Há um ano o Rio Grande do Sul enfrentava uma das piores tempestades da sua história. A chuva que começou a cair no dia 4 de setembro de 2023 castigou muito a região da Serra e deixou 11 municípios em situação de emergência. Influenciado principalmente pela umidade vinda da Amazônia, o volume excepcional de chuva para a primeira semana de setembro foi associado, na época, pelos meteorologistas como consequência do fenômeno El Niño e caracterizado como ciclone extratropical.
Em Caxias do Sul, no início daquele mês, foram registrados 192,2 milímetros de chuva em 72 horas, sendo que o previsto para os 30 dias do mês no município era de 163 milímetros. Em Vacaria, no Campos de Cima da Serra, foram 278 milímetros em apenas três dias, quando o previsto para o acumulado do mês era de 178 milímetros.
O volume de chuva aumentou o nível dos rios, causou alagamentos, danos estruturais e mortes no RS. A Defesa Civil do Estado confirmou, em 12 de setembro, 47 óbitos em razão da chuva. A maioria delas foi em Muçum, com 16, e Roca Sales, com 10. Na Serra, Rogério Godofredo de Oliveira, 37 anos, foi encontrado morto nas margens do Rio Taquari, em Santa Tereza.
Situação de emergência declarada em 11 municípios
Ipê, Nova Bassano, Nova Prata, Nova Roma do Sul, Nova Araçá, Bento Gonçalves, Bom Jesus, Campestre da Serra, Serafina Corrêa, Cotiporã e Protásio Alves declararam situação de emergência por conta dos estragos na chuva de setembro.
Localizada às margens do Rio Taquari, que chegou a 23,65 metros, quatro a mais que o recorde registrado em 2020, Santa Tereza declarou estado de calamidade pública depois de ter 30 casas destruídas e 380 pessoas afetadas.
A recuperação do município de 1,7 mil habitantes teve o auxílio do Estado, que repassou R$ 1,7 milhão para trabalhos em estradas e na limpeza urbana. Na entrada da cidade, um loteamento popular de 5.167 m² receberá 24 casas, de 44m², financiadas pelo A Casa é Sua — Calamidade, programa da Secretaria Estadual de Habitação e Regularização Fundiária.
Atingida também pela enchente de 18 de novembro de 2023 e 29 de abril, Santa Tereza segue em processo de retomada. A família Hasse, por exemplo, começou a se estabilizar somente agora. O barbeiro Eduardo Hasse, 22 anos, diz que pensou em se mudar, mas, por incentivo de um amigo, colocou a resiliência à prova ao abrir uma barbearia próximo da prefeitura:
— A gente tinha um restaurante perto do rio e as pessoas vinham passar o dia nos finais de semana. A cidade estava bem movimentada e muito bonita, hoje não é mais a mesma. Na terceira cheia, quase fui embora pra Bento ou Garibaldi, mas um amigo me aconselhou a ficar porque sou o único barbeiro da cidade e posso ter mais oportunidades aqui.
A mãe de Hasse, Claudete Lovani Haase, 41, instalou um novo restaurante no salão do clube de Santa Tereza — o antigo foi levado pela chuva. É a terceira vez que ela retoma os negócios, e, pela primeira vez depois da primeira enchente, recebeu, na semana passada, um grupo de 46 turistas de Farroupilha.
— Geralmente são grupos de terceira idade que vêm para conhecer os casarões antigos e param para um café. Moro aqui desde 1997 e o rio nunca tinha subido tanto a ponto de destruir tudo. Ninguém mais dorme quando chove e todos se preocupam com a previsão do tempo — diz.
Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), finalizado em julho, criou um mapa de inundação que antecipa os locais onde a água pode chegar. Em maio deste ano, quando uma nova chuva caiu, o estudo possibilitou que moradores de áreas críticas retirassem os pertences antes que as casas fossem atingidas.
A escola da Associação Santaterezense de Canoagem, um dos orgulhos da cidade, permanece instalada muito próxima ao Rio Taquari. Em setembro de 2023 foram perdidos dois barcos, mas nada que interrompesse por mais de dois meses os treinamentos, que seguem três vezes por semana. Professor de 12 alunos entre sete e 26 anos, Vinícius Vila viu a relação da população com o rio mudar depois de ele ter afetado de forma tão agressiva a cidade.
— Reformamos o pavilhão três vezes. As crianças ficaram um pouco traumatizadas, com medo da água, e cheguei a perder alunos que foram morar em outras cidades. O desânimo atingiu parte da população, mas a gente é forte — diz.
Ponte reconstruída em 138 dias
Símbolo do que a natureza foi capaz de destruir, a ponte de ferro inaugurada em 1930, entre Nova Roma do Sul e Farroupilha, foi levada pela força da água do Rio das Antas na noite de 4 de setembro.
Até que uma nova estrutura, financiada por uma série de ações, fosse inaugurada em janeiro, moradores do município viram a distância entre o hospital de referência, em Farroupilha, dobrar.
A arrecadação de R$ 7,8 milhões em 138 dias ganhou destaque nacional e oportunizou a criação de uma nova estrutura graças à venda de rifas e artigos alusivos à ponte. Miniaturas da ponte foram vendidas e uma edição limitada de cem facas, feitas com o ferro da estrutura que caiu, foi leiloada e também sorteada.
Eventos por toda a região arrecadavam fundos. Empresas, cooperativas e a paróquia realizaram doações. Em Nova Roma, shows de comédia e uma festa de Réveillon destinaram os lucros para associação criada por 14 pessoas duas semanas após a ponte cair.
Desde que a ponte foi inaugurada em 20 de janeiro, o tesoureiro da Associação Amigos de Nova Roma, Heleno Pasuch, é convidado para eventos de diferentes Estados para apresentar como a comunidade foi capaz de tal feito.
— Deu tudo muito certo, fizemos rifas e contamos com muito apoio dos cooperados do Sicredi que doaram seus ativos. Ao todo foram R$ 2,3 milhões da cooperativa. Seria um compromisso do Estado, mas que não podíamos esperar — diz.
No período em que o trajeto até o Hospital São Carlos precisou ser desviado, de acordo com o prefeito Douglas Pasuch, o município teve apenas dois casos de urgência e emergência — quando por ano eram cercam de cem. Nos 138 dias em que a ponte foi construída, foram as perdas financeiras dos produtores de Nova Roma do Sul as mais significativas. Pasuch calcula que o prejuízo diário era de R$ 150 mil sem a principal ligação do município:
— Somos o segundo maior produtor de peru do Estado. Deixávamos de arrecadar. A prefeitura gastava mais para levar pessoas para Farroupilha e os aviários não conseguiam entregar a produção. Se estivéssemos até hoje sem a ponte, nossa economia seguramente teria parado, mas 99% da população fez algo para tirar ela do papel e quando digo algo pode ter sido até uma oração.
O feito da Associação Amigos de Nova Roma do Sul fez com que a população não precisasse mais enfrentar a angústia vivida por pessoas como Daiane Propodoski Ferreira, na época grávida de oito meses. Para ter a filha, 26 dias depois da ponte cair, ela precisou percorrer o caminho alternativo em uma viagem de três horas, quando pela ponte o caminho levaria cerca de 45 minutos.
— Foi muita angústia. Meu medo era da estrada que precisaríamos fazer em caso de emergência. E acabamos precisando! Minha filha nasceu saudável, graças a Deus, mas foi traumatizante — relembra Daiane.
Estragos em outras cidades
Em Nova Bassano, 40 residências foram danificadas. O Rio Bassanense foi o primeiro da região a transbordar na tarde do dia 4 de setembro.
Em Serafina Corrêa o prejuízo na agricultura e pecuária foi calculado, na época, em R$ 35 milhões.
Em Bento Gonçalves, 26 hectares de área plantada foram devastados, 115 casas foram destruídas e 200 danificadas, a maioria delas na região de Linha Alcântara.
Na RS-431, entre Santa Tereza e São Valentim do Sul, no distrito de Santa Bárbara, a travessia do Rio Taquari é feita atualmente por balsa desde que a ponte foi levada. Os municípios aguardam a liberação do Ministério da Integração que irá destinar R$ 24,5 milhões para a construção de uma nova estrutura. A obra orçada em R$ 31,3 milhões será feita por uma empresa mineira e terá contrapartida do Estado. Esta é também uma importante ligação ao município de Bento Gonçalves.