Foram pouco mais de 10 anos enfrentado as piores faces de Caxias do Sul. Uma década em que Silvia Regina Becker Pinto, 55 anos, acolheu a família de vítimas e trabalhou pela prisão de assassinos, à frente da 1ª Promotoria Criminal. Antes de pensar em aposentadoria, a promotora pediu transferência para Porto Alegre para conhecer o Iraque gaúcho.
– Assim é conhecido o Tribunal do Júri da Capital – brinca Silvia, que assumiu a 13ª Promotoria da Fazenda Pública com atribuições no Tribunal do Júri.
A carreira da promotora iniciou em 1998 na comarca de Sapiranga. Seis anos depois, foi promovida para assumir o cargo em Novo Hamburgo, onde ficou por sete anos. Em 2008, participou de uma permuta e veio para Caxias do Sul. A estreia na capital gaúcha aconteceu em 18 de março, justamente em um júri, e foi marcada por uma ironia do destino. Enquanto se esforçava para prender um acusado de atirar em um policial militar, o Ministério Público de Caxias do Sul acusava PMs envolvidos na morte de Lucas Raffainer Cousandier – processo que foi preparado pela promotora Silvia.
– Se policial age como bandido, tem que ser tratado como bandido – resume.
A volta para Caxias do Sul já tem data: 25 de abril, quando a promotora será homenageada com o título de cidadã caxiense.
Pioneiro: A senhora atuou somente no júri de Caxias?
Promotora Silvia Regina Becker Pinto: Em abril de 2009, logo após a minha chegada, a 1ª Vara Criminal passou a ser a Vara do Júri, e, assim, passei a atuar somente em processos de crimes contra a vida. Fiquei 10 anos só fazendo júri, enfrentando o pior de Caxias do Sul. As coisas mais horrendas passaram pelas minhas mãos naquela promotoria. As mais tristes, as que mais me afetaram, as que tenho mais lembranças, algumas positivas e outras negativas.
O que mudou em 10 anos?
Quando cheguei haviam muitos homicídios ligados ao tráfico de drogas, mas não às facções, que são um fenômeno de alguns anos. Lembro que haviam cinco homicídios dentro de um mesmo contexto que aconteciam no entorno da Pics (atual Presídio Regional) e que partiam do mesmo grupo criminoso do (bairro) Santa Fé. Eles matavam para eliminar rivais, por desentendimento dentro da cadeia e fornecedores de drogas. Lembro que em um triplo homicídio, a combinação era receber 60 quilos de drogas e matar o fornecedor. Só que este fornecedor foi ao local com duas crianças, e os dois meninos foram mortos. Essa quadrilha foi condenada em uns seis processos que atuei ao longo dos anos. Mas não era como hoje, com este domínio de duas facções bem identificadas: os Manos da Serra e os Bala na Cara. Uma facção que manda na Galeria A (da Penitenciária Estadual) do Apanhador e a outra que comanda a Galeria C, o que repercute de forma direta no número de homicídios. A crueldade se estabeleceu com criminosos utilizando dissimuladamente roupas da Polícia Civil e, depois de matarem, ateando fogo no local e queimarem os cadáveres.
Como estas facções surgiram e se estabeleceram?
Não é um problema só de Caxias do Sul, está disseminado por todo o Brasil e tem uma série de causas. Presídios sem estrutura e com falta de vagas, sim, mas também um sistema de apenamento que é uma falácia. Neste país, os direitos humanos têm sido lidos, tradicionalmente, como direitos de liberdade para bandidos sem qualquer preocupação em restituir estes bandidos para o meio social para que reiterem posturas delituosas de maior gravidade, que são crimes contra a vida e o narcotráfico. Há, também, um fetiche de que no Brasil se prende muito. Mas, há em torno de 55 mil mandados de prisão para cumprir. Concordo que faltam vagas, mas que prende muito é falácia. Há 55 mil pessoas que deveriam estar presas e não estão. Prendemos pouco.
Não há resposta aos crimes?
O regime semiaberto é falacioso, pois vão direto para a tal prisão domiciliar, que só a minoria tem tornozeleira. Explica para uma pessoa que é vítima ou perdeu um familiar, explica para essa população que levanta todo dia para ganhar a vida com o suor do seu trabalho, que vai cumprir apenas dois quintos da pena e depois irá para casa sem fiscalização? Não se investe em políticas públicas e nem em um Direito Penal efetivo e eficaz. Enquanto persistir este tratamento de “vítimas da sociedade” e não se voltar a um Direito Penal como pena efetiva, enquanto matar for barato, não vejo uma luz no final do túnel.
O problema é as penas serem baixas ou a progressão de regimes?
As duas coisas. O crime de receptação, por exemplo, que tanto fomenta o crime de roubo, a pena mínima é de um ano. É vantajoso receptar. O próprio roubo, que a pena mínima é quatro anos, quando terminar o processo deste assaltante preso em flagrante, já irá para o (regime) domiciliar. O mesmo para um homicídio simples. Como explicar isso para as vítimas? Existem crimes que precisamos repensar nosso sistema de repressão e parar com essa bobagem que Direito Penal é ressocializante. Direito Penal é pena em primeiro lugar. Tem que dar condições dignas de prisão, mas tem que prender. Lugar de preso é na cadeia. Estamos vivendo um caos. Um país que se mata 66 mil pessoas por ano e só identificamos autoria e materialidade de 5% a 8% destes crimes. É preciso repensar a estrutura em matéria criminal. A vida está valendo muito pouco neste país.
