Em uma pacata vizinhança, num bairro distante do centro de Caxias do Sul, Terezinha de Fátima Issa da Silva, 59 anos, desabafa sobre as noites mal dormidas. A aposentada, que mora com uma enteada, teve o nome divulgado na lista da Advocacia-Geral da União (AGU) na última quinta-feira (12) como uma das suspeitas de financiar o transporte dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, em Brasília. A vida de Fátima, ex-funcionária da Visate e aposentada por problemas de saúde, virou de cabeça para baixo com a notícia. Nem as aulas de sanfona, que ela adora, conseguem distraí-la.
— Estou num abalo daqueles. Eu tenho dor no peito, sufocação, deito e não durmo e, dentro de casa, fico inquieta, porque é uma coisa que eu não fiz e não sei como reagir — lamenta a aposentada.
Conforme representantes da empresa Gravatinha Turismo, de Caxias do Sul, o nome de Terezinha apareceu na lista da AGU por engano. Ao gerar uma nota fiscal para o transporte que levou quase 40 pessoas da cidade para Brasília, a empresa de turismo teria, primeiro, colocado o nome da aposentada. O erro foi identificado e uma nova nota foi gerada, com o nome de Sheila Ferrarini, que seria, segundo a Gravatinha, a verdadeira contratante.
Fátima, inclusive, afirma que não conhece Sheila e nunca “nem viu” a mulher na vida. Como conta a aposentada, a ligação com a Gravatinha Turismo é porque ela participa de excursões para visitar um médium em Araranguá (SC). A cada dois meses, um grupo de 10 a 12 pessoas realiza consultas lá. A aposentada de Caxias, que nasceu em Bom Jesus, frequenta o local há 16 anos para tratar problemas de saúde.
— Por indicação (comecei a frequentar). Cheguei lá morrendo e me trataram — conta a aposentada.
Ela também participa de excursões para Cachoeira do Sul, no Centro Espírita Marlon Santos. O deputado estadual Claudio Tatsch (PL), ex-chefe de gabinete de Santos, confirma que Fátima é uma amiga, mas que nunca teve ligação política com eles ou foi assessora:
— Ela é amiga nossa, e ela faz excursões para Cachoeira. Nunca foi assessora. O Marlon tem atendimento no centro todo sábado, e vai muita gente da Serra. Ela faz as excursões, tem uma relação com o Marlon nada a ver com política. É nossa amiga, vota pra nós, mas, infelizmente, vota pro PT também.
O depoimento é o mesmo do vereador Rafael Bueno (PDT), que não vê Fátima “envolvida nesse caso”. Bueno também conheceu a aposentada nas excursões para o Centro Espírita.
— Ela sempre vinha com ele (Marlon Santos), entregava as emendas (parlamentares do deputado) no Lar da Velhice, nos hospitais. Ela era esse canal do deputado, mas não era assessora, atuava como representante — descreve o vereador caxiense.
“Jamais votaria em Bolsonaro”, diz Fátima
A aposentada não se diz apoiadora do PT, mas, nas eleições de 2022, votou em Luiz Inácio Lula da Silva porque considerava o então candidato à Presidência como “única opção” na disputa. Além de não apoiar os atos em Brasília, Fátima destaca que “jamais votaria em Bolsonaro”. A aposentada lembra que o pai morreu de covid-19, aos 82 anos, por falta de vacina.
— Nunca. Jamais. Quando deu a covid-19, que era para vir a vacina, ele (Bolsonaro) só mandava fazer cova. Eu ia para a casa da mãe e o pai, coitadinho, fazia com as mãos assim (gesto de oração) e olhava para o céu, “tomara que venha a vacina”. E não veio a vacina. Ele pegou covid-19, faleceu, e eu fiquei 12 dias internada, também quase morri. Mesmo que fosse a última pessoa na Terra, não votaria nele — declara Fátima.
Na casa, inclusive, não há sinais de apoio político. Na sala, estão espalhadas fotos da enteada e do falecido marido. Quando a reportagem chegou, Fátima apenas levou a sua sanfona para o quarto.
Eu ia para a casa da mãe e o pai, coitadinho, fazia com as mãos assim (gesto de oração) e olhava para o céu, “tomara que venha a vacina”. E não veio a vacina. Ele pegou covid-19 e faleceu.
FÁTIMA ISSA DA SILVA
Aposentada
— (Política) só dá esses desesperos que deu agora. Essas porcarias aí. Mexem com uma pessoa que está quieta dentro de casa — opina Fátima.
Para voltar a ter tranquilidade, Fátima quer apenas ver o nome fora da lista. Até o momento, a AGU não a procurou, e a aposentada ainda não teve bens bloqueados, que seria uma das medidas do órgão federal aos citados na lista.
— Tu fica impressionada até saberem que tiraram teu nome. Sossego só quando termina tudo. Aí vou deitar e dormir. Recuperar as horas perdidas — deseja a aposentada.
O que disse a defesa de Fátima
Em relação ao caso, a defesa de Fátima Issa da Silva, que também representa a empresa Gravatinha Turismo, esclarece que uma petição foi protocolada na Justiça para remover o nome de Fátima das investigações. Além disso, segundo a nota divulgada pelos advogados que respondem ao caso, os fatos já foram esclarecidos em relação ao inquérito policial e à ação civil pública que investigam os atos em Brasília.
