Com um modelo de funcionamento que opera com o fluxo natural do rio, sem depender do acúmulo de água, usinas hidrelétricas localizadas na Serra não tiveram influência nas inundações que atingiram o Vale do Taquari e vitimaram quase 50 pessoas no início de setembro. É o que demonstra a Cia Energética Rio das Antas (Ceran), que opera as hidrelétricas Castro Alves, Monte Claro e 14 de Julho, localizadas entre Nova Roma do Sul e Cotiporã. Especialistas em Recursos Hídricos ouvidos pela reportagem atestam o que é afirmado pela concessionária e garantem que as barragens não têm como alterar o fluxo do rio.
Em operação desde 2004 e 2008, as hidrelétricas da Ceran foram construídas para operar sob o modelo a fio d'água, que utiliza a força da correnteza do Rio das Antas para gerar energia. Isso significa que a usina funciona sem precisar estocar água, diferentemente das hidrelétricas tradicionais, que necessitam que grandes áreas sejam alagadas para garantir a produção energética.
Segundo o professor Fernando Dornelles, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, as barragens da Ceran não possuem capacidade de armazenar água e nem controlar a vazão dela. Nesse formato de usina, o rio apenas segue o fluxo, sem ter interferência ou ser potencializado pelas estruturas.
Pelo sentido da trajetória do Rio das Antas, a barragem da Usina Hidrelétrica Castro Alves, de Nova Roma, é a primeira a captar água. A estrutura não tem uma comporta, a porta que regularia o escoamento da água. No entanto, há uma abertura permanente, chamado de vertedouro, que garante a vazão ecológica, responsável por manter a fauna e flora do rio e arredores na curva do rio (alça de vazão reduzida devido ao desvio da água por túneis para as turbinas).
— O vertedouro faz com que parte da água siga o seu caminho durante as cheias, fazendo também com que a barragem não entre em colapso. É uma segurança. Nas outras duas barragens, existem pequenas comportas que ajudam na vazão ecológica — explica Dornelles, professor e pesquisador do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No caso de uma forte chuva, como no dia 4, em que foram registradas precipitações acumuladas entre 200 e 300 milímetros nos municípios na parte alta da bacia hidrográfica, a vazão segue passando pelo vertedouro, o que garante que as barragens não sejam comprometidas. As comportas também dão auxílio para isso.
— Esses três barramentos nem melhoraram e nem pioraram a situação das cheias. Muito provavelmente, se não existissem as barreiras, alguns iam estar clamando para que se construísse barramentos acima. Para quê? Para amortecer a cheia — reforça Dornelles, lembrando que as barragens também não conseguem evitar as inundações por não terem volume suficiente e não contarem com grandes áreas alagadas. Confira no quadro abaixo:
Exigências ambientais para a instalação
Vânia Schneider, doutora em Engenharia de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, fez parte do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Taquari-Antas, fórum de debate e preservação regido por lei estadual. Ela acompanhou o surgimento das hidrelétricas e relembra que projetos desse tipo passam por rigorosas pesquisas, avaliações e audiências públicas. Também são exigidos licenciamentos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). A partir da instalação, existe uma fiscalização frequente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que monitora as atividades das usinas.
Segundo Vânia, as comportas das usinas Monte Claro e 14 de Julho têm espaços pequenos, que podem liberar um volume de água muito inferior em comparação com aquele registrado no Rio das Antas e, consequentemente, no Rio Taquari no dia das enchentes.
No episódio do início do mês, a pesquisadora lembra que a vazão decamilenar (termo utilizado para vazão equivalente a 10 mil anos, tornando-se limite de segurança) das três barragens praticamente chegou ao limite. No caso da Castro Alves, números preliminares da Ceran dão conta de que o índice foi superado, com vazão de 9,7 mil metros cúbicos por segundo, enquanto o limite é de 9,1 mil metros cúbicos por segundo. A taxa serve de base de segurança sobre a vazão que as barragens podem suportar.
— A vazão da Castro Alves extrapolou os 10 mil anos, que é a recorrência média de ocorrer um evento com vazão superior máxima calculada para aquele reservatório. A partir do momento que a água passou por cima da crista (parte superior da barragem), o rio vai se comportar como se nada tivesse ali, como se fosse só um pequeno obstáculo no meio do caminho. E quanto mais ela subir, maior velocidade terá. É o que aconteceu: criou-se uma onda de cheia que passou por cima da Usina Castro Alves, levou a ponte de Nova Roma e depois seguiu fazendo seu estrago lá para baixo — afirma Vânia.
