O evento Cidades em Transformação, realizado na segunda e terça-feira em Flores da Cunha, trouxe a voz de especialistas de outros países da América Latina. Arquiteta e Urbanista e professora equatoriana, Augusta Hermida defende mudanças de hábitos e de modelos para a transformação das cidades em espaços sustentáveis. Nesta entrevista, que integra a nova fase do projeto A Cidade que Queremos, iniciativa do Pioneiro para debater a cidade e apresentar soluções para problemas de Caxias do Sul, Augusta fala sobre sustentabilidade, verticalização das cidades e mobilidade urbana.
Confira:Pioneiro: Quais os principais desafios das cidades?
Augusta Hermida: É importante que esclareçamos o que significa sustentabilidade. É uma palavra muito usada, que está na moda, mas muitas vezes carece de sentido para aquilo que queremos fazer. Ao definir desta maneira o que é sustentabilidade, vamos entender que todos os desafios que temos de enfrentar têm de estar encaminhados para resolver o tema da sustentabilidade. Há grandes desafios como o crescimento gigantesco das cidades. É um desafio, porque é uma situação que não podemos parar. Por outro lado, as mudanças climáticas, demonstrado cientificamente que isso vai afetar gravemente a situação das cidades e das zonas vulneráveis das cidades. Outro tema importante é a escassez de recursos. Estamos acostumados a consumir muito, a utilizar combustível fóssil, mas o combustível fóssil está terminando e, sobretudo, contamina o meio ambiente. Temos de mudar a energia, de onde a obtemos. Outro tema que é importante é o da informação. Temos muita informação, porém, faltam ferramentas para fazer uso dessa informação a favor de uma cidade mais sustentável.
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O que é sustentabilidade?
A definição tradicional é que devemos entender a cidade e o mundo de modo que o deixemos igual como o recebemos. Porém, é algo muito geral. Falo de duas coisas a respeito da sustentabilidade. Primeiro, temos de trabalhar uma sustentabilidade local, ou seja, entender nossa realidade econômica, social, cultural, política e, a partir daí, propor coisas. E segundo é que há uma sustentabilidade forte e uma sustentabilidade fraca. A forte é aquela que questiona as estruturas do sistema em que estamos. A fraca é muito favorável para seguir consumindo e produzindo. Você coloca uma etiqueta de comida verde, eletrodomésticos sustentáveis e vende mais. Mas o tema da sustentabilidade está em mudar o sistema de consumo em que estamos imersos. Obviamente, demanda mais, porque temos de mudar nossos próprios hábitos.
Para uma sociedade ser sustentável é preciso políticas públicas instituídas por lei? Tem como ser diferente?
Sustentabilidade é algo coproduzido. Não pode acontecer só porque existe uma lei, nem pode acontecer apenas por iniciativas particulares de alguém. Tem de ter todos os membros da sociedade, as comunidades inteiras, com toda a sua diversidade. As pessoas tem de entender a necessidade, primeiro, da sustentabilidade, entender que o planeta é finito. Gosto do exemplo de que, se temos uma barra de chocolate e somos duas pessoas, ficamos felizes, mas se somos mil pessoas, não vai ser suficiente. Só há uma barra, que é o nosso planeta. Temos de aprender a usar outro tipo de alimento, de energia e aprender a viver dentro deste planeta finito. O modelo atual do capitalismo promove muito consumo. Quando caíram as Torres Gêmeas (em Nova York, em 2001), o presidente (George W. Bush), no dia seguinte, pediu à população que seguisse consumindo, porque é a única maneira para o capitalismo se manter. Porém, esse modelo é questionável. Estamos acostumados a mudar de roupa, porque mudou a cor, o modelo. Antes, nossa sociedade sabia costurar sua roupa, consertar seu sapato, agora não. Tem buracos na meia e coloca a meia no lixo. Os arquitetos, os planejadores, as pessoas que estão construindo cidades estão encarregadas de possibilitar essas mudanças. A sustentabilidade é um desafio para todos, para governantes, para políticos, para empresários e para a comunidade também.
