O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julga nesta quarta-feira (4) uma ação que pede o sinal verde para que brasileiros possam se candidatar a cargos políticos sem estarem filiados a partidos. A proposta é polêmica, exigiria uma profunda mudança no sistema eleitoral brasileiro e, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), colocaria as eleições de 2018 em risco.
A ação foi movida pelo advogado Rodrigo Mezzomo. Ex-filiado ao PSDB e ao Novo, tentou se lançar candidato à prefeitura do Rio de Janeiro em 2016, mas foi barrado pela Justiça Eleitoral. Ele recorreu, mas perdeu em todas as instâncias – agora, a ação está no STF, relatada pelo ministro Roberto Barroso.
Ao mesmo tempo, Mezzomo denunciou o Brasil à Organização dos Estados Americanos (OEA), sob o argumento de que o país é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de San José da Costa Rica), que não exige filiação partidária para candidatura. O texto entra em conflito com a Constituição, que impõe como requisito a ligação a uma legenda ao menos seis meses antes da eleição.
O grande debate do Supremo nesta quarta será sobre qual texto prevalece: a Constituição ou a Convenção Americana de Direitos Humanos? O caso ainda ganha força em um cenário de crise política. Conforme pesquisa Datafolha de abril, 66% dos brasileiros não tem preferência por qualquer sigla. E outro levantamento do instituto, divulgado no fim de setembro, mostra que as principais legendas (PT, PMDB, PP), são rejeitadas 60% a 75% da população.
Ao mesmo tempo, a possível mudança levanta dúvidas. O sistema atual é baseado em partidos – a representatividade de uma sigla é usada como base para calcular o quociente eleitoral (responsável por destinar o número de cadeiras que cada legenda terá no Legislativo) e para repartir o tempo no rádio e na TV e a verba do fundo partidário.
Em entrevista a Zero Hora, Mezzomo diz que, caso o Supremo decida por recusar as candidaturas avulsas, ele aguardará decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a qual pediu liminar – há, na corte estrangeira, três processos sobre o assunto: um contra o México, outro contra a Nicarágua e outro contra a Venezuela. Para o advogado, a candidatura avulsa deve ser permitida por estar ligada à "ideia de liberdade e de democracia".
— Ela não se propõe a destruir os partidos, mas a melhorá-los. Há um efeito ético na medida em que você transfere o poder da cúpula partidária para as bases. Os partidos devem ter filiados por serem virtuosos e inspirarem, e não por uma lei que obriga isso como acesso à vida pública. Não importa quantos partidos haja: se não concordo com um, não posso ser obrigado a me filiar (para concorrer) — defende.
PGR apoia advogado
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, encaminhou na segunda-feira (2) um parecer ao Supremo no qual defende a candidatura independente. No documento, ela afirma que, apesar da exigência da Constituição Federal, o requisito não está nas cláusulas de eternidade da Carta Magna. Assim como Mezzomo, ela sustenta seu argumento na Convenção Americana de Direitos Humanos e diz que, diante do conflito entre o texto nacional e o internacional, as regras estrangeiras, assinadas pelo Brasil, devem prevalecer.
"Os partidos representados no Congresso Nacional abriram mão, validamente, da função de organizações intermediárias exclusivas entre governantes e governados, ao terem aprovado o Pacto de São José", defendeu Dodge no parecer.
TSE é contra
Em estudo enviado ao Supremo na terça-feira (3), o TSE citou nove razões para se posicionar contra a candidatura avulsa, afirmando que a proposta “compromete totalmente a segurança da eleição brasileira, especialmente a eleição proporcional". Entre os pontos, diz que a mudança exigiria uma atualização inviável nos softwares das urnas para o ano que vem, além de gerar grandes custos. O estudo é criticado por Mezzomo.
— Ele beira o ridículo, diz que o TSE não tem capacidade de processamento de dados no software para o acolhimento de candidaturas independentes. Mas, até onde sei, é a informática que se adapta ao Direito, e não o contrário – diz o advogado.
Confrontado com a afirmação de Mezzomo, o secretário tecnologia da informação do TSE e um dos responsáveis pelo estudo, Giuseppe Janino, afirma que o advogado exibe “falta de conhecimento de todo o processo ” e ressalta que uma mudança imposta pelo STF agora deixaria o sistema vulnerável a fraudes apenas por ausência de tempo para testá-lo, e não por falta de capacidade dos servidores da Justiça Eleitoral.
– Não é apenas um sistema, são 120 sistemas com 15 milhões de linhas de programação, escritas com base nas leis. Começamos a preparar tudo em dezembro de 2016. Já finalizamos a programação e agora estamos na fase de testes. Implantar a candidatura avulsa agora não daria tempo para realizar os testes e proteger os sistemas contra erros de cálculo. Isso pode afetar o registro do candidato, o cálculo do quociente eleitoral, o sistema de votação da urna e a totalização dos votos. É necessário tempo. Nove mulheres não fazem a gestação de um filho em um mês — responde.
Constituição ou convenção internacional
Por um lado, adotar os preceitos da Convenção Americana de Direitos Humanos reforça a proposta da candidatura avulsa. Por outro, o mesmo texto também inviabilizaria a aplicação da Lei da Ficha Limpa, alega a coordenadora do curso de Direito Eleitoral da Faculdade de Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público em São Paulo (IDP-SP), Karina Kufa.
Ela observa que a convenção garante que todos os cidadãos podem “ser eleitos em eleições periódicas autênticas” e que esse direito só pode ser limitado “exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”. Ou seja, os impeditivos trazidos pela Ficha Limpa para uma candidatura, como a condenação por improbidade, ilícitos eleitorais ou cassações de mandatos, não aparecem no texto internacional.
— A Ficha Limpa contraria o Pacto de São José da Costa Rica. Acho a Ficha Limpa ótima, mas, constitucionalmente, não podemos aplicar o Pacto para permitir a candidatura avulsa e, ao mesmo tempo, liberar a Ficha Limpa — afirma.
Karina também defende que a candidatura avulsa traria problemas práticos. Além de enfraquecer os partidos (hoje, o sistema político tenta fortalecê-los, com a cláusula de barreira para legendas nanicas, a fidelidade partidária e as listas fechadas de candidatos), as candidaturas independentes podem favorecer candidatos famosos ou ricos.
E, na prática, diz, o eleito sem partido não teria base para articular.
— O candidato avulso é um candidato do sistema eleitoral majoritário (eleitos apenas os mais votados) que disputaria com candidatos do sistema proporcional (sistema atual, de filiados a partidos com quociente eleitoral). Se fosse eleito, qual seria a base dele? Nenhuma. Ele acabaria se associando a partidos fortes da base aliada — avalia.
A crítica é refutada por Mazzomo, segundo o qual "políticos não deveriam se financiar com dinheiro público".
— Ele governaria exatamente como o Macron governa a França. Pertencer a um partido não assegura governabilidade. Se fosse assim, Dilma não teria sofrido impeachment — opina.
Candidatura avulsa
O que é
O indivíduo pode se candidatar sem estar filiado a um partido político. Bastaria registrar-se na Justiça Eleitoral
Vantagens
Maior renovação política e diversidade (qualquer pessoa pode se candidatar)
Maior transparência de partidos políticos, por colocar-se como concorrência
Desvantagens
Reformulação do sistema eleitoral (hoje, tudo, do horário de exposição na rádio e na TV até os recursos destinados aos candidatos, é feito com base no sistema partidário)
Enfraquecimento das siglas (hoje, o sistema tenta fortalecê-las, sob o argumento de que são importantes para a democracia)
Personalização de candidatos (favorecimento a ricos e famosos, com recursos para bancar e se expor à população)
Novos gastos para atualizar softwares das urnas e risco à segurança das eleições
Como é no exterior?
O Brasil é um dos poucos países que exige a filiação partidária para uma candidatura, conforme levantamento da Rede de Informações Eleitorais (ACE, na sigla inglês), projeto integrado por Estados Unidos, Canadá e México e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
Segundo o levantamento, somente 21 países requisitam a ligação a um partido. Além de Brasil, constam na lista Suécia, Argentina, Uruguai, África do Sul e Camboja
Em 11% dos países, há candidaturas avulsas para presidente da República, como Islândia, Eslováquia, Chade e Moçambique.
Quem já foi eleito assim?
O atual presidente da França, Émmanuel Macron
O atual presidente da Áustria, Alexander Van der Bellen
O atual presidente da Finlândia, Sauli Niinistö
A atual prefeita de Tóquio, Yuriko Koike
O prefeito de Bogotá, capital da Colômbia, Enrique Peñalosa