Sobre possibilidade de outros impactos ambientais ou até mesmo de eventos que poderiam ser relacionados às hidrelétricas, a pesquisadora afirma que, na região, o momento em que foi notada uma mudança foi na construção da barragem.
— O que está ocorrendo ali na construção? Eu estou mudando um pouco a dinâmica do rio naquele ponto. Ao invés do rio correr solto, eu estou segurando ele. No momento que eu coloco barramento, estou freando o rio, quando a vazão se comporta dentro da média. Quando a vazão extrapola, como foi o caso de agora, a barreira não tem função nenhuma. A água passa por cima e vai embora — explica a professora.
As partes das hidrelétricas:
- Reservatório: formado pelo represamento das águas do rio, por meio da construção de uma barragem.
- Barragem: local onde é construído o vertedouro da usina, por onde passa o excesso de água do reservatório.
- Casa de força: parte onde são instalados os equipamentos para produção de energia.
- Circuito hidráulico: formado por condutos, canais ou túneis, que levam a água das barragens até as turbinas.
O papel da Ceran
A Ceran atua no Estado desde 2001, quando recebeu a concessão para operar as hidrelétricas da Serra por 35 anos. A empresa é controlada majoritariamente pela CPFL – Geração de Energia S.A., com participações da Companhia Estadual de Geração de Energia Elétrica (CEEE) e da Statkraft Energias Renováveis, maior geradora de energia renovável da Europa. A produção de energia da Ceran é equivalente ao uso de 200 kWh/mês de 630 mil famílias. A companhia atua nos territórios de Antônio Prado, Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Cotiporã, Flores da Cunha, Nova Pádua, Nova Roma do Sul, Pinto Bandeira e Veranópolis, Carlos Barbosa, Caxias do Sul e Farroupilha.
Em nota, a Ceran comunicou que, durante a forte chuva e a cheia, seguiu monitorando as estruturas das barragens. Em nenhum momento houve a possibilidade de rompimento, o que fez com que as sirenes não fossem acionadas. Ao mesmo tempo, a companhia afirma que manteve contato com a Defesa Civil dos municípios.
Após a tragédia no Estado, a prefeitura de Bento Gonçalves questionou a Ceran sobre a possibilidade de abertura das comportas e comunicou o Ministério Público Federal (MPF) sobre o questionamento. A Aneel, que fiscaliza as hidrelétricas, informou que a concessionária tomou as medidas cabíveis. O MPF afirma que, no momento, não há nenhum processo aberto relacionado à Ceran. Já no último dia 8, o órgão abriu um inquérito amplo para apurar as providências adotadas na cheia, solicitando informações a prefeituras e Defesa Civil e os comunicados repassados pela empresa.
A empresa elaborou um material informativo para esclarecer o funcionamento. Confira:
- Como são os reservatórios a fio d’água das usinas da Ceran: o projeto das três usinas é muito similar entre si. Elas possuem reservatórios sem capacidade de acumular água, caracterizados como a fio d’água. Isso acontece porque nossas usinas operam apenas com fluxo natural do rio.
- Então, por que é necessária uma barragem? Apesar de pequeno, o reservatório a fio d’água é necessário para possibilitar a captação da água do rio que irá mover as turbinas e gerar a energia elétrica.
- Os reservatórios podem amortecer uma cheia? Não, pois pela pequena dimensão e característica a fio d´água, todo fluxo que chega na barragem em situações de alta vazão precisa passar pela mesma.
- E como a água passa pela barragem? Toda água que não vai para as turbinas passa sobre crista a barragem. Em situações de alta afluência, a vazão de água que passa pela barragem é a mesma que passaria se ela não existisse.
- Imagens mostram água saindo pelo lado da barragem. Por quê? Em todas as barragens da Ceran existe um pequeno extravasor para mantemos o fluxo do rio no trecho da alça. É isso que preserva a fauna, flora e uso do rio neste trecho.
- As comportas não aumentam o fluxo da água? As usinas de Monte Claro e 14 de Julho, por serem projetadas para uma maior vazão que Castro Alves, possuem duas comportas de vertedouro. Elas são abertas somente quando a água já está passando sobre a crista da barragem, para não sobrecarregar as estruturas, não alterando a vazão do rio.
- As comportas poderiam ficar fechadas em grandes cheias? Além de não alterar em nada o fluxo de água, pois o mesmo passaria sobre a crista da barragem, a não abertura dessas comportas colocaria em risco as estruturas e, consequentemente, a segurança da população.