Sentada na cadeira de rodas, na porta de casa, a professora aposentada Lucia Albuquerque de Andrade observa a escadaria do Colégio Estadual Dom João Becker. Vizinha à instituição do bairro Passo D’Areia há duas décadas, a educadora de 70 anos diz se sentir mais distante de sua condição de cidadã do que marcam os 20 metros que separam sua residência do acesso à escola onde está sua seção eleitoral:
— Me sinto uma brasileira inútil. Depreciada. Tenho problema nas pernas e não na mente. Humilhada. Fui carregada por cinco homens para poder votar.
O caso de Lúcia, carregada no colo por mesários e outros voluntários no pleito de 2018, é um exemplo de que a democracia não atingirá, em igualdade, todos os gaúchos nas eleições de 2020. Dados obtidos com exclusividade por GZH junto ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RS) apontam que 2.963 dos 8.177 locais de votação não são acessíveis a pessoas com dificuldades de locomoção, o que equivale a 36,2% do total.
O levantamento considera as condições mínimas de chegada e saída dos espaços, como a presença de rampas e de um banheiro com barras de apoio. As vistorias foram realizadas em todos os municípios do Estado, por chefes de cartório. A ampla maioria dos locais é composta por escolas públicas e privadas, além de associações de bairros e igrejas.
Segundo a coordenadora do Núcleo de Acessibilidade do Tribunal, Magda Stoll Andrade, a falta de estrutura não permite elevar a régua nas vistorias para considerar um local apto a pessoas com deficiência — com isso, não se pode levar em conta as exigências para obtenção da certificação ISO, estabelecida pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) como parâmetro ideal.
— É um mínimo, para que quem tenha mobilidade reduzida possa chegar ao local e votar. Significa que não tem degrau ou há possibilidade de colocar seções no térreo. Se fossemos analisar pelas exigências da ISO, teríamos muito poucos locais acessíveis — reitera a coordenadora.
No caso do colégio da zona norte da Capital, onde Lúcia é eleitora, o desafio começa na calçada, que não tem rebaixamento do meio-fio. Na sequência, são sete degraus de escada, sem rampa. Antes da porta de ferro do prédio público, outro degrau. De acordo com a direção, não há alunos cadeirantes matriculados no ano letivo vigente. Ainda segundo os docentes, já foi solicitada a adaptação da estrutura, porém a obra nunca foi realizada.
Em frente à escola, um banner cobre três janelas. O anúncio, com o logotipo do governo do Estado, é de uma reforma, entre os meses de janeiro e julho de 2019. A melhoria compreendeu cobertura, revestimentos das fachadas e esquadrias externas, além de restabelecimento de reserva de consumo d’água potável, itens listados na publicidade. O mesmo painel de propaganda não informa nenhuma iniciativa na área de acessibilidade. O investimento anunciado na intervenção foi de R$ 302 mil.
— Tenho opção de não votar, pois completei 70 anos. Mas não acho correto. Estou lúcida, sei o que eu quero. Pago imposto, tenho direito de votar. E é público, tem que oferecer condições a todos — reivindica a professora aposentada.
A Secretaria Estadual da Educação informa, em nota, que "o caso foi encaminhado para análise da 1ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), na tarde de 22 de outubro", dia em que a reportagem de GZH informou sobre a demanda da eleitora. O TRE reforça que a responsabilidade dos prédios é da administração pública ou privada.
A solução no caso de Lúcia seria encaminhá-la a outra instituição, o que desagrada a aposentada: com apenas 20% dos pulmões a pleno, ela teme maiores deslocamentos, especialmente em meio a pandemia do coronavírus.
"Perderam um eleitor"
Enquanto a pedagoga de 70 anos quer exercer seu direito no próximo 15 de novembro, outro porto-alegrense escolheu ficar de fora da escolha do próximo prefeito. Ex-morador do bairro Sarandi, também na Zona Norte, o metalúrgico aposentado Adriano Renê Bicca, 47 anos, cancelou seu título de eleitor. Ele rejeitou ser carregado, em uma das últimas eleições da qual participou, no início da década — diz não lembrar o ano com exatidão.
