Começar a desarmar a bomba-relógio das contas públicas é um dos principais desafios do próximo presidente da República, a partir de janeiro, quando subir a rampa do Planalto. O desequilíbrio entre despesas e receitas do governo federal não para de crescer nos últimos cinco anos e atrasa a recuperação da economia, fazendo apontar no horizonte ameaças como a volta da inflação elevada e o aumento dos juros. Após registrar, em 2014, um déficit primário de R$ 23,48 bilhões, o país deve dar adeus a 2018 com um rombo mais de seis vezes maior, de R$ 141 bilhões. O resultado primário – déficit ou superávit – é a diferença entre todas as receitas e despesas do governo, exceto o gasto com pagamento de juros.
É um conceito que parece distante do cidadão comum, mas tem implicações diretas nas finanças da população. Sem dinheiro, o governo corta gastos e investimentos em serviços como saúde e educação e tenta aumentar sua arrecadação, com a redução de benefícios ou a elevação de impostos. Na busca por se financiar, o governo emite títulos públicos. Com a percepção de maior risco pelo aumento do buraco nas contas, os investidores que compram esses papéis exigem um juro maior, o que acaba contaminando as demais taxas. E a espiral inflacionária tem início.
– Os investidores começam a desconfiar de que, para parar de pagar esses títulos, o governo pode emitir moeda. Isso pode inundar a economia de moeda para financiar esse déficit. E aumenta o risco de hiperinflação – alerta o economista Raul Velloso, um dos mais conhecidos especialistas em finanças públicas do país.
Com o tacho raspado, o governo consome quase toda a receita em si mesmo, sem espaço para investimentos. Pela proposta de orçamento de 2019 enviada para o Congresso, 93% dos gastos serão com despesas obrigatórias, sendo 77% para pessoal e Previdência. Ao mesmo tempo, o endividamento mostra uma trajetória explosiva. Com a deterioração das contas nos últimos anos, o setor público consolidado – União, Estados, municípios e estatais – chegou a um endividamento bruto de R$ 5,223 trilhões em agosto, o equivalente a 77,2% do PIB. Em 2014, o percentual era de 56,28%. Apenas no mês o rombo chegou a R$ 16,8 bilhões, crescimento de 77,1% sobre o mesmo mês do ano passado.
Outro respeitado especialista em finanças públicas, o economista Fabio Giambiagi prega que o primeiro passo para começar a resolver a situação fiscal é cumprir a regra do teto de gastos. A medida, aprovada em 2016, proíbe que as despesas do governo federal cresçam acima da inflação. Tem validade de 20 anos, mas, no décimo, o governo poder revisá-la. Apesar de ser considerada essencial por especialistas, não é unanimidade entre os candidatos ao Planalto, especialmente os mais ligados à esquerda. Fernando Haddad e Ciro Gomes, por exemplo, prometem acabar com o teto. Os questionamentos vão desde a necessidade de concluir obras paradas à contrariedade com congelamento de verbas para áreas sensíveis, como saúde e educação.
Cumprir o teto de gastos traz desafios, e um dos principais é a controversa mudança nas regras da aposentadoria – que Michel Temer até acenou com a possibilidade de colocar em votação ainda neste ano.
– Isso passa por uma reforma da Previdência relativamente dura. Se não, o teto vai ser furado em 2020 – diz Giambiagi, que, no mês passado, lançou o livro Um Apelo à Razão: A Reconciliação com a Lógica Econômica, assinado em parceria com o também economista Rodrigo Zeidan, que trata do nó fiscal do país.
Na campanha, candidatos prometeram acabar de forma rápida com o déficit, o que deixou os especialistas céticos. O guru econômico de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, diz que acelerar privatizações seria a receita para tapar o buraco em um ano. Ciro e Geraldo Alckmin sustentam que seria possível sair do vermelho em dois anos.
Fazer o país voltar a ter superávit primário não será tarefa fácil e vai obrigar o governo a tomar medidas impopulares. No leque de opções, aponta Giambiagi, estão a redução de isenções fiscais, o congelamento de reajustes para o funcionalismo, a extinção ainda que escalonada do abono salarial e outras medidas que possam elevar a arrecadação, como o combate à pejotização. Para novos tributos há pouco espaço, avalia o economista.
Monitorando as contas brasileiras, o Fundo Monetário Internacional (FMI) piorou as previsões para o Brasil. O órgão multilateral esperava, ano passado, que o país passasse a ter superávit em 2021. Agora, projeta que o resultado seja alcançado em 2022. Deixar de encarar esse problema pode custar caro ao Brasil.
– O risco é de que, daqui a alguns anos, poderemos passar por uma situação com algum paralelo com a do Plano Collor, no sentido de a situação chegar a um colapso e, um dia, as pessoas poderem encontrar os bancos fechados. A outra possibilidade é o descontrole da inflação, como a situação da Argentina, que tem uma taxa de 40% ao ano – alerta Giambiagi.
O quadro fiscal do Brasil não encontra uma crise sequer semelhante no período pós-estabilização da moeda, lembra o economista Raul Velloso. Na época da hiperinflação, o governo atrasava seus gastos, os valores eram corroídos e o drama, camuflado.
Para Velloso, com a ameaça de não cumprir o teto dos gastos, a saída mais prática seria reorganizar a Previdência dos servidores públicos. Enquanto isso, seguem as tratativas para mudar as regras do regime geral. Em 2017, o déficit da Previdência (servidores da União e INSS) somou R$ 268,8 bilhões, 18,5% acima do ano anterior. A proposta, diz o especialista, seria a de retirar a previdência dos funcionários públicos das contas do governo e criar fundos de pensão, a exemplo dos que existem em estatais como Banco do Brasil (Previ) e Petrobras (Petros). Seria uma solução também para os Estados. Junto a isso, elevar a alíquota de contribuição dos servidores na magnitude que for politicamente possível. Esses fundos de pensão, defende, receberiam recursos da venda de ativos e recebíveis.
– Isso significaria uma economia de até R$ 160 bilhões por ano. E assim se estaria dando ao funcionalismo a garantia de um regime sustentável, da mesma maneira que os empregados das estatais – diz Velloso, que, trabalhando para alguns Estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Piauí, está propondo algo semelhante.
Com o país enfermo, há outras doses de remédios amargos. Também está na lista de alternativas a medida impopular de mudar a regra do reajuste do salário mínimo conforme a inflação e o PIB. Apenas na Previdência, significaria uma economia de R$ 80 bilhões ao longo de cinco anos. Pela contrariedade que deve gerar, é tarefa possível apenas enquanto durar a lua de mel, no primeiro ano de mandato.