As três usinas hidrelétricas da Serra não causaram ou ajudaram a causar a inundação no Vale do Taquari. Especialistas de Recursos Hídricos entrevistados pela reportagem explicam o triste episódio que atingiu o norte e nordeste do Estado foi provocado especialmente pela forte chuva do início de setembro. Municípios da Bacia Hidrográfica do Rio Taquari-Antas registraram precipitação acumulada entre 200 e 300 milímetros.
Soma-se a isso o fato de a região atingida estar na parte inferior da Serra, e os municípios terem se desenvolvido em áreas de risco, no caso, à beira de rios. Como explica Fernando Dornelles, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, a chuva atingiu praticamente todos os pontos de origem dos rios que fazem parte da Bacia Antas-Taquari. A partir disso, a água seguiu o fluxo, chegando aos municípios nas horas seguintes:
— Nas 24 horas tivemos acumulados entre 200 e 300 milímetros nas cabeceiras dos rios. A região é morro e morro. Os rios respondem muito rápido. Choveu, gera escoamento e manda a água vale abaixo. A água desce nos vales de forma muito rápida — explica Dorneles, que é professor e pesquisador do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A situação, porém, vai além. Vânia Schneider, doutora em Engenharia de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, lembra que a forte chuva surge do fenômeno El Niño, causado especialmente pelo aquecimento global.
— Temos que levar em consideração a quantidade de chuva, de 300 mm, e em toda bacia. Ou seja, toda a área da bacia foi regada, toda a área recebeu água, e toda água que caiu no território escoou para o canal principal, que é onde estão esses municípios que foram atingidos — reforça a pesquisadora.
O que também demonstra a relação da forte chuva com as inundações é o monitoramento sobre o nível do rio. No Sistema Nacional de Informação sobre Recursos Hídricos (Snirh), da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), dados mostram que o nível do Rio das Antas subiu a quase 25 metros entre 4 e 5 de setembro, a partir da chuva que atingiu a região. Antes disso, o rio mantinha o nível médio de quase dois metros de profundidade, o que mostra que a hidrelétrica não consegue afetar o volume de água.
Os dados são gerados e informados pela concessionária, inseridos em sistemas de órgãos responsáveis como Aneel e ANA. Além disso, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), que coordena a Sala de Situação com a Defesa Civil, também têm acesso às informações.
Pequenas hidrelétricas também não causam impacto
Pelos rios da Serra, há outras estruturas geradoras de energia. Cooperativas e empresas constroem as próprias pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que têm capacidade entre 5 megawatt (MW) e 30 MW - a potência é o que difere das usinas maiores, com capacidade de geração de mais de 30 MW.
Por serem menores, as PCHs estão presentes em maior número na Bacia Ria Taquari-Antas. Conforme dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), são 39 PCHs espalhadas em cerca de 25 municípios da Serra — destes, São Francisco de Paula e Caxias do Sul lideram na região, com oito e seis usinas deste tipo, respectivamente. Como reforça Dornelles, se as grandes estruturas não são capazes de interferir no rio, as menores também não trouxeram efeitos.
O presidente da Associação Gaúcha de Fomento às PCHs (AGPCH), Paulo Sérgio Silva, vê que o Estado é pioneiro nesse tipo de usina pela grande área hidrográfica. Além disso, órgãos ambientais anteciparam-se e desenvolveram diretrizes para que as empresas peçam o licenciamento deste tipo de obra. Uma delas é um mapa hidrológico da Fepam, que mostra as áreas que podem ser licenciadas e aquelas que são ambientalmente sensíveis.
— Nosso impacto é muito pequeno sobre o ponto de vista ambiental. Temos uma legislação que exige que o entorno de uma pequena hidrelétrica, tenha uma APP (área de preservação permanente). O empreendedor tem que adquirir essa terra e preservar esse ambiente — descreve Silva.
Segundo o presidente da associação, esse modelo de conservação dá mais segurança para investidores, por conta dos valores gastos em levantamentos e estudos para os licenciamentos. Conforme a Aneel, há pelo menos nove novas estruturas como essa que aguardam para iniciar obras.
O que pode ser feito
O episódio chama atenção para ações preventivas que deveriam ser adotadas por gestores e pela sociedade. Em nota, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) lembra que a ponte de ferro de Nova Roma do Sul, na Serra, caiu às 17h do dia 4, quase 24 horas antes da onda da cheia atingir Lajeado, no Vale do Taquari. Ou seja, a água percorreu 170 quilômetros entre as duas cidades. Mesmo assim, como lembra o comunicado, pessoas precisaram buscar refúgio em telhados. Para o instituto, esse exemplo demonstra a necessidade de melhorar o sistema de alerta à população. Dornelles relembra, ainda, que a curto prazo busca-se aprimorar o sistema de previsões climáticas:
— Operacionalizar um sistema de previsão e alerta de cheias mais assertivos, onde ele diga que cota o rio vai chegar e em quantas horas. Acredito que a Defesa Civil fez o melhor que ela pode. Hoje, não cabe nenhuma crítica a quem atuou lá na ponta. Eles estão atuando na ponta de um sistema que deve ser pensado desde a coleta da água da chuva para um hidrólogo rodar um modelo, conseguir fazer uma previsão antecipada no tempo e tomar decisão de emitir alerta. É uma cadeia de ações que devem estar bem concatenadas, e acredito que faltou justamente essa informação assertiva.
Outra sugestão é elaborar zoneamentos das áreas que podem ser atingidas pela água, o que facilitaria uma tomada de ação. Dornelles levanta ainda a hipótese da discussão sobre uma ferramenta legal para que o Estado e os municípios possam ter mais condições de retirar pessoas das residências em cenários como o que aconteceu no Vale do Taquari.
— O zoneamento define as áreas em que não se pode ter edificações, as áreas onde pode haver uma ocupação com restrições e onde é seguro para ocupar. Na zona com restrições deve se ter um código de edificações orientando como uma edificação deve ser construída para conviver com as inundações, ficando íntegra e que possa facilmente ser recuperada após as inundações — