Objeto de amplas discussões nas mais variadas frentes — de oposição de parte de educadores à disputa pela autoria —, o projeto que propunha a distribuição de material e uniformes escolares para a rede pública municipal de ensino de Caxias não deve avançar no atual governo.
Protocolado no distante ano de 2009 pelo então vereador Rodrigo Beltrão (PSB, mas na época filiado ao PT), o projeto foi arquivado em 2013 e 2016 em razão dos fins das respectivas legislaturas e desarquivado pelo parlamentar nos anos seguintes.
Porém, foi em 2019 que a proposta voltou plenamente aos holofotes, após Daniel Guerra (sem partido, então Republicanos) protocolar projeto de teor semelhante no Legislativo. Sucedeu-se então, na ocasião, uma discussão sobre a autoria da matéria, além de posicionamentos contrários de outros vereadores, que relataram receber manifestações de contrariedade de parte dos educadores. Os projetos acabaram sendo anexados.
Ao término da legislatura no ano passado, o projeto foi arquivado e, até o momento, não houve desarquivamento por parte de nenhum vereador. Segundo a diretoria da Câmara, qualquer um poderia resgatar o projeto na ausência do proponente — no caso, Beltrão não foi reeleito.
Embora houvesse intenção do ex-prefeito de que o kit escolar fosse distribuído em 2021, a medida sumiu dos planos do Executivo e nunca mais foi retomada pelo Legislativo. No início deste ano, a proposta foi devolvida ao governo, que retirou o projeto. Com isso, a matéria foi arquivada.
A secretária municipal da Educação, Sandra Negrini, diz que estudou a proposta, mas ressaltou que o município desconsidera interesse no momento e teria outros temas prioritários a tratar.
— Estive estudando o projeto. Com relação ao kit escolar, as escolas recebem uma verba de autonomia financeira e, além disso, tem alguns materiais que a gente mesmo fornece. Com relação ao uniforme, neste primeiro momento, não é do nosso interesse fazer aquisição, porque temos outras prioridades mais urgentes com que trabalhar — explicou.
Além de kit completo de materiais escolares, as propostas previam pares de meias, camisetas, conjunto de calça e casaco, bermuda e um par de calçado para os alunos. A diferença entre os projetos era com relação aos uniformes. Enquanto Daniel Guerra pretendia padronizar uma mesma vestimenta para todas as escolas, a matéria de Rodrigo Beltrão sugeria que cada instituição tivesse sua própria identificação.
"ENTENDO A JUSTIFICATIVA"
Rodrigo Beltrão, que por cerca de 10 anos lutou pelo projeto, atualmente não pode desarquivar sua proposta por não ter sido reeleito na Câmara. Atualmente ocupando cargo público no Samae, o ex-vereador diz que entende a argumentação do poder público em não dar andamento para a sua proposta:
— Eu entendo que propus na condição de legislador e continuo defendendo essa ideia. No entanto, o governante tem de avaliar dentro do contexto fático atual, orçamentário, de uma pandemia, enfim. Então, eu entendo a justificativa do governo, mas eu, enquanto autor e militante dessa causa, continuo acreditando nesse projeto.
A reportagem não contatou Daniel Guerra, pois o ex-prefeito está incomunicável desde que foi afastado pelo impeachment que sofreu.
Atribuição da comunidade escolar
Atualmente envolta na readequação constante dos processos pedagógicos em razão da pandemia, a Secretaria de Educação não justifica o desinteresse pelo resgate da proposta do kit escolar com base nessa justificativa. Para a titular da pasta, Sandra Negrini, recursos já seriam fornecidos para as escolas para aquisição de materiais escolares, que também possuem um banco de uniformes para subsidiar parte dos alunos. Além disso, Sandra contesta a padronização de vestimenta sugerida pelo projeto protocolado por Daniel Guerra:
— Além de não ter projetado esse gasto, a comunidade já tem se organizado com seus uniformes de suas escolas. Ter a identificação da escola facilita a identificação da criança, se elas estão fora da escola. Então, neste momento, não é só analisar dar ou não uniforme, temos de analisar uma série de outras situações para, de repente, não tratar todo mundo igual, porque nem sempre a igualdade é benéfica — acredita.
