O Ministério Público (MP) de Bom Jesus ajuizou uma ação civil pública que denuncia a prefeita de Bom Jesus, Lucila Maggi (MDB), o vice-prefeito, Diogo Kramer (PDT) e um cargo comissionado da secretaria de Obras e Trânsito, por improbidade administrativa. O servidor não teve o nome divulgado. Segundo o MP, eles seriam os responsáveis pela abertura de um loteamento clandestino em uma área que pertence ao município, com distribuição de lotes sem critério, sem projeto prévio e com ausência de políticas públicas habitacionais.
O loteamento fica na Rua Guilherme Tell Francisconi, às margens da RS-110, na localidade chamada de Vila da Alegria. No local, há cerca de 50 casas de madeira, algumas ainda em construção, em ruas sem pavimento e sem calçadas, que não contam com rede de esgoto e água potável. Segundo o promotor de Bom Jesus, Raynner Sales de Meira, a investigação começou a partir de denúncias de vereadores, que apontaram a distribuição de lotes de forma irregular. A partir disso, o Ministério Público oficiou o município sobre a situação, que confirmou a existência de um loteamento no local sem projeto prévio aprovado na prefeitura. Porém, a gestão não assumiu a responsabilidade pelo loteamento.
— A gente notou que, de fato, aquele loteamento clandestino se iniciou no mês de janeiro do ano de 2021, ou seja, já sob a gestão dos atuais mandatários do Executivo de Bom Jesus. Foram feitos levantamentos históricos de fotos de satélite, onde nós vimos que, até o final do ano de 2020, não havia nenhum loteamento naquela localidade. Já em março de 2021, três ruas estavam abertas e havia cerca de 50 casas em construção — explica Raynner.
Conforme o promotor, a doação destes lotes ocorria por intermédio dos investigados. Em depoimentos de moradores da região ao MP de Bom Jesus, todos disseram que haviam sido contempladas com um lote, dado pela prefeita Lucila Maggi ou pelo vice-prefeito Diogo Kramer. Entretanto, os depoimentos apresentaram um ponto em comum: era o servidor público da secretaria de Obras que transmitia todas as informações sobre a organização dos lotes, como a divisão das áreas, o formato de construção das casas e, ainda, quem procurar para receber um terreno.
— Diante desses elementos, foi solicitada busca e apreensão do aparelho telefônico desse servidor. A partir da análise do telefone celular, se constatou diversas conversas de populares procurando (o servidor), solicitando lote, e ele orientando essas pessoas, de que isso deveria ser buscado junto à prefeita ou ao vice-prefeito, e então isso robusteceu tudo que havia sido apurado desde o início — confirmou Raynner.
Segundo o MP, não houve a identificação de quem são as pessoas contempladas com os lotes, ou se elas têm ligação com os agentes públicos, "porque juridicamente é irrelevante". No entendimento do promotor, a impessoalidade já está violada e a clandestinidade comprovada pelo fato de não haver prévio projeto habitacional e de loteamento. Ainda segundo Raynner Meira, a investigação já foi concluída e o caso agora está na esfera judicial, aguardando julgamento.
Na ação, o MP denuncia os envolvidos por improbidade administrativa. Se forem condenados, podem perder os cargos públicos, terem suspensos os direitos políticos por 12 anos, serem proibidos de contratar com o poder público ou de receber incentivos fiscais e ainda serem condenados ao pagamento de multa equivalente ao valor do dano, de no mínimo R$ 29.411,88. Ainda segundo o MP, já havia sido apresentada uma proposta de acordo para não dar início à ação, mas os agentes públicos não aceitaram os termos sugeridos.
Energia elétrica também é clandestina
De acordo com o promotor Raynner Meira, a energia elétrica das casas do loteamento também é clandestina, e ligada a um relógio do município, cujo consumo é bancado pela prefeitura. Essa ligação indevida fez com que as contas de energia deste relógio passassem de R$ 5.798,33, no ano de 2020, para R$ 35.210,17 em 2021.
— A partir da confrontação da média histórica de consumo daquele relógio até 2020, e a média dos primeiros anos a partir da instalação do loteamento clandestino, se chegou ao somatório de um aumento substancial do consumo de energia. Apenas no primeiro ano, houve um aumento de 607,25% do consumo geral de energia pública, cujo prejuízo ao erário municipal de Bom Jesus é de, no mínimo, R$ 29.411,88, haja vista ter sido considerado apenas o excedente da média de consumo do primeiro ano do loteamento clandestino, cujo uso indevido de energia pública remanesce — explica o promotor.
De acordo com o promotor, existem notificações da RGE, a concessionária que atende a energia do município, de que a quantidade de ligações clandestinas está gerando uma sobrecarga no local, com risco de pane elétrica e até incêndio.
— A manutenção das pessoas nesse local, sem a viabilidade técnica, é um fator de risco para a própria vida e para a saúde dessas pessoas. Não pode o poder público, sob este discurso, mantê-los numa situação sub-humana de não ter acesso aos serviços públicos básicos. Pode parecer que essas medidas (remoção das pessoas do local ou espera por projeto de loteamento) sejam prejudiciais a essas pessoas, mas na verdade é sempre buscando assegurar os direitos dessas pessoas que, afinal de contas, pelo menos se presume, são pessoas de baixa renda e portanto pessoas em situação de vulnerabilidade.
