A administradora Fernanda Aparecida Rancan Vaccari, 44 anos, uma depiladora de 40 e uma farmacêutica esteta, de 39, que preferem não se identificar, dividem a paixão por pedalar em Caxias do Sul. A prática do esporte ao ar livre, nas ruas da cidade, no entanto, não é apenas o que as une. As três passaram por momentos de constrangimento, medo e podiam ter se machucado depois que um motociclista tocou o corpo delas enquanto pedalavam.
Os episódios aconteceram em momentos diferentes e uniram as três mulheres que não se conheciam, mas decidiram procurar a Polícia Civil na noite de quinta-feira (4) para registrar ocorrência por importunação sexual. Ainda não se sabe se os ataques partem do mesmo homem, mas nos três episódios o agressor estava em uma moto preta.
Elas foram até a delegacia acompanhadas pela técnica em enfermagem Maevi Vanazzi, 27. Maevi também foi importunada quando caminhava por uma via pública, por um homem em uma motocicleta azul. Há outros relatos de mulheres que moram na região do Sagrada Família e Petrópolis que dizem ter passado pela mesma agressão.
Depois de ser importunada, Fernanda Vaccari gravou um vídeo e postou nas redes sociais, gerando grande repercussão. A filmagem serviu de alerta a outras mulheres e motivou a Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (Smel) a emitir uma nota de repúdio ao crime — no dia da agressão, Fernanda participava de um evento esportivo.
Os casos chamam atenção para os perigos que as mulheres correm nas ruas ao praticar esportes ou mesmo caminhar. Basta observar grupos de ciclistas para perceber que o público feminino está em menor número, o que levanta uma pergunta: por que elas pedalam menos?
Entre as razões está o machismo de motoristas, a constante importunação sexual e a insegurança. Um estudo da Universidade de Minnesota nos Estados Unidos sugere que os riscos são, de fato, maiores para as mulheres: os motoristas são mais propensos a passar a menos de um metro, ou seja, a invadir o espaço de uma mulher ciclista do que de um homem.
"Ser tocada por uma pessoa que tu não conheces é invasivo e repulsivo"
Fernanda pedala em grupo desde 2018. No Feriado de Finados (2), saiu de casa e se encontrou com um casal de amigos para participar do Desafio Pedal Caxias 2021. Na volta, como ainda não havia anoitecido, seguiu sozinha para casa, no bairro Desvio Rizzo. Ela pedalava pela Perimetral Oeste (Avenida Ruben Bento Alves), no bairro Marechal Floriano, quando foi surpreendida por um homem em uma moto, que deu um tapa nas nádegas dela.
— Já tinha ouvido muita piadinha, fui chamada de gostosa e ouvi um monte de porcaria, que te faz te sentir humilhada, mas nunca tinham tocado em mim. É um sentimento horrível, é invasivo demais — desabafa Fernanda.
Ela se emociona ao falar de que começou a andar de bicicleta para emagrecer e hoje se sente realizada com o esporte.
— Não tem como a gente não se apaixonar. Tu conheces uma infinidade de pessoas, lugares maravilhosos e, a cada pedal, a cada morro é um desafio. É uma coisa dentro da ti.
Fernanda manda um recado para homens que não respeitam mulheres:
— Não vou parar por causa de alguns homens que acham que podem fazer isso com a gente. Eles não podem nos tocar e nos não vamos nos calar. A gente vai gritar antes que um deles derrube uma de nós e nos machuque gravemente.
Ela já solicitou as imagens das câmeras de segurança das proximidades para identificar o homem.
"Me senti realmente abusada e invadida"
No mesmo dia da agressão contra Fernanda, uma farmacêutica esteta, de 39 anos, passou pela mesma situação. Ela e o marido, um empresário de 48 anos, saíram de casa no Desvio Rizzo, por volta das 15h40min. O casal seguia pela Avenida Ruben Bento Alves em direção à Casa de Pedra.
— Meu esposo estava na minha frente, a uns cinco metros de distância. Eu não percebi a aproximação da moto, que depois identificamos que era um motoboy, mas ele se aproximou e tocou no meu bumbum e na minha coxa. Ele me deu um solavanco, e eu só não caí porque estava segurando forte na bicicleta. Era uma descida de morro, e talvez se fosse no plano, eu teria caído. Fiquei pasma e gritei para o meu marido: "ele passou a mão em mim". Meu marido tentou ir atrás, mas o motociclista passou o sinal vermelho. Eu e meu marido ficamos pedalando lado a lado e a minha sensação era de nojo.
A vítima complementa:
— A gente pedala onde não tem movimento e tem receio, e aí vai para um local com mais movimento e se depara com isso. Me senti em choque, me senti realmente abusada e invadida e não tem nada que justifique isso. É constrangedor e muito ruim. Ele tem que pagar e parar com isso — frisa ela.
"Eu não sabia como agir"
Com a depiladora de 40 anos, o crime ocorreu há cerca de 15 dias. Ela pedalava na perimetral com uma amiga quando um motociclista passou por ela e lhe deu um tapa nas nádegas:
— Fiquei surpresa, tu não acreditas que aquilo está acontecendo contigo. Falei para a minha amiga: "viu o que o cara fez? Ele passou e me deu um tapão na bunda". Era um homem numa moto escura e com uma bolsa daquelas de motoboy. Eram seis e pouco da tarde e tinha muito movimento na rua — conta.
Chocada, a mulher não sabia o que fazer:
— Eu não sabia como agir quando aconteceu, mas depois soube que não podia me calar. Temos que deixar de ter medo. Toda vez que pensamos em praticar esportes, em pedalar, temos que pensar nos horários e se terá homens juntos para não corrermos o risco de sermos atacadas. Isso tem que parar.
"Foi horrível"
Não é apenas enquanto praticam esportes que as mulheres são assediadas ou importunadas sexualmente em Caxias do Sul. Pelo menos quatro jovens relatam que foram tocadas por um motociclista em uma moto azul. Ele estava de capacete branco e com uma mochila nas costas. Os casos foram registrados nos arredores dos bairros Sagrada Família e Petrópolis. O relato mais recente é de Maevi Vanazzi, 27. Ela ia para o trabalho na quinta-feira (4) pela Rua Ferdinando Rosa, no Petrópolis, quando um motociclista se aproximou.
— Ele quase me bateu com a moto. Olhei e o para-lama da moto estava quase batendo na minha perna e eu senti uma pancada muito forte na bunda e achei que era a moto que tinha me batido. Eu gritei porque me assustei e aí percebi o que tinha acontecido. Foi horrível — desabafa a jovem.
Ela conta que o homem seguiu em frente, mas continuou olhando para trás como se quisesse voltar:
— Tinha o pessoal em uma obra, mas ele parecia querer voltar e acho que só não voltou porque os funcionários estavam ali. Não sei qual era a intenção dele, podia ser pior. Ele passou na portaria do Hospital Geral e seguiu caminho e também passou pela portaria do meu prédio, porque vimos as imagens das câmeras.
"Tenho vontade de gritar para não se calarem"
Jéssica Tainara da Silva, 22, também passou pela mesma situação. Ela saiu da academia e caminhava pela Rua Conselheiro Dantas, por volta das 17h30min do dia 25 de outubro, no bairro Sagrada Família. A jovem foi surpreendida por um motociclista que subiu na calçada.
— Ele me deu um tapa na bunda e ficou olhando para trás. Eu fiquei em choque, me senti um lixo, mas aí percebi que não sou, ele é que é um lixo, ele que tem que se sentir assim e vai pagar pelo que fez — acredita.
A família da vítima conseguiu um vídeo que mostra uma moto azul na via, mas não pega a cena da agressão. Ela conta que tentou buscar imagens, mas ou as câmeras estão desligadas ou não têm alcance naquele trecho da rua. A jovem registrou ocorrência e postou nas redes sociais. A partir disso, foi procurada por outras mulheres que descrevem situações parecidas envolvendo a mesma moto:
— Tenho vontade de gritar para não se calarem. Dessa vez eu decidi ter voz, temos que nos unir, nos dar as mãos, e nos impor e sermos ouvidas. Eles tem que parar de achar que tem o direito de fazer isso conosco.
Importunação sexual
A importunação sexual é tema antigo, mas o crime foi tipificado apenas no final de 2018, incluindo ainda a divulgação de cena de estupro, de cena de sexo ou de pornografia. Os casos registrados em Caxias do Sul serão investigados pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).
— O crime consiste em "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro". Inicialmente, esse crime foi pensado para abarcar os crimes sexuais ocorridos nos meios de transporte, mas a previsão legislativa abarcou outras hipóteses, desde que haja um contato físico do agressor com a vítima — explica a delegada Aline Martinelli.
Ela afirma que as condutas são variadas, como passar a mão no corpo da vítima e beijo forçado. Os atos cometidos pelos motociclistas se enquadram nesse crime, cuja pena é de um a cinco anos de prisão, caso o ato não se constitua em crime mais grave. Para a delegada, a tipificação é um avanço:
— Caracteriza um avanço em um Direito Penal e nas situações machistas ocorridas em face de várias mulheres, que implicavam em situações de impunidade e hoje são crimes com uma pena bem alta — observa Aline.
A delegada orienta as vítimas a registrar boletim de ocorrência:
— As vítimas devem descrever o máximo possível de detalhes a fim de identificar o acusado. Num dos casos, a Polícia Civil vem divulgando imagens da motocicleta suspeita, a fim de que terceiros efetuem denúncia de eventual pessoa que tenha uma motocicleta de cor azul com as rodas pintadas de preto.
No Paraná, agressor foi preso em flagrante
Os casos de Caxias são semelhantes ao da ciclista Andressa Lustosa, do Paraná, registrado em 26 de agosto. Um homem, que estava no banco do passageiro de um carro passou a mão nas nádegas de Andressa, que caiu da bicicleta. O titular da Delegacia de Polícia Civil de Palmas (PR), Felipe Souza, explica que inicialmente se acreditava em um atropelamento ou tentativa de assassinato porque ainda não havia imagens.
— Tínhamos alguns nomes e com base nisso começamos a investigar. A Andressa conseguiu as imagens de uma câmera de segurança e divulgou nas redes sociais e mostrava o momento exato que o carro troca de faixa para se aproximar dela e o carona estende o braço para fora do carro e passa a mão na bunda dela — explica.
Com base nas imagens, a polícia passou a investigar os crimes de importunação sexual e lesão corporal qualificada em razão do gênero:
— Eles foram importuná-la sexualmente e acabaram lesionando-a, então tem a qualificadora porque eles se aproveitaram do fato de ela ser uma mulher. Quando a imagem viralizou, começamos a receber muitas informações e dois dias depois fizemos a prisão em flagrante do carona do veículo. Ele admitiu na hora que tinha passado a mão, informou quem mais estava no carro e onde estava o veículo — ressalta o delegado.
Ainda segundo o delegado, o motorista também foi preso porque as imagens e os depoimentos de outros dois homens que estavam no banco traseiro do carro comprovam que o condutor aproximou o veículo para um dos caroneiros tocar o corpo da ciclista:
— Os dois estão presos e já foram denunciados pelo Ministério Público — finaliza o delegado.