Confira a nota da defesa na íntegra:
“Diante dos noticiários veiculados pela imprensa, a assessoria jurídica da parte acusada, Sra. Terezinha Fátima Issa, vem esclarecer que os fatos já foram devidamente esclarecidos no bojo do inquérito policial e ação civil pública que tramitam para investigar os atos praticados em 08 de janeiro deste ano, na cidade de Brasília-DF.
Na petição protocolada pela própria empresa proprietária do veículo utilizado para transporte à capital federal, foi informado e devidamente comprovado acerca do equívoco havido no momento da realização da emissão da nota fiscal, sendo inserido o nome da Sra. Therezinha de Fátima Issa da Silva ao invés do nome da Sra. Sheila Ferrarini, a qual é a correta responsável pela contratação ocorrida.
A petição ainda está aguardando análise pelo juiz responsável pelo caso.
Importa referir que a Sra. Terezinha não participou, muito menos financiou ou colaborou para nenhum ato antidemocrático ocorrido na Capital Federal em 08 de janeiro, tratando-se de mero erro no preenchimento do documento fiscal pela empresa de transporte.
Esta defesa reitera sua confiança na Justiça e no processo legal, aguardando a análise dos pedidos formulados no juízo competente.”
O que dizem as autoridades
A AGU confirma que eventuais erros na lista de envolvidos, entregue ao órgão pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), poderão ser corrigidos no curso do processo na Justiça. Já a ANTT explica que todas as informações repassadas, como itinerário, lista de passageiros e contratante, são de “total responsabilidade da empresa”. A assessoria de comunicação da Secretaria Estadual de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos se limitou a informar que, até o momento, o assunto não chegou na pasta.
Confira as notas na íntegra:
Agência Nacional de Transportes Terrestres
“A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) informa que, para o levantamento solicitado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), buscou as informações disponíveis no Sistema de Habilitação de Transporte de Passageiros (SISHAB).
Cabe esclarecer que, antes de realizar uma viagem, a empresa que possui o Termo de Autorização para Fretamento precisa realizar a comunicação do serviço para a ANTT no SISHAB, com as informações básicas para realização da viagem, como itinerário, datas, listas de passageiros, o que inclui também os dados do contratante. Com os elementos, é emitida a Licença de Viagem.
Vale lembrar que o preenchimento dos dados é de total responsabilidade da empresa.”
Advocacia-Geral da União
“A ação judicial apresentada pela Advocacia-Geral da União (AGU) na última quinta-feira (12/01) foi uma “Ação Cautelar Preparatória de Ação Civil Pública para Proteção do Patrimônio Público”, que visa angariar elementos para futuro ingresso de ação civil pública. Trata-se de medida cautelar para garantir que, após investigação dessas pessoas físicas e jurídicas, em caso de confirmação do envolvimento delas no financiamento dos ataques e consequente condenação, haja bens disponíveis para futuro ressarcimento aos cofres públicos por conta dos danos causados.
Caso haja algum erro na relação de pessoas físicas e jurídicas repassada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) à AGU, a própria pessoa terá oportunidade de, no curso do processo, apresentar provas do erro ao Judiciário e ser retirada do polo passivo da ação. O objetivo da AGU ao pedir a medida cautelar de bloqueio de bens é única e exclusivamente cobrar reparação a quem de fato é responsável pelo prejuízo causado à União.”
Perguntas e respostas sobre o caso
Fátima é petista e tem vínculo com o PT?
Não. Fátima nunca foi filiada ao PT nem fez campanha para o partido em alguma eleição. Ela apenas afirma ter votado em Lula nas últimas eleições. A presidente do partido em Caxias do Sul, Joceli Veadrigo, confirma que Fátima não tem relação com nenhuma pessoa do PT, mas diz que são solidários a todos e todas que estejam sofrendo injustiças, e que, neste caso, a empresa deverá fazer todo reparo.
Fátima era assessora do deputado federal Marlon Santos (PL)?
Não. Ela é amiga pessoal do deputado e atua como sua representante em Caxias, numa relação informal, sem vínculo empregatício. Ela nunca trabalhou para Marlon Santos. Segundo o vereador Rafael Bueno (PDT), ela participa das entregas de emendas parlamentares do deputado às entidades beneficiadas.
Qual a relação de Fátima com a empresa Gravatinha Turismo?
Fátima organiza excursões ao centro mediúnico comandado pelo deputado Marlon Santos, em Cachoeira do Sul, para tratamentos espirituais. Em uma dessas viagens, contratou a Gravatinha Turismo para transportar o grupo até o centro. A empresa, por sua vez, afirma ter incluído o nome de Fátima a partir de um “erro de sistema” na nota fiscal de um transporte contratado para ir a Brasília no final de semana do dia 8 de janeiro. Segundo a defesa da empresa, a contratante na verdade se chama Sheila Ferrarini.
Fátima tem alguma relação com Sheila Ferrarini?
Fátima alega não conhecer nem saber quem é Sheila Ferrarini. A reportagem segue tentando contato com Sheila Ferrarini ou sua defesa. Na segunda-feira, inclusive, foi até a casa e empresa de Sheila em Farroupilha, mas não conseguiu falar com ela.