— Lembro de chegar, ser direcionada para a cabine, votar, ganhar o comprovante de voto e ser tratada com o maior respeito.
O relato, que poderia ser de qualquer cidadã brasileira descrevendo sua participação em uma eleição, ganha contornos de relevância ao partir de Ofélia Schnneider, 19 anos, uma das 37.646 pessoas que já procuraram a Justiça Eleitoral em todo o país para incluir o nome social no título de eleitor.
Esse direito, garantido desde as eleições de 2018, assegura que as pessoas trans sejam identificadas pelo nome como são socialmente reconhecidas ao participarem das eleições. Além de evitar constrangimentos, o procedimento confere tratamento digno a elas no momento em que decidem escolher seus representantes.
Em todo o Brasil, a quantidade de pessoas que solicitaram a inclusão do nome social no título de eleitor cresceu mais de 370% desde 2018, quando 7.945 haviam requisitado a alteração. Na comparação com a eleição de 2020, com 10.450 pedidos, o número subiu 260%.
No Rio Grande do Sul, esse direito já foi exercido por 1.812 pessoas. No Estado, o aumento da procura pelo serviço é superior a 240% dede 2020, quando eram 531 pedidos, e 340% ante 2018, com 413 registros.
Gaúcha de Sapiranga, Ofélia é estudante de Psicologia e solicitou a alteração antes de se mudar para São Paulo (SP), de onde conversou com a reportagem por videochamada. Ela fez a solicitação à Justiça Eleitoral de forma presencial, mas, atualmente, o pedido já pode ser encaminhado pela internet (veja detalhes abaixo).
— Todas nós, as pessoas trans, temos esse receio de sofrer preconceito, de sermos lidas como alguém barraqueira, ou algo do tipo. Mas estamos em busca de um direito básico comum, que todo ser humano deve ter, que são seus documentos — relata a estudante, incentivando outras pessoas trans a buscarem a alteração.
Para o ativista Caio de Souza Tedesco, do Coletivo Homens Trans em Ação, o crescimento das solicitações pelo uso do nome social representa uma conquista de acesso à cidadania e à humanização por parte das pessoas trans.
— Esse aumento na procura indica uma coragem de estarmos enfrentando uma cultura transfóbica e, ao mesmo tempo, buscando transformar essa cultura e esse contexto social, a partir do exercício da cidadania, do exercício do voto — ressalta Tedesco, doutorando em História pela Universidade Federal do RS (UFRGS).
Ele pondera, entretanto, que ainda é necessária uma divulgação mais efetiva a respeito de como as pessoas trans podem efetivar a alteração nos documentos
— Boa parte da população trans não tem acesso à educação formal, ao mercado de trabalho formal. Isso empurra a pessoa para um lugar de exclusão. Precisamos de um trabalho de conscientização e de incentivo ao exercício da cidadania para que as pessoas possam votar e participar da vida política de forma mais efetiva — destaca o transativista.
Ofélia faz coro e menciona que o acesso à informação é fundamental:
— Sinto que para algumas pessoas, principalmente para quem é mais do Interior ou tem pouco acesso à informação, acaba não tendo acesso a seus direitos. São poucas as pessoas que falam em políticas públicas voltadas para a gente.
O prazo para a inclusão do nome social no título para a eleição deste ano terminou em 4 de maio, mas deverá ser reaberto para o processo eleitoral de 2024.
Avanços necessários
Além da possibilidade de inserir o nome social no título de eleitor, travestis e transexuais maiores de 18 anos podem optar pela retificação do registro civil. Nesse caso, o nome registrado na Certidão de Nascimento e nos demais documentos é substituído pelo qual a pessoa se identifica.
Ainda assim, há lacunas na promoção integral dos direitos dessa população. Um desses casos é o da analista de dados Gabriela Rodrigues Petry, 27 anos. A porto-alegrense obteve a retificação de seus documentos, mas, no título eleitor em formato virtual (e-título), consta uma fotografia referente ao período anterior à transição.
Gabriela conta que não é possível alterar a imagem no próprio aplicativo e que chegou a procurar a Justiça Eleitoral para efetuar a alteração, mas não obteve sucesso:
— Consegui fazer a atualização do nome, mas ficou na base de dados uma foto antiga, de antes da minha transição. Ficou parecendo a foto de outra pessoa, praticamente. Liguei para o tribunal e me informaram que, por causa da pandemia, não está ocorrendo atendimento presencial e não seria possível atualizar a foto.
De acordo com Gabriela, outras pessoas trans conhecidas enfrentam problema semelhante:
— É uma questão que pode causar constrangimento. A pessoa que estiver como mesária vai ver minha foto antiga com o nome atual, o que vai ficar desconexo. Pode parecer algum problema de cadastro e até prejudicar o direito ao voto.
Como solicitar a inclusão do nome social no título de eleitor
Para inserir o nome social no título de eleitor basta acessar o portal Título Net, da Justiça Eleitoral, preencher o requerimento com os documentos necessários e enviar para a zona eleitoral respectiva. A apresentação de documento anterior em que conste o nome social é opcional, pois, para a Justiça Eleitoral, a autodeclaração é suficiente. O prazo será reaberto para o cadastramento visando à eleição de 2024.
Como solicitar a retificação de documentos
Uma cartilha elaborada pelo coletivo Homens Trans em Ação explica o passo a passo: