. Havia também a segurança de que as campanhas do PT sempre ganham tração às vésperas da eleição.
Essa crença foi fundamental para manter o planejamento diante da queda nas pesquisas. A petista saiu de 31% na primeira aferição do instituto Quaest, em 27 de agosto, para 24% em 17 de setembro e 22% em 5 de outubro. Abertas as urnas, teve 26% dos votos. Em contrapartida, Juliana começou com 11%, foi para 17% e depois para 20%. Na urna, obteve 19%.
A eventual migração de votos para a pedetista era o maior temor das lideranças petistas, sobretudo diante das projeções que mostravam Juliana como a única capaz de vencer Melo no segundo turno. Um dos momentos mais tensos foi justamente quando saiu a segunda pesquisa Quaest, registrando a perda de votos de Rosário para Juliana.
Dirigentes partidários e candidatos a vereador pressionaram a cúpula da campanha, pedindo ataques mais vigorosos a Melo, mas também a abertura de um flanco contra a pedetista. Houve discussões ásperas. Às reclamações, o grupo respondia que estava “operando por instrumentos”, em alusão às pesquisas qualitativas que norteavam as decisões.
Desde o início, a estratégia do PT foi alvo de contestações. A mais eloquente e repetida durante toda a eleição foi a escolha da candidata. Com rejeição elevada, principalmente pela histórica defesa dos direitos humanos, Rosário enfrentou muita resistência interna. A única alternativa oficial foi a deputada estadual Sofia Cavedon (PT), que logo desistiu da candidatura. Com Melo considerado favorito desde antes da enchente, ninguém quis arriscar o nome numa eleição dada como perdida.
Coalizão de esquerda
Rosário não se abalou. Reafirmou a candidatura e trabalhou para expandir o palanque. Pela primeira vez, o PT conseguiu liderar uma coalizão de esquerda, atraindo PC do B, PSOL, PV e Rede. O PSOL reivindicou a vice, indicando Tamyres, mas durante quase toda a campanha a principal figura política a acompanhar Rosário foi o ex-prefeito José Fortunati (PV).
— Precisamos alargar as nossas relações — vaticinava Fortunati já na convenção.
Para muitos petistas o vice ideal, Fortunati ajudou a quebrar rejeições em setores econômicos e religiosos. Ela própria católica atuante, Rosário fez questão de incorporar o tema à campanha, como forma de suavizar a imagem. Para tanto, passou a se identificar apenas como Maria e incorporou a palavra fé ao slogan da candidatura, “fé, união e reconstrução”, logo após a palavra aparecer com elevada frequência nas entrevistas com grupos focais.
Estratégia do PT
Até então, o PT planejava nacionalizar a disputa. A ideia era reproduzir na cidade a polarização entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu antecessor, Jair Bolsonaro, buscando sobretudo atrair o eleitor que havia dado a vitória ao petista nos dois turnos da eleição de 2022.
Rosário se apresentaria como a candidata de Lula, capaz de multiplicar na cidade programas populares como Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida e Farmácia Popular, além de atrair pesados investimentos federais.
A enchente de maio mudou tudo. O partido reformulou o plano de governo, investindo em propostas de habitação, drenagem, assistência social e desenvolvimento econômico. Ganharam espaço propostas como a recriação do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) e a manutenção do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) sob controle estatal.
Apesar do planejamento minucioso, a campanha enfrentou problemas. Agendas em bairros considerados redutos do petismo, como Bom Fim e Cidade Baixa, mobilizaram pouca gente. O foco passou a ser o eleitorado da periferia, com renda de até dois salários mínimos, de maior aderência aos programas sociais do governo federal. A tarifa zero no transporte público ganhou mais espaço no rol de promessas.
Na propaganda de rádio e TV, os programas dedicaram bastante tempo a apresentar a candidata, salientando sua origem como professora e a defesa dos direitos das crianças e das mulheres. Os comerciais também focaram na enchente, salientando a responsabilidade de Melo na proteção da cidade e acusando o prefeito de negligência na manutenção das casas de bombas.
Com Lula e Bolsonaro ausentes da eleição — o petista gravou apenas dois curtos pedidos de voto —, a campanha desistiu de tentar vincular Melo ao ex-presidente. As peças que mostravam os dois envolvidos em supostos casos de corrupção e negacionismo científico acabaram arquivadas após rejeição em grupos de teste.
Reta final
Na reta final, um comercial foi considerado decisivo. Ciente da rejeição elevada em função do rótulo de “defensora de bandidos” criado pelos adversários, Rosário explicou sua dedicação aos direitos humanos.
Concebido pela própria candidata e gravado de improviso, sem roteiro prévio, o vídeo fez sucesso nas redes sociais e foi saudado com efusão pelos aliados.
Levada ao ar na penúltima semana de campanha, a peça ajudou a devolver o PT ao segundo turno de uma eleição municipal em Porto Alegre, algo que não ocorria desde 2008, quando a própria Rosário concorreu.