São falsos os conteúdos que circulam na internet com afirmações de que um algoritmo teria fraudado as urnas em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na totalização dos votos do primeiro turno das eleições. Um tuíte afirma que a cada 12% das urnas eletrônicas totalizadas, Lula subiu 1% e o presidente Jair Bolsonaro (PL) desceu 0,5%, enquanto um conteúdo em vídeo faz a mesma demonstração falsa a partir de um gráfico produzido no Excel. Porém, os números usados nos conteúdos não correspondem aos da apuração dos votos em tempo real do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Especialistas ouvidos pelo Comprova, além de reportagens já publicadas sobre o tema, demonstram que a contagem de votos independe de regras de estatística e está condicionada à ordem de chegada dos votos e divulgação de cada seção eleitoral apurada.
Conteúdo investigado: vídeo que circula nas mídias sociais diz que um gráfico elaborado no Excel prova a existência de um algoritmo que fraudou as urnas, favorecendo Lula em detrimento de Bolsonaro no 1º turno das eleições.
Onde foi publicado: o conteúdo circulou no Whatsapp e informações extraídas dele foram compartilhadas por usuários do Twitter, Instagram e TikTok.
Conclusão do Comprova: é falso que os percentuais de votos dos candidatos Jair Messias Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) variaram de forma programada à medida em que os resultados das urnas foram sendo totalizados no primeiro turno.
Em nota enviada para a equipe do Comprova, a área técnica do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável pelo sistema de totalização, explicou que todos os Boletins de Urna (BUs) – documento que traz o resultado impresso da votação de cada seção eleitoral – foram processados à medida em que os dados chegaram à sede do tribunal, em Brasília. Os BUs foram colocados em fila e sua computação ocorreu conforme a ordem de chegada.
“Não há, portanto, nenhum algoritmo programado para ditar a percentagem atingida por cada candidatura ao longo do processo de soma dos votos”, destaca a nota. Especialistas ouvidos pelo Comprova também refutaram a possibilidade de fraude.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: uma das plataformas em que o vídeo circulou foi o Whatsapp, que não permite dimensionar o alcance do conteúdo. Já um dos tuítes que compartilhou informações falsas contidas no vídeo checado foi publicado no dia 3 de outubro e, até o dia 11, obteve 1.137 curtidas, 27 comentários e 378 retuítes. De acordo com o portal UOL, um post publicado no perfil da ex-secretária de Cultura Regina Duarte com os mesmo argumentos do vídeo checado teve 923 mil visualizações em menos de 24 horas.
O que diz o autor da publicação: a pessoa que apresenta o vídeo se autodenomina Flávio Peres. Ela não foi encontrada pela equipe do Comprova para prestar informações sobre o conteúdo.
Como verificamos: uma busca na internet pelo termo “Flavio Peres” retornou o perfil do vice-prefeito do município de Garça (SP), que ainda não respondeu o contato do Comprova, e de um coach, que alegou não ser o autor do vídeo: “não tenho nada a ver com esse vídeo. Por infeliz coincidência essa pessoa tem o mesmo nome que eu”.
Uma usuária do Twitter, que compartilhou o vídeo, escreveu que Flávio Peres seria um major, membro da área técnica do setor de inteligência do Exército. A equipe do Comprova tentou falar com ela, mas o perfil não permite o envio de mensagens privadas. Mandamos e-mail para o Exército para checar se o autor do vídeo faz parte do quadro da instituição, mas, até o momento, não tivemos resposta.
Outro perfil do Twitter que compartilhou a publicação disse não ter o contato de Flávio Peres e explicou que recebeu o vídeo por um grupo do Whatsapp.
Cabe destacar que o conteúdo do vídeo circulou em outros formatos. Capturas de tela de uma conversa em um aplicativo de mensagens, sobre a suposta fraude na apuração das eleições, apresentam os mesmo argumentos do autor do vídeo, mas a análise dos dados é atribuída a uma outra pessoa chamada Hebérbio.
A equipe do Comprova procurou matérias jornalísticas de cobertura das eleições e vídeos que transmitiram o resultado do pleito em tempo real para comparar com os números apresentados no vídeo alvo da checagem.
Nessa busca, usamos como fonte uma matéria publicada no G1, no dia 2 de outubro de 2022, às 20h49, e uma transmissão ao vivo do resultado das eleições feita pelo canal do Youtube Prof Silvester Geografia. Ambos utilizaram dados disponibilizados, em tempo real, pelo TSE no dia da eleição.