Como é esta realidade em Caxias do Sul?
Acho que Caxias está acima da média porque tem uma equipe de delegados de polícia que são muito vocacionados. Falo dos quais trabalhava, os delegados Adriano Linhares e o Rodrigo Kegler Duarte. São profissionais excepcionais. Então, Caxias não é exemplo. Embora, existam muitos casos que não se identifica autoria. Mas, é porque esgotam as possibilidades investigatórias. Homicídio vinculado ao narcotráfico impera a lei do silêncio. Não é preciso interpretação. As pessoas querem Justiça, mas não querem se comprometer muito porque tem medo. Cada movimentação do delegado precisa de autorização judicial e, às vezes, demora. Neste sentido, buscava uma parceria muito grande. Quase que no mesmo dia, ou no dia seguinte, o delegado estava com o mandado na mão.
E sobre a Brigada Militar?
Foi um Batalhão que sempre deu apoio em todas as demandas da Promotoria. São organizados, uma das melhores polícias militares do Rio Grande do Sul, com certeza. A Brigada é a instituição mais importante no combate ao crime. É a que mais se expõe, pois é a força e a coerção. Não significa que não tem falhas ou que todos tenham a mesma qualidade e idoneidade. Todas as profissões têm exceções. Mas, a imensa maioria são homens de bem, dispostos a defender Caxias do Sul a qualquer custo.
Que avaliação a senhora faz da demora dos processos?
O processo é demorado, afinal precisa ter um início, meio e fim. Mas, quando o réu é solto, é um absurdo. Às vezes, dá um desespero de fazer um júri de um fato que aconteceu há muitos anos. Não conheço outro país que seja assim, principalmente um país supostamente moderno e contemporâneo.
A promotora é conhecida por atuar próximo aos familiares da vítima. É uma postura pessoal?
É de cada personalidade, não é de todo o promotor do júri. Lembro um filósofo da modernidade que diz que uma das características das condições humanas é a empatia, se colocar no lugar e sofrer a dor do outro. Sempre me envolvi muito com a dor do outro. Lembro da Paula Ióris (que teve o filho assassinado em janeiro de 2012) chegando no meu gabinete em frangalhos e perguntando se precisava contratar um advogado. “Paula, tu estás me conhecendo hoje, mas confia em mim e na minha experiência”. Era, talvez, o meu diferencial. Outro caso que me tocou muito foi da menina que caminhava para a catequese (Ana Clara Adami, 11 anos, morta em julho de 2015).
Casos que não tiveram uma condenação lhe causam frustração?
Raramente os júris foram para o outro lado comigo. Mas, é um caos. Não é uma questão de ganhar ou perder. Quando não atingimos um objetivo, invariavelmente, nos questionamos onde falhamos. Quando, na verdade, não é uma falha. Tenho que convencer pessoas que são diferentes no seu modo de assimilar e compreender. Cada um interpreta pelo que é, por sua formação moral e religiosa, experiência profissional, escolaridade e modo de enfrentar a vida. Cada um tem seu perfil, ideologias, amores e dores. Quem decide é aquele grupo de sete pessoas (jurados), não significa que houve uma falha.
Os presídios estão sob domínio das facções?
Totalmente. Todas as autoridades sabem até quem lidera as facções (que dominam o sistema penitenciário). Poderia nominar (os de Caxias). Vejo como uma lástima. Nosso código é de 1940 e carrega uma realidade, uma ideologia de quase dois séculos atrás. Naquela época, a expectativa de vida do brasileiro girava em 48 anos de vida, sendo otimista. Quando o legislador daquela época previu a pena máxima de 30 anos para homicídio simples, considerando a idade (mínima) de 18 anos para poder receber esta pena, significaria uma prisão perpétua. Ficaria toda a estimativa de vida dele na cadeia. De lá para cá, melhorou a ciência, a medicina e a preservação da vida. A expectativa de vida, no Sul, agora é de 75 anos, mas o Código Penal continua com as mesmas penas. A ideia de prisão perpétua estava na realidade daquela época. Tem gente que nunca mais deveria sair do sistema prisional e um exemplo é o (Juliano Vieira Pimentel de Souza) que matou a Naiara (Soares Gomes, sete anos). Ele é um psicopata que jamais poderia sair do sistema prisional. Fez aquilo sem dó nem piedade. A única piedade que tem é dele próprio, da situação em que se colocou. Teria que ser dada uma resposta social com caráter desestimulante, para que saibam o tratamento legal que terão relativo a sua escolha.
Qual o primeiro passo para enfrentar a violência?
São duas ações conjuntas. Deixar a progressão de regime para ser lá no final, acabando com a falácia do regime semiaberto, e investir em políticas públicas de construção de presídios. Há pessoas progredindo antes mesmo do direito implementar para poder abrir vagas para outros. Sem estas duas questões, não há mínima possibilidade de saída.