O que acontece com as pessoas que moram no local?
O promotor também explicou que a distribuição dos lotes não se deu por critérios objetivos previstos em lei, mas por critérios "subjetivos", que, segundo ele, podem ter levado em consideração a predileção política. Quanto às pessoas que moram no loteamento clandestino, Raynner explica há uma segunda investigação em andamento no MP para se verificar a possibilidade de regularização ou não do loteamento, da qual a última ação tomada pelo órgão foi realizar uma consulta a uma assessoria técnica para verificar a viabilidade de regularização deste loteamento.
Não havendo viabilidade técnica, não há como manter aquela população naquele local, sob pena de se estar negando a elas os direitos básicos
Segundo o promotor, há dois caminhos possíveis a serem seguidos, que dependem da avaliação dessa assessoria técnica. Se houver possibilidade de regularização da área, o MP tomará as providências junto ao município para que seja feito um projeto, garantindo aos moradores os direitos básicos da moradia, como saneamento básico, água potável, segurança e saúde pública. Essa viabilidade depende de estudos de geologia do solo e de possibilidade de divisão dos lotes. Se não for possível ser feita a regularização da área, o caminho será o reassentamento das cerca de 40 famílias que moram na região.
— A gente torce para que não ocorra, mas, se acontecer, vamos ter que tratar junto com o município, que vai ter a responsabilidade, afinal de contas foi o próprio ente público que colocou essas pessoas naquela situação. Seja mediante ao reassentamento em outro local, com um loteamento feito de maneira correta, ou, enquanto não tenha outro local a ser contemplado para moradia definitiva, que as pessoas sejam beneficiárias de um aluguel social. Não havendo viabilidade técnica, não há como manter aquela população naquele local, sob pena de se estar negando a elas os direitos básicos.
Ainda conforme o promotor de Bom Jesus, a situação das famílias segue da mesma forma atualmente.
— Infelizmente sim (segue como está), porque o município não adotou nenhuma medida. Cabe a eles fazer isso, afinal de contas, o relógio (da energia elétrica) é de propriedade do município. Qualquer dano decorrente dessa situação é responsabilidade do município, não só deles, como a responsabilidade pessoal dos gestores, que têm conhecimento da situação crítica que eles geraram com a população ali existente. Por parte do MP, nós precisamos primeiro desse estudo de viabilidade para adotar alguma medida, se vamos realocar ou não essas pessoas — conclui.
"Loteamento já estava em andamento quando assumi", diz prefeita
A prefeita de Bom Jesus, Lucila Maggi, reconheceu a existência do loteamento clandestino, mas afirma que a distribuição dos lotes começou no segundo semestre de 2020, ou seja, antes que ela assumisse o cargo na prefeitura, e inclusive, segundo ela, antes mesmo do período eleitoral naquele ano.
— O conhecimento que tenho é que esse loteamento iniciou ainda no ano de 2020, e no início do nosso governo nós fomos noticiados pelo promotor de que havia esse loteamento, mas já estava em andamento quando eu assumi o governo em 2021. Veio uma recomendação do Ministério Público no início de 2021, de que não poderia ser mais construído ou feita qualquer obra naquele local por parte do município, então nós obedecemos a recomendação. Porém, havia a recomendação de que as pessoas deveriam ser retiradas, e as casas deveriam ser demolidas, mas naquele momento eu não me senti confortável de demolir a casa de praticamente mais de 40 famílias que lá já estavam — declarou Lucila.
Segundo a prefeita, o município não pode construir qualquer estrutura no local devido a "questões legais". Ela explica que o loteamento é construído em uma área ocupada por uma vila que é "toda irregular", na qual as pessoas não têm escritura e que existe há mais de 20 anos. Em relação à situação de energia elétrica, ao contrário do que afirmou o promotor Raynner Meira, a prefeita explica que, desde o início de 2023, as pessoas "já têm energia própria no local".
— Algumas coisas que o MP queria não conseguimos atender. Não permitimos que a secretaria de Obras fizesse qualquer infraestrutura lá, tanto que as pessoas estão hoje sem rede de água, sem esgoto, a gente não pode fazer pelo entendimento do MP. Só que as pessoas já estavam lá, e precisamos de um outro local para elas irem. Não tenho como demolir a casa das famílias, temos muitas pessoas carentes.
Por fim, Lucila explica que o município está adquirindo outro terreno para um projeto habitacional que, pelos planos da prefeitura, deve contemplar em torno de 100 famílias.
— Mas nossa ideia é fazer a regularização naquele local (no loteamento clandestino). Nós, inclusive, no ano passado abrimos um processo licitatório para regularização fundiária que contemplava aquela área. Mas o MP também recomendou que não déssemos prosseguimento, por entender que naquela área não seria possível, mas infelizmente as pessoas já estão lá. Então vamos ter que ver, juridicamente, se teremos que realocar essas pessoas pra outro lugar ou fazer toda a infraestrutura para que elas fiquem em condições de moradia digna.
A reportagem tentou contato com o vice-prefeito, Diogo Kramer, mas não obteve retorno. Kramer foi alvo de operação da Polícia Civil, em 11 de julho, que investiga uso irregular de diárias em 2018 — quando Kramer era vereador —, e teve três celulares apreendidos na ação.