Entramos em contato com o TSE, órgão responsável pelas eleições no país, para solicitar dados e questionar sobre a suposta existência de um algoritmo que teria programado a totalização dos votos.
O Comprova ainda conversou com o professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Marcos Prates, com o estatístico da escola ASN Rocks Carlos Miranda e com o professor doutor no Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais (PCS) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP) Bruno de Carvalho Albertini.
Falta de rigor no tratamento dos números
A partir de conversas com especialistas e consulta à bibliografia sobre visualização de dados, o Comprova constatou que alguns requisitos de rigor e de método científico necessários para o trabalho com dados numéricos não tiveram a devida atenção do autor da publicação. Ausência da fonte de dados, arredondamentos de valores decimais para inteiros e recorte da série temporal são aspectos que colocam em xeque o teor do vídeo.
De acordo com o autor da publicação alvo dessa checagem, “o período de apuração sofreu alteração a cada 12% de votos apurados”. Vale destacar aqui que ele confunde os conceitos de apuração e totalização. Lucas Lago, pesquisador no CEST-USP, explicou a diferença em checagem sobre o mesmo conteúdo feita pela AFP. Apuração é a etapa que ocorre dentro das urnas no encerramento da votação da seção eleitoral e gera como resultado o Boletim de Urna. Totalização é a soma dos Boletins de Urna divulgada pelo TSE.
Para provar seu ponto de vista, o autor cria uma tabela que mostra a evolução percentual dos candidatos Bolsonaro e Lula quando 12%, 24%, 36%, 48%, 60%, 72%, 84% e 96% das urnas haviam sido totalizadas.
Ao comparar a performance dos presidenciáveis em cada um desses momentos, o autor alega ter notado um movimento “programado” para cada candidato. Bolsonaro diminui linearmente 0,5% a cada período, enquanto Lula cresceu 1%. Para o autor do vídeo, essa seria a prova de que haveria um algoritmo que beneficiou Lula.
No entanto, o autor não aponta as fontes dos dados utilizados na análise e eles não condizem com informações de fontes oficiais. Apesar de o TSE ainda não ter disponibilizado a planilha da totalização minuto a minuto do 1º turno, foi possível contestar os dados do vídeo com o da apuração feita pelo G1 e por transmissão ao vivo do YouTube. Ambos utilizaram dados disponibilizados, em tempo real, pelo TSE no dia da eleição.
O que chama a atenção ao comparar a primeira tabela com a segunda e com a terceira é o fato da primeira apresentar dados arredondados. “Mudar números que variam na escala de decimais para inteiros gera uma distorção enorme”, explica o professor do Departamento de Estatística da UFMG Marcos Prates.
Em momento algum, Lula obteve 49% dos votos, como sugere o vídeo desinformativo. O percentual máximo atingido pelo candidato petista foi 48,43%. “Eu imagino que no meio do caminho ele [autor do vídeo] fez isso [arredondou os valores] várias vezes de acordo com a conveniência”, avalia Prates.
Mesmo que os números do vídeo alvo da checagem estivessem corretos, o professor não vê indício de fraude em uma oscilação linear. “O fato de observar um crescimento linear ou um decaimento linear num sistema de apuração, a meu ver, não determina que existe um algoritmo por trás”.
No livro How Charts Lie (Como gráficos mentem, em tradução livre), o jornalista e professor da Universidade de Miami (EUA) Alberto Cairo descreve diferentes maneiras de enganar, propositalmente ou não, com números. Uma delas é mostrar apenas uma parte do todo e assumir a parte como a realidade dos fatos.
O autor do vídeo checado faz um recorte dos dados. Ele toma como ponto de partida para sua análise o momento em que 12% das urnas haviam sido apuradas e não o início da apuração em si. Isso faz com que não se percebam nuances no comportamento dos números.
Ao olhar para a apuração dos votos a partir de uma perspectiva mais ampla, tendo como ponto de partida 0,09% das urnas apuradas, percebe-se que os dados oscilaram de diferentes maneiras e não só de forma linear como o autor do vídeo argumenta.
O portal G1 fez um gráfico, com dados do TSE, que permite visualizar a oscilação dos candidatos Bolsonaro e Lula ao longo do tempo.
Logo no início, quando apenas 0,09% do total de urnas tinham sido apuradas, Lula estava à frente na disputa presidencial. O petista tinha 51,18% e Bolsonaro 36.73%. Imediatamente, antes mesmo de se atingir o percentual de 1% da apuração, Lula foi ultrapassado por Bolsonaro, que se manteve na primeira posição até o percentual de 70% da totalização.
