Após a vitória de Lula, o plano de governo apresentado e as declarações públicas dadas na campanha dão os indícios do que se pode esperar a partir de agora.
Especialistas ouvidos por GZH avaliam os desafios e o que indicam as propostas prioritárias para educação, saúde, meio ambiente, atividade econômica e segurança pública.
SAÚDE
Urgência em encontrar fontes de financiamento para o SUS
Primeira área lembrada pelos brasileiros ao responder às pesquisas eleitorais, a saúde nem sempre revela idêntica importância na hora de consolidar a intenção nas urnas. Em 2022, com a influência ainda latente da pandemia de covid-19, isso mudou.
Passado o período dos embates, chegou a hora da ação. É o que diz o professor da UFRGS, epidemiologista e especialista em atenção primária Bruce Bartholow Duncan ao afirmar que o enfrentamento das doenças crônicas — que possuem lento desenvolvimento e longa duração, muitas sem cura — ganhou nova dimensão. Ele lembra que a covid-19 elevou a chamada carga dessas doenças (média entre mortalidade e comorbidade) no mundo, de 72% para 80%, em 2020.
— A covid-19, conforme apontam os artigos das principais revistas acadêmicas, aumentou em 60% o risco de diabetes e uma fração importante para várias doenças vasculares e que envolvem a circulação arterial. Então, é bastante possível que já estejamos diante de uma realidade em que, invariavelmente, a incidência delas provoque óbitos precoces e novos "tsunamis" de lotação em emergências, sem os devidos cuidados — alerta Duncan.
No país, informa, com diferenças entre os Estados, essa carga, utilizada como medição da incidência desde a década de 1990, chega próxima aos 75%. A boa notícia, antecipa o médico, é que o crescimento verificado desde 2015 está ligado ao envelhecimento da população e, no geral, o agravamento do quadro pode ser evitado com prevenção e tratamentos adequados. Por outro lado, demandam melhores níveis de investimento no setor.
Natan Katz, professor da UFRGS, epidemiologista e ex-secretário adjunto de Saúde de Porto Alegre, aponta que o financiamento público exigirá, logo na saída, planos mais enérgicos para, de fato, atingir as metas desejáveis. De acordo com o portal de transparência do ministério, atualmente, das despesas previstas em R$ 160,43 bilhões, o montante de R$ 117,64 bilhões foi executado, o que equivale a somente 3,48% dos gastos públicos totais.
Não adianta só gastar mais e gastar mal. Isso envolve todo um modelo de financiamento do SUS que não muda há décadas.
NATAN KATZ
Epidemiologista e ex-secretário adjunto de Saúde de Porto Alegre
Essa relação foi de 4,61%, em 2018, e foi elevada a 4,73%, em 2020, no auge da pandemia. Ou seja, além de insuficiente para contornar outra carência histórica, a tabela de reembolso dos serviços hospitalares contratados pela rede pública, será preciso, na avaliação de Katz, ampliar a eficiência da aplicação dos recursos.
Diante dos dados, encontrar um modelo de autofinanciamento mais moderno para o SUS, a fim de garantir que, ao menos, o dinheiro público aportado no setor seja maior do que o privado, é urgente, comenta Katz. Hoje, essa distribuição é inversa, lembra, sobretudo na atenção primária:
— Não adianta só gastar mais e gastar mal. Isso envolve todo um modelo de financiamento do SUS que não muda há décadas.
O que pode acontecer
Conforme sugestão das principais propostas da campanha de Lula
- Ampliar acesso aos serviços públicos de saúde
- Provimento de médicos — Programa Mais Médicos
- Ampliação dos medicamentos pelo programa Farmácia Popular
- Mais saúde para grupos mais vulneráveis
- Mais investimentos no SUS
Conforme as sugestões dos especialistas ouvidos por GZH
- Dar conta da demanda para o enfrentamento de gargalos de assistência à saúde, tanto em consultas quanto em exames, consultas especializadas e atenção aos postos de saúde
- A carência de cirurgias e especialidades médicas, por exemplo, só pode ser resolvida por políticas públicas, que devem ser prioridade nos investimentos
- Retomar uma visão consistente de planejamento, evitando cortes de orçamento e apostando em estratégias de prevenção
- Garantir o orçamento necessário para o SUS, para que óbitos e cargas de doenças crônicas que foram estáveis até 2015 não aumentem
- Apostar em políticas de prevenção, que priorizem a informação sobre alimentos, por exemplo
EDUCAÇÃO
Plano de recuperação para o aprendizado é prioridade
Traçar um plano nacional para corrigir as defasagens de aprendizado concretizadas a partir da pandemia e coordenar as ações junto aos Estados e municípios será a tarefa prioritária. É o que apontam especialistas consultados por GZH. Só assim será possível recolocar o setor nos trilhos.