A padronização, no entanto, não seria valida no projeto, uma vez que a proposição de Beltrão (que não sugere a padronização) sobrepõe a de Daniel Guerra. Beltrão argumenta que a implementação de seu projeto teria maior alcance social.
— Eu entendo uniforme e material escolar no mesmo patamar da merenda escolar. Assim como se entende que a merenda é necessária, entendo que seja necessário dar aos estudantes o mesmo ponto de partida, pois tem aquele aluno que não consegue comprar tênis e aquele que o pai leva de carro na mesma escola pública — defende o ex-vereador.
Contudo, ele acredita que seria necessário incremento financeiro do município para possibilitar o uso desse recurso para esse fim por parte das escolas.
— Precisa ter incremento municipal, pois se está trabalhando com mesmo recurso, que não está sobrando nas escolas. Por exemplo, as escolas já estão muito atrasadas na questão do videomonitoramento, não tem dinheiro para isso. Então, se não tiver incremento numa receita, esse projeto não vai ser bem recebido pelos diretores — alega.
Inconstitucionalidade e vício de origem
O projeto de Rodrigo Beltrão tramitou por mais de 10 anos na Câmara. Nunca chegou a plenário por ser considerado inconstitucional em diversas ocasiões. Isso porque a proposta intervém nas finanças do município, no que o Legislativo não tem autoridade. Ainda assim, mesmo se considerado inconstitucional, o projeto poderia ser remetido à votação e até aprovado pelos parlamentares. Nesse caso, caberia ao Executivo ingressar por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) para vetar a execução da proposta. O que, conforme Sandra Negrini, tenderia a ser o caminho escolhido.
— Provavelmente entraríamos com inconstitucionalidade, pois, além de não termos recurso e interesse, ele já tem vício de origem — ressalta.
Ainda que a proposta tenha sido arquivada, qualquer um dos vereadores ou o Executivo (caso houvesse interesse) poderia desarquivar o projeto e remeter ao trâmite interno novamente. O ideal, do ponto de vista constitucional, seria que esse ato foi executado pela prefeitura para não receber parecer inconstitucional da Comissão de Constituição e Justiça.
Rodrigo Beltrão alega que baseou seu projeto em diretrizes contidas no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e que por isso não haveria inconstitucionalidade em sua aplicação.
— Na lei do Fundeb diz que os valores repassados aos municípios podem ser usados para esse fim. Nisso que amparei o meu projeto, então, num primeiro momento, ele pode parecer inconstitucional por gerar, teoricamente, despesa ao município, mas estou apenas replicando a lei federal aqui.
O PROJETO
O que é
- Protocolado em 2009 pelo ex-vereador Rodrigo Beltrão sob a denominação de Cesta Básica Escolar e em 2019 pelo ex-prefeito Daniel Guerra sob a nomenclatura de kit escolar, ambas as propostas previam o repasse anual de materiais e uniformes escolares nas escolas públicas de Caxias. Na época que protocolou, a prefeitura estimava investimento de cerca de R$ 20 milhões por ano para execução do projeto.
Particularidades
- O projeto de Daniel Guerra previa padronização nos uniformes e ao menos uma das cores da bandeira e o brasão oficial do município, sendo vedada à administração a utilização de propaganda, logotipos ou outros símbolos vinculados a qualquer tipo de marketing. O de Beltrão não.
- O projeto de Guerra previa quantidade maior de peças de vestimenta, especialmente itens femininos e mochila.
- No projeto de Beltrão, seriam priorizados para confecção dos produtos empreendimentos de Economia Solidária.
- A então vereadora Paula Ioris (PSDB) apresentou duas emendas ao projeto do município: uma exigindo comprovação de situação de vulnerabilidade socioeconômica dos alunos (não podendo a renda familiar ser superior a três vezes o salário mínimo nacional) e contrapartida de 30% no valor do jogo de uniforme e kit escolar de pais ou responsáveis dos alunos para ter direito ao benefício.
O que aconteceu
- Projetos foram arquivados. Município retirou o de autoria do Executivo e o de Rodrigo Beltrão foi arquivado após pareceres de inconstitucionalidade e, agora, diante da não reeleição do vereador.