Um vídeo gravado por um morador contradiz a primeira versão dos guardas municipais envolvidos na perseguição que resultou na morte de Matheus da Silva dos Santos, 21 anos, em Caxias do Sul. Os servidores envolvidos alegaram que, após uma colisão, o motorista jogou a Parati que conduzia contra eles e, por isso, efetuaram disparos em legítima defesa. As imagens, porém, mostram que a a sequência de disparos que aconteceu antes, quando os veículos ainda estavam em movimento.
Matheus não tinha Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e, segundo familiares, tentou fugir da barreira policial na Rua Moreira César na madrugada de domingo (6). O jovem estava acompanhado de dois amigos. A Parati branca de Matheus foi perseguida pela Fiscalização de Trânsito e por Guardas Municipais até a Perimetral Norte, onde aconteceram os tiros e o rapaz foi baleado na cabeça.
O vídeo gravado por uma testemunha do alto e a distância e mostra a movimentação na Perimetral Norte e na Rua Ludovico Cavinato. No primeiro segundo da gravação, é possível ouvir as sirenes e os tiros. A Parati branca transita na contramão da Perimetral, sentido bairro São José-Santa Catarina, sendo seguida por duas viaturas com sirene. É possível ouvir seis estampidos antes de a Parati colidir contra o muro de uma residência na Ludovico Cavinato. Essa sequência de fatos durou 14 segundos, conforme indica a gravação.
O restante do vídeo tem ainda um minuto e 32 segundos, mas não são ouvidos outros tiros. A Parati está fora do enquadramento da câmera e as imagens mostram apenas as viaturas estacionadas e a movimentação de servidores municipais.
O vídeo, portanto, mostra uma cena diferente da versão inicial dos guardas municipais à Polícia Civil. Em depoimento, eles afirmaram que os tiros aconteceram após a Parati bater contra o muro. Neste momento, segundo o relato deles, o motorista teria feito a marcha à ré e jogado o carro contra os guardas municipais — o que foi descrito como uma agressão aos servidores, que revidaram com tiros para se proteger.
— Tivemos acesso a esse vídeo e deixa margem sobre o que pode ter acontecido. Foram vários disparos (de arma de fogo pelos guardas). O depoimento que tínhamos não relatava tantos disparos. Por isso a importâncias de aguardarmos (os resultados) das pericias, saber que armas foram utilizadas, o calibre, qual atingiu este rapaz, a direção dos tiros... Todas essas imagens e perícia irão nos ajudar a ter conclusões e confrontar os depoimentos — afirma o delegado Vitor Carnaúba, que está interinamente na Delegacia de Homicídios.
O vídeo, que tem autoria desconhecida pela Polícia Civil, foi anexado ao inquérito. Os investigadores buscam outras câmeras e imagens que possam auxiliar na elucidação dos fatos. O delegado Carnaúba afirma que o caso é uma prioridade da Delegacia de Homicídios, mas é preciso dar tempo para a investigação. Três armas dos guardas envolvidos na operação foram encaminhadas para a perícia.
— Estamos correndo atrás de mais câmeras e imagens que forem possíveis para podermos interrogar e questionar os passos de cada um dos envolvidos. Estamos esperando os primeiros resultados das perícias. Depois, agendaremos novos depoimentos com todos. O caso é de homicídio. Agora, cabe avaliar se foi uma legítima defesa ou não. Ainda não temos dados para definir a autoria do fato. É necessário a perícia para saber de que arma partiu o disparo fatal — aponta.
Quem tiver informações ou outras imagens da perseguição pode repassar diretamente para a Delegacia de Homicídios pelo aplicativo WhatsApp no número (54) 98414-9840.
Técnica policial não autoriza disparo contra carros em fuga
O desfecho fatal da perseguição a um motorista desarmado levantou diversos questionamentos nas redes sociais sobre o preparo dos guardas municipais e qual é a técnica para capturar suspeitos em fuga. A reportagem consultou três lideranças policiais de Caxias do Sul para explicar a orientação e treinamento a servidores de segurança pública.
O uso de arma de fogo está previsto no artigo 25 do Código Penal, que define a legítima defesa. O texto prevê o uso dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, contra si próprio ou outra pessoa.
— Só se deve utilizar a arma se uma vida estiver em risco. Se o suspeito apontar uma arma, é uma situação iminente. Não é preciso aguardar o disparo. Se estiverem atirando contra ele, (o policial) tem obrigação de revidar, sob pena de ser morto. São casos específicos que configurariam a legítima de defesa. A regra é agressão atual ou iminente — explica o delegado Cleber dos Santos Lima, chefe da Delegacia Regional da Serra.
Em uma perseguição, portanto, a técnica policial não recomenda o disparo. O comandante do 4º Batalhão de Choque, major Diego Soccol, ressalta que em uma situação dessas nunca se sabe quem pode estar no veículo. Por exemplo, pode haver um passageiro inocente ou um refém.
— A orientação é fazer o acompanhamento e avisar as demais guarnições para fazer um cerco. O objetivo é forçar a parada e realizar a captura. A Brigada Militar tem facilidade neste ponto porque há guarnições até em outras cidades, que são acionadas e podem vir pelo outro lado. É fazer o acompanhamento porque, em algum momento, esse veículo suspeito irá parar — explica.
O comandante do Choque ressalta que atirar contra os pneus não é uma técnica policial. Da mesma forma, não é permitido ao policial militar colidir a viatura contra o veículo suspeito.
— Não sabemos quem está dentro do carro. Pode ter reféns ou alguém inocente que não têm relação com o criminoso (motorista em fuga). Não se pode forçar a parada de um carro atirando nos pneus.
— Tiros em pneus não são técnicos e não justifica um disparo policial. Para veículos em fuga que não estejam trazendo um risco de vida atual ou iminente, se deve primar pelo cerco policial para se obter a abordagem — corrobora o tenente-coronel Emerson Ubirajara, comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM).
— Não é recomendável atirar nos pneus. O tiro poderá ricochetear e não sabemos onde irá parar. Ou causar um capotamento, um acidente, colocando em risco o entorno — concorda o delegado Lima.
O risco de fugir uma blitz
As lideranças policiais de Caxias do Sul aproveitam para fazer outro alerta: sobre fugas de barreiras policiais. O comandante do 12º BPM aponta que esse tipo de conduta não é comum, mas quando acontece geralmente são por situações envolvendo infrações de trânsito, semelhante ao que aconteceu com Matheus dos Santos na madrugada de domingo (6). A decisão do motorista para escapar de uma autuação de menor potencial gera uma série de riscos a ele próprio, aos policiais e para quem mais estiver nas ruas naquele horário.
— As pessoas não têm noção do risco que criam. Fugir da polícia é uma situação grave e o policial pensa no pior, como uma quadrilha ou indivíduos armados. As pessoas têm que respeitar a blitz. Infelizmente, é esse tipo de conduta ocorre por não ter carteira ou estar embriagado e tentar fugir. É melhor responder pelo que fez e não criar esse cenário de violência. Pode-se envolver num acidente, expor outras pessoas que não tem relação com a situação, até matar uma família que está no trânsito. É preciso respeitar as barreiras da força de segurança — salienta o delegado Lima.
Em situações de abordagem policial, a orientação do chefe da Polícia Civil na Serra é que o motorista pare, estacione o seu veículo e mantenha-se calmo para esclarecer a situação.