O problema, explica a professora do Insper e secretária de Desenvolvimento Social de São Paulo, Laura Muller Machado, é que durante o período eleitoral o tema não foi abordado diretamente. Dados do Insper para o Ensino Médio nacional, por exemplo, confirmam o temor. Indicam que, em modelo remoto, o aprendizado dos estudantes chegou somente a 17% do conteúdo esperado em Matemática e 38% em Língua Portuguesa no ano passado.
O mesmo estudo, assinado por Laura em coautoria com o especialista Ricardo Paes de Barros, crava com base em metodologia da Organização das Nações Unidas (ONU) que, salvo por recuperação das perdas educacionais, cada aluno prejudicado sofrerá corte de renda fixado entre R$ 20 mil e R$ 40 mil ao longo da vida laboral. Assim, o prejuízo já superaria os R$ 700 bilhões no Brasil.
— Há muito tempo temos o problema de não atingir as metas de aprendizado estipuladas pelo próprio Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). O primeiro ato seria fazer com que os brasileiros tenham um aprendizado efetivo ao longo da Educação Básica. Já no Ensino Médio reside outro agravante: além do baixo aprendizado, existe a evasão escolar. Precisamos determinar qual será a política de aprendizado e permanência na escola. O triste é que essa conversa em 2019 seria a mesma, com ou sem pandemia, agora, em 2022, é a mesma coisa só que muito pior — diz Laura.
O primeiro ato seria fazer com que os brasileiros tenham um aprendizado efetivo ao longo da Educação Básica. Já no Ensino Médio reside outro agravante: além do baixo aprendizado, existe a evasão escolar.
LAURA MULLER MACHADO
Secretária de Desenvolvimento Social de São Paulo
Priscila Cruz, presidente do Movimento Todos pela Educação, acrescenta que um plano coordenado entre os entes da federação traria, inclusive, um fator simbólico após o que ela considera como “quatro anos de hostilidade, com inúmeras trocas de ministérios e a prevalência de militares e grupos ideológicos no comando da pasta”:
— É preciso pacificar essa relação, porque não é possível construir um projeto enorme como é o da educação se não houver uma harmonia entre os entes.
O segundo aspecto, afirma Priscila, envolve a reorganização do Ministério da Educação (MEC). De acordo com o portal de transparência, as despesas previstas para o MEC somam R$ 159,58 bilhões e as executadas ficam em 3,12% dos gastos públicos.
Uma pesquisa do Todos pela Educação mostra que, a partir do último quadrimestre de 2021, as destinações à Educação Básica sofreram os maiores cortes de pagamentos (77%) e obtiveram as menores taxas de empenho (93%), na comparação com o Ensino Superior e o Profissional. Garantir às crianças de zero a seis anos o desenvolvimento social e cognitivo, avalia, é o que “mais trará retorno para os indivíduos e para o país”.
O que pode acontecer
Conforme sugestão das principais propostas da campanha de Lula
- Ampliação do acesso dos jovens ao Ensino Superior
- Bolsa Permanência para estudantes de baixa renda nas universidades
- Ampliação do regime de cotas
- Creches em tempo integral
- Retomada das metas do Plano Nacional de Educação
Conforme as sugestões dos especialistas ouvidos por GZH
- Elaborar um plano nacional que envolva Estados e municípios na recuperação das perdas de aprendizagem acumuladas durante a pandemia, além de pacificar as relações entre o ministério e os agentes da educação e observar casos bem sucedidos de educação em Estados e municípios que se destacam
- Ampliar a carga horária durante o processo de resgate do aprendizado pode ser uma maneira de introduzir o ensino de tempo integral
- Reestruturação do MEC e do orçamento para mapear condições específicas de cada estudante e qualificar os professores
- Recomposição dos investimentos na Educação Básica e rever a política de formação EAD para professores de pedagogia
MEIO AMBIENTE
Ministério para povos originários pode ser o diferencial do novo governo
Em um dos debates do segundo turno, Lula anunciou que fará um ministério para os povos originários. Desde então, a promessa aguça as expectativas de ambientalistas. Coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Mariana Mota explica que, além de um ato simbólico, a medida preenche a lacuna da falta de reconhecimento de “direitos legítimos dessa população”:
— A preservação do meio ambiente anda junto à defesa dos povos originários, porque eles defendem a área onde vivem.
Ao destacar essa proposta, Mariana faz um diagnóstico do setor nos últimos anos que começa, segundo ela, pelo enfraquecimento de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Fundação Nacional do Índio (Funai). A especialista constata a redução da fiscalização e, sobretudo, de aplicação de multas. O resultado: um aumento de 75% nas taxas de desmatamento e 218% nos focos de incêndio florestal no período.
Professor e diretor do Instituto do Meio Ambiente da PUCRS, Nelson Fontoura acrescenta que a contribuição fundamental seria a realização de um censo ambiental periódico, a exemplo do que já é feito para avaliar questões demográficas. A medida, comenta, ofereceria melhor baliza aos recursos necessários para atenuar o ciclo de aquecimento global que impacta a biodiversidade do país e do planeta.
Heverton Lacerda, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), destaca que o novo presidente deverá retomar o cumprimento de metas de redução de emissão de gases do efeito estufa e voltar às mesas internacionais sobre a nova economia verde. Outro tema apontado é a volta da escolha democrática do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão que participa da tomada de decisões no setor e que passou a ser constituído por sorteio.
O que pode acontecer
Conforme as principais propostas da campanha
- Criação do ministério dos povos originários
- Fortalecimento das instituições
- Combate à mineração ilegal
- Cumprimento de metas de redução de emissão de gás carbônico
- Políticas públicas para a preservação da biodiversidade
As sugestões dos ambientalistas
- Retomar o processo de demarcação de terras indígenas
- Fortalecer as instituições para cumprimento da legislação ambiental
- Liberar o fundo da floresta amazônica que possui R$ 2,9 bilhões paralisados
- Cumprir e ampliar metas de redução de emissão de gás carbônico
- Retomar incentivo à agricultura familiar e reduzir agrotóxicos
CRESCIMENTO E EMPREGOS
Investimentos públicos e acesso ao crédito são apostas para a economia
Área da qual dependem as execuções das demais propostas do novo governo, a política econômica ficou relegada às sombras no período eleitoral. No entanto, com base nos planos de governo e no histórico de Lula, é possível projetar as principais linhas do mandato nesse campo.
O documento eleitoral petista sinaliza caminhos. Elevação de investimentos públicos, propulsão do consumo das famílias com subsídio e facilidade ao crédito, além de linhas específicas para empresas e setores despontam como apostas para “barrar a decomposição das condições de vida da população, o desemprego e a subutilização da força de trabalho”. Entre as ideias apresentadas por Lula, o compromisso prioritário, diz o plano, é com “a justiça social e recolocar os pobres e os trabalhadores no orçamento”.
Por isso, prosseguir com reajuste nos programas de assistência à renda, ainda que isso signifique extrapolar o orçamento, é alternativa. E é nesse ponto que começam os problemas, segundo economistas ouvidos por GZH.
No próximo exercício, já há estimativa de déficits bilionários em razão da falta de previsão orçamentária para arcar com o reajuste desse benefício em 2023. Mais do que romper com o principal balizador da política fiscal brasileira, esse fator indica o abandono do teto de gastos, aponta o professor da UFRGS Marcelo Portugal, ao lembrar o atual valor do Auxílio Brasil (R$ 600).
Doutor em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), Mauro Rochlin comenta que, para se pensar em crescimento e geração de empregos, antes será preciso arrumar a casa. E isso demanda saber com urgência qual a nova regra fiscal.
Outra preocupação, desta vez do pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre), Samuel Pessôa, é com os estímulos ao crescimento. Isso porque a gestão anterior de Lula foi primeiro marcada por austeridade fiscal — o mais indicado agora.
O que pode acontecer
Conforme as principais propostas da campanha
- Fortalecer o ambiente econômico com reajustes anuais acima da inflação no salário mínimo
- Nova legislação trabalhista
- Investimentos públicos e privados em infraestrutura
- Mobilizar as potencialidades da economia via consumo, crédito, gastos sociais das estatais e compras governamentais
- Renegociar dívidas de famílias e empresas por meio de bancos públicos e subsídios privados
As sugestões dos economistas
- Definir a regra fiscal
- Evitar medidas populistas que não prevejam receitas
- Controlar os gastos públicos
- Mais flexibilidade de leis trabalhistas e avançar nas demais reformas
- Não descuidar da política monetária e do combate à inflação
SEGURANÇA E ARMAS
Retomada do Ministério da Segurança é aposta
O debate sobre a segurança pública foi dominado pelo tema de liberação ou não de armas à população e a comparação de dados sobre redução da violência nas gestões de Lula e Bolsonaro. Agora eleito, Lula deverá reativar o Ministério da Segurança, o que apartaria a coordenação do arcabouço do Ministério da Justiça.
A medida, comenta David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, retomaria a capacidade de articulação de todo o sistema, que acabou relegado ao segundo plano na gestão passada.
— A proposta do ministério que existiu com Michel Temer (MDB) foi uma experiência interessante. Reeditá-lo traria qualificação aos policiais, que naquela ocasião puderam acessar bolsas e profissionalizou as polícias — comenta.
Segundo ele, desde 2017, ano do pico da taxa de homicídios, em razão de acirramento, há uma alteração do foco da criminalidade e uma migração para os meios digitais. O fator, explica, demandará investimentos mais qualificados para evitar também os crescentes crimes patrimoniais e na internet.
A violência sexual no país já registra mais de 60 mil casos por ano e é um dos aspectos em destaque no plano de governo apresentado por Lula. Marques afirma que a revisão da situação do armamento para a população, com condições mais efetivas de controle dos equipamentos e munições trazidos e liberados no país, será uma tarefa importante para o futuro.
O cientista social especialista em segurança pública Charles Kieling concorda e lembra que a temática está ligada a uma tentativa de aproximar o Brasil da situação dos Estados Unidos, um país em que a Constituição indica que o cidadão é responsável pela própria vida. Diferentemente de lá, por aqui isso é atribuição do Estado e, portanto, de políticas públicas.
Não cabe ao cidadão usar da força de armas e da quantidade de munições, conforme defendido pelo governo que agora termina. O presidente abriu um precedente para arsenais que simbolicamente autorizam a pessoa a se interpor ao Estado.
CHARLES KIELING
Cientista social especialista em segurança pública
— Ao romper com isso, feriu-se também a nossa constituição, pois não cabe ao cidadão usar da força de armas e da quantidade de munições, conforme defendido pelo governo que agora termina. O presidente abriu um precedente para arsenais que simbolicamente autorizam a pessoa a se interpor ao Estado — declara, ao recortar o recente confronto de Roberto Jefferson (PTB), que lançou granadas e tiros de fuzil contra policiais federais no domingo, dia 23, durante o cumprimento de um mandado de prisão contra Jefferson.
Ele lembra que, durante os governos petistas, o que ficou conhecido como “Campanha do Desarmamento” tinha, na verdade, justamente o objetivo de dar maior controle ao Estado sobre a circulação de armas. Kieling ainda aponta para a vulnerabilidade das fronteiras para impedir o acesso a armas e equipamentos por parte das facções. Em sua avaliação, um ministério ou secretaria especial deveria ser criado para tratar desse tema em específico.
O que pode acontecer
Conforme as principais propostas da campanha
- Recriação do Ministério da Segurança Pública
- A segurança permeada por políticas públicas pautadas pela valorização da vida e da integridade física
- Ampliar a atenção às vítimas de crimes contra mulheres, juventude negra e população LGBTQIA+
- Política coordenada no país para a redução de homicídios, envolvendo investimento, tecnologia, enfrentamento do crime organizado e das milícias
- Retomada do Estatuto do Desarmamento, que restringiu o acesso à compra de armamento durante os governos petistas
As sugestões dos economistas
- Retomar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e bolsas de estudos para formação de policiais
- Investimentos em tecnologia e formação para o combate aos crimes digitais
- Ações de enfrentamento aos crescentes crimes sexuais e de gênero com mapeamento de dados de incidência no país
- Criação de secretaria especial com atuação sobre as zonas de fronteira a fim de dificultar acesso das facções às armas e equipamentos
- Revisão da flexibilidade para compra de armas e munições e maior controle do Estado sobre o tema