— Cansei de ir contra algo que era para ser normal, ter acesso à votação. É muito triste, é deprimente. Qual a razão de continuar votando então? Perderam um eleitor — desabafa.
O local no qual Bicca tinha sua seção eleitoral é a Escola Estadual de Ensino Fundamental Décio Martins Costa. A reportagem de GZH esteve no colégio na última sexta-feira (30). Visíveis desde o meio do quarteirão, os problemas de acesso ao espaço aparecem na estreita calçada, que conserva mato alto, lajes soltas e muitos buracos. No interior, uma rampa adicional foi construída no ano passado — a anterior, além de estreita, tem o pavimento irregular.
A vice-diretora Michelle Cauduro reclama que o terreno de terra alaga, e as poças d’água permanecem por dias no pátio. A falta de um muro também afeta a segurança da escola, em uma região conflagrada, segundo as professoras. A maioria das salas de aula fica no térreo. Mas no dia da eleição, algumas seções são instaladas na parte superior. Para chegar ao segundo andar, contudo, há somente escadas.
— Se o cadeirante vota na parte de cima, não tem acesso — complementa a vice-diretora.
A falta de acessibilidade afasta alunos cadeirantes: uma aluna deixou o colégio no último ano, com o argumento de ter de percorrer um caminho severamente degradado. Atualmente, dos cerca de 400 estudantes da instituição, apenas um é cadeirante. E se a aula é na sala do andar de cima, a turma toda precisa descer para um espaço inferior.
— Isso faz com que não tenhamos mais alunos cadeirantes. O último ano fica em uma sala de cima, e temos que transferir os alunos todos — afirma Ana Paula Linhares de Souza, monitora da escola.
Sobre o colégio Décio Martins Costa, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) afirma que vai avaliar o caso citado.
Rampa íngreme exige ajuda
Morador do Partenon, o empresário aposentado Luciano Bittencourt Ávila, 50 anos, vota no Colégio Marista Champagnat. Ele elogia o amplo estacionamento, com vagas direcionadas a pessoas com deficiência, e afirma haver rampas em todo o caminho. Mesmo assim, precisa de auxílio para chegar às salas.
— Tenho que levar alguém ou esperar que me empurrem para subir a rampa, que é muito íngreme — explica.
O Champagnat afirma, em nota, que "possui infraestrutura atualizada e renova constantemente seus espaços físicos a fim de atender e acolher a comunidade escolar. Além de contar com elevadores e rampas de acesso, possui sinalização adequada e educadores à disposição para auxílio. A escola fará a análise da rampa mencionada a fim de compreender melhor a necessidade de modificação".
O TRE solicita que as pessoas com necessidades especiais informem seus casos aos cartórios locais até 90 dias antes da eleição, mesmo nos casos de deficiência momentânea, como após um acidente ou alguma situação provisória. A alteração da seção ou até mesmo o endereço de votação precisa ser programada com antecedência, o que reforça a necessidade da informação prévia.
No Rio Grande do Sul, 55,2 mil eleitores informaram algum tipo de deficiência (locomoção, auditiva, visual ou outros, como o uso de bengala ou baixa visão). Quase um terço, 16 mil, são deficientes físicos. Na Capital, o total de pessoas com deficiência é de 4,4 mil — 2,6 mil necessitam de acessibilidade plena. A coordenadora de acessibilidade do TRE diz que adequação dos espaços é um legado que vai além do dia da votação.
Para o cadeirante Marco Antônio Lang, por mais difícil que seja, os cidadãos não devem deixar de comparecer às seções eleitorais. Presidente da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência e com Altas Habilidades do RS (Faders), ele reforça o sentimento de constrangimento de quem precisa pedir para ser realocado por falta de estrutura. E corrobora o que foi dito por todas as pessoas ouvidas nesta reportagem:
— A acessibilidade tem de estar à disposição a todo o momento.