Atropelado pelo antipetismo e incapaz de conter a onda bolsonarista que verteu sobre o país, Fernando Haddad protagonizou neste domingo (27) o mais amargo — e prenunciado — fracasso do PT desde sua ascensão no Brasil. No Hotel Pestana, em São Paulo, onde acompanhou a apuração dos votos, o candidato à Presidência da República fez um apelo para que seus eleitores “não tenham medo” do que vem pela frente e antecipou o seu papel e o futuro do partido de agora em diante: liderar a oposição ao governo de Jair Bolsonaro (PSL), se reconectar com as bases e assumir a dianteira na luta em defesa da “soberania nacional e da democracia”.
Quando o telão instalado no QG petista confirmou o que as pesquisas já indicavam, a reação no espaço reservado a convidados e dirigentes do PT se resumiu a um silêncio resignado. A “virada história”, que muitos acreditavam ser possível na reta final, não se concretizou. Alguns choraram. Até o telão ficou mudo. Assim que a imagem de Bolsonaro apareceu, com o rival falando pela primeira vez como presidente eleito, gritos de “fascista” ecoaram no salão.
Apesar da derrota, o avanço de Haddad em relação ao primeiro turno foi encarado como um sinal de força e de resistência. Haddad recebeu o resultado na suíte no 15º andar do prédio, ao lado da família e de amigos. Ao falar, pouco depois das 20h, em um palco montado no terceiro andar, agradeceu aos antepassados por terem lhe dado “coragem” e aos aliados e eleitores que, mesmo sem filiação partidária, pediram votos para ele.
Acompanhado da vice, Manuela D’Ávila (PCdoB), disse que “uma parte expressiva do povo brasileiro precisa ser respeitada nesse momento”, em que as instituições são “colocadas à prova”.
— Temos de fazer uma profissão de fé de que vamos continuar nossa caminhada, conversando com as pessoas, nos reconectando com as bases e com os pobres deste país. Daqui a quatro anos, teremos uma nova eleição. Temos de garantir as instituições. Não vamos sair das nossas profissões, dos nossos ofícios, mas não vamos deixar de exercer nossa cidadania. Talvez o Brasil nunca tenha precisado mais disso do que agora — afirmou.
Citando seus 45 milhões de votos, Haddad falou em “seguir de cabeça erguida, com determinação”.
— A soberania nacional e a democracia como nós a entendemos é um valor que está acima de todos nós. Temos uma nação e precisamos defendê-la — ressaltou.
Sob olhares marejados, palmas e gritos de apoio, destacou a “responsabilidade de fazer oposição” e, em um trocadilho com o hino nacional e sua vida profissional, destacou que “um professor não foge à luta”.
— Não tenham medo. Nós estaremos aqui. Nós estamos juntos. Contem conosco. Coragem. A vida é feita de coragem. Viva o Brasil — concluiu, emocionado.
Embora ninguém no entorno de Haddad admitisse em público, a derrota era prevista desde o fim do primeiro turno, quando Bolsonaro conquistou 46% dos votos válidos, contra 29% do petista. Por pouco, a briga não se encerrava ali.
Mudanças no visual e no discurso para superar Bolsonaro
Para superar o oponente, o ex-ministro da Educação teria de fazer o impossível: garantir o suporte de concorrentes como Ciro Gomes (PDT) e Geraldo Alckmin (PSDB), conquistar indecisos e céticos, recuperar eleitores perdidos para o campo inimigo e quebrar a rejeição a seu nome. Nos bastidores, a avaliação era de que a capacidade de transferência de votos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia batido no teto. Era mudar ou perecer. Haddad mudou, mas não foi o bastante para neutralizar a ojeriza ao PT.
A transformação começou a se esboçar no dia seguinte à votação de 7 de outubro. Na ocasião, o ex-prefeito de São Paulo viajou a Curitiba (PR) para discutir com o padrinho político, preso na Polícia Federal, os rumos da eleição. A partir dali, Lula sairia de cena, e Haddad assumiria identidade própria na disputa.
Em 48 horas, a nova estratégia se tornaria explícita nos símbolos da campanha. O vermelho do logotipo daria lugar às cores da bandeira brasileira e o slogan "Brasil feliz de novo" — que remetia aos anos de ouro do lulopetismo — seria substituído por outro, mais abrangente. O mantra "Haddad é Lula", repetido à exaustão na fase inicial do certame, ficaria para trás.
Até no visual, Haddad encarnaria a metamorfose: as camisetas de protesto seriam trocadas por camisas sociais e ternos alinhados. A suavização da imagem também se faria notar na retórica. Em entrevistas, o candidato passaria a se apresentar como defensor intransigente da democracia, em contraposição ao oponente, classificado como fascista, truculento e intolerante. Na tentativa de se descolar do estereótipo de extremista e atrair eleitores de centro, Haddad apostaria ainda no perfil de professor e pai de família, destacando, repetidas vezes, o casamento de 30 anos "com a mesma mulher”.