Estatística
De acordo com o estatístico Carlos Miranda, que atua em empresa privada de tecnologia, o vídeo ou teoria não produzem embasamento estatístico algum.
Ele diz que o fato de o TSE realizar a apuração de forma não sequencial em relação às urnas acaba levando a esse tipo de pensamento para determinados grupos do Brasil.
Muitas vezes a contagem das urnas já começa em 3%, 5%. Depois, a apuração aparece em 12% ou 14%. Tudo isso é bem comum, segundo Miranda.
Para ele, trata-se apenas de uma contagem simples de votos em urnas de diferentes localidades e que ditam o ritmo de contagem de votação recebida por cada candidato. Sendo que, no final, a apuração é concluída com o número de votos determinado pelos eleitores para cada candidato.
“Devemos sempre atentar sobre qual urna está sendo contada primeiro. No final, não importa quem estava na frente ou atrás. O resultado acontece a partir do total de votos já registrados antes pelo eleitor. Não há movimento de votos a partir de regras estatísticas”.
Outro exemplo citado por ele é no caso de a totalização envolver, hipoteticamente, apenas duas cidades: “se a contagem inicia com os votos da primeira cidade e nela todos os eleitores votam em apenas um candidato, só aí já vai estar 100 a 0”, exemplifica.
Tecnologia e apuração
Para o professor Bruno de Carvalho Albertini, da EPUSP, o vídeo em questão é falacioso.
Ele chama atenção para a ordem de totalização do Registro Digital do Voto (RDV), que pode contar com celeridade ou não de envio, bem como congestionamento das redes que o TSE usa.
“Assim que o RDV chega no servidor é processado e mostrado na totalização. Sendo assim, não faz sentido alegar fraude baseando-se na ordem ou evolução da totalização. De fato, qualquer pessoa pode fotografar os Boletins de Urnas físicos impressos pela urna e totalizar por meios próprios, ou pegar os BUs online do TSE e fazer o mesmo”, explica Albertini.
Apuração e geografia
Uma apuração do Comprova em julho cita uma reportagem do TSE em que o tribunal também aborda o andamento da totalização dos votos de acordo com a posição geográfica das cidades. Em 2021, o órgão desmentiu o boato de que as urnas eletrônicas teriam sido fraudadas nas eleições de 2014. A situação daquela época pode servir de exemplo no cenário atual, uma vez que, na apuração de votos do 1º turno deste ano, o candidato Bolsonaro ficou à frente de Lula até 70% do total de urnas apuradas. Há oito anos, Dilma ultrapassou Aécio quando a totalização chegou a 88,9%.
Conforme divulgou o TSE na reportagem, naquele ano, técnicos do PSDB e do tribunal analisaram a curva de desempenho dos candidatos Aécio e Dilma ao longo da apuração e constataram que ela demonstrava a concorrência acirrada na eleição de 2014, em que durante muito tempo os votos eram disputados um a um.
Enquanto os votos apurados vinham predominantemente dos estados das regiões Sul e Sudeste, onde Aécio Neves venceu, a apuração indicava a vitória parcial do candidato tucano. Mas, à medida em que começaram a ser computados os votos dos estados do Norte e do Nordeste, onde Dilma Rousseff obteve ampla vitória, esse placar foi mudando até que se consolidou numa vitória apertada da petista, com uma diferença de apenas 3,28 pontos percentuais.
Por que investigamos: o Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais sobre a pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições presidenciais. Conteúdos falsos ou enganosos que também envolvem o sistema de votação e de totalização podem influenciar na compreensão da realidade e segurança do sistema.
O Comprova busca colaborar para que o eleitor tenha acesso a conceitos fiéis à verdade e que contribuem para um correto entendimento a respeito do processo de escolha de candidatos e a apuração de votos.
Outras checagens sobre o tema: a AFP, o UOL e o site boatos.org verificaram que é falso o conteúdo atribuindo favorecimento a Lula na totalização dos votos nas eleições do 1º turno no Brasil. A Justiça Eleitoral também desmentiu o boato.
Em verificações anteriores que citam o candidato Lula, o Comprova mostrou ser falso conteúdo que afirmava que eleitores de Lula teriam dia diferente para votação; que não há registro de Lula ter dito que ‘enfermeiros só servem para servir sopa’. Também apurou e concluiu como enganoso vídeo dizendo que Lula pode perder candidatura por conta da Lava Jato.