Qual sua opinião sobre a verticalização das cidades?
Nem todas as cidades precisam verticalizar-se. Manhattan, em Nova York, precisa verticalizar-se, porque o espaço onde vivem muitas pessoas é reduzido. Mas, para cidades médias e pequenas, creio que não é preciso. É simplesmente questão de aproveitar o solo que está vazio com escala média. Quando falamos em escala média, estamos falando de quatro, cinco andares, não mais que isso. O grande problema da verticalização é que rompe a relação com a rua. As pessoas que estão no quinto, sexto, sétimo andar para cima já não têm relação com a rua. Eles entram, sobem pelo elevador e estão ilhados. A única maneira para que a cidade tenha uma vida pública interessante, para que melhore a qualidade de vida, é que você esteja conectado com a rua. Os modelos de cidades que estamos construindo já não são as cidades que necessitamos para conseguir sustentabilidade social. Temos de repensar os espaços. A casa tradicional, com sala, cozinha, dois quartos, um banheiro, não te possibilita alguns encontros mais sociais. Por que não começar a pensar, e já está se pensando, em outras possibilidades como, por exemplo, cohousing? Há os espaços privados e os espaços sociais. A cozinha, a lavanderia, os espaços de descanso são comunitários, porque isso possibilita compartilhar com o outro, ajudar. Os arquitetos não estão ofertando esse tipo de moradia.
Como garantir qualidade de vida com verticalização?
Quando já existe, creio que o ideal é pensar que se faça um uso mais complexo. O que quero dizer? Que em muito lugares se tem feito muitas torres, muito verticais, com uso residencial e todas essas pessoas têm de se deslocar para estudar, para divertir-se, para tudo. Se conseguimos fazer usos mais complexos, ou seja, ter diversos usos, podemos melhorar a qualidade de vida das pessoas. E pensar também no espaço público.
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Quais as suas dicas para o tema mobilidade urbana?
Atualmente e desde meados do Século 20, nos parece normal que a cidade esteja desenhada para o carro privado. Nos parece normal e, inclusive, quando nos vendem uma casa sem garagem, não queremos. Estamos acostumados porque é cômodo. Com exceção dos mais pobres, a classe média pode ter um carro. Mas o problema é que contamina demais e usa demais o espaço público. No caso da minha cidade (Cuenca), 70% da população não têm carro. Porém, 70% do espaço público se dão ao carro. Ou seja, 70% do espaço público se dão somente a 30% da população. Se seguirmos com esse modelo, será como dizer a uma pessoa obesa: não se preocupe, somente compre roupa mais e mais grande e assim irá melhorar. Não é verdade. Construir mais e mais vias não irá resolver o problema do tráfego e chegará um momento que irá colapsar. O caminho é combinar modos de transporte. Primeiro, tem de fortalecer o transporte público, tem de ser de maior qualidade e com mais frequência. Segundo, o carro privado tem de trocar o tipo de combustível. Elétrico, promovido por fontes renováveis, energia solar. E nas cidades médias, promover o uso de transportes alternativos, como bicicleta e caminhar. Mas para caminhar e usar a bicicleta temos de garantir segurança. É um trabalho de espaço público, da segurança não só real, mas da segurança percebida. Como ter uma cidade onde você se sente seguro? Colocando pessoas armadas e policiais? Não. Não é a solução. Somente pode se sentir mais seguro se há mais pessoas nas ruas. E para ter mais gente na rua, edifícios em altura não ajudam. Precisamos descer a escala e promover usos na rua. A planta baixa tem que ser mais permeável para permitir que interior e exterior se relacionem mais e, assim, a rua se torne mais segura para pedestres e bicicletas. É matéria que agora pode parecer impossível, deixar de usar o carro parece impossível, mas em muitas cidades já está acontecendo. Na Europa, em muitas cidades, só se usa carro para ir a lugares longe, em outro estado, em outra cidade. O transporte público lá é bom, o sistema de bicicletas é bom. Agora, quando você usa transportes alternativos, tem de ser mais baratos e mais rápidos, porque, se é mais caro e mais lento, você não vai usar.