Em outra frente, a pedido de Lula, o ex-governador da Bahia Jaques Wagner (PT) — reconhecido articulador político — receberia a missão de viabilizar a ideia de uma frente plural e suprapartidária, a ser comandada por Haddad. Caberia a Wagner a tarefa de unir desafetos em nome de uma causa maior.
Na prática, a mobilização não decolou nem exerceu o poder de persuasão imaginado. Nos últimos dias, adesões individuais importantes, como a de Joaquim Barbosa, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da República, reforçaram o intento. Mas partidos e personalidades ilustres cortejadas pelo PT resistiram ao apelo. Irritado com o que chamou de "coação política", o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) mandou os interlocutores "para o inferno".
— Não preciso ser coagido moralmente por ninguém. Não estou vendendo a alma ao diabo — advertiu FHC, antecipando a opção do PSDB pela neutralidade.
Décimo colocado no primeiro turno, Guilherme Boulos (PSOL) foi o único postulante à Presidência a ir às ruas por Haddad. Magoada com o PT desde o pleito de 2014, Marina Silva (Rede) abriu o voto no petista, mas ficou longe dos palanques. Quanto a Ciro, a expectativa acabou frustrada, e a omissão se tornou um peso para Haddad até o fim.
Ressentido com Lula desde a largada da corrida eleitoral, o ex-governador do Ceará preferiu viajar à Europa a associar-se ao PT. De volta ao Brasil, gravou vídeo para dizer que não tomaria partido, vislumbrando 2022. Antes disso, em um ataque de fúria, seu irmão, Cid Gomes, já havia abalado as pretensões da sigla de comandar as forças de centro-esquerda contra Bolsonaro — o que se mostra o principal desafio do PT pós-eleição.
— Vão perder feio porque fizeram muita besteira, aparelharam as repartições públicas e acharam que eram donos de um país. O Brasil não aceita ter donos — vaticinou Cid, exigindo autocrítica e pedindo “humildade”.
Disposto a não dinamitar as pontes com a família Gomes, Haddad evitou o embate e decidiu iniciar o movimento de "mea culpa". Em entrevistas, despiu-se do figurino vermelho e admitiu a possibilidade de aliados terem cometido crimes. Elogiou a atuação do juiz federal Sergio Moro, da Operação Lava-Jato, e apontou erros na gestão econômica do governo Dilma Rousseff (PT).
Haddad elevou o tom e focou em contradições do adversário
Mirando em outra fonte de problemas sem fim para sua candidatura, direcionou a artilharia às fake news. Em reunião com líderes evangélicos, em São Paulo, Haddad citou versículos bíblicos condenando as calúnias e desmentiu boatos nas redes, onde chegou a ser acusado de defender incesto e pedofilia.
A menos de 10 dias da votação, quando a guerra no mundo virtual parecia perdida e as chances de vitória eram cada vez mais improváveis, as suspeitas de fraude no WhatsApp surgiram como balão de oxigênio no fronte petista. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, empresas estariam pagando por disparos em massa de mensagens anti-PT. A abertura de investigação sobre o caso deu fôlego à militância, reanimando as esperanças de êxito, ainda que ilusórias.
A partir dali, Haddad elevaria o tom e passaria a explorar as contradições do rival. Chamaria Bolsonaro de "aberração”, "soldadinho de araque" e de "covarde" por fugir dos debates e pelo "tsunami cibernético” atribuído a ele e a seus seguidores. Uma torrente de apoio tomou forma na internet e nas ruas. Artistas e intelectuais aderiram ao “ele não”. A expectativa da guinada seria a tônica dos derradeiros dias de campanha.
É muito importante que a população esteja tomando consciência do grande salto no escuro que representa a candidatura Bolsonaro
Em seu último ato público, no sábado (27), Haddad foi recebido com euforia por uma multidão na favela de Heliópolis, periferia de São Paulo. Os gritos de “já virou” ecoaram na Estrada das Lágrimas, rodeada de prédios e casebres de tijolos à vista, onde Haddad fez seu apelo final.
— É muito importante que a população esteja tomando consciência do grande salto no escuro que representa a candidatura Bolsonaro. Nas últimas semanas, estão querendo adocicá-lo, fazê-lo parecer o que não é — alertou.
Na manhã deste domingo (28), depois de votar, o ex-ministro celebrou o avanço nas últimas pesquisas e disse esperar “um grande resultado à noite”. Deixou a seção cercado por simpatizantes com rosas, livros e guarda-chuvas coloridos nas mãos. Em coro, eles entoaram uma canção sobre esperança e fé: “Ainda cabe sonhar”, repetiam, “desperta, ainda cabe sonhar”. Ao fundo, o som de panelas batendo sem parar reverberava nos prédios do entorno e quebrava o encanto petista, em um prelúdio do que estava por vir.
Haddad perdeu, mas, no novo Brasil prometido por Bolsonaro, o PT já elegeu o inimigo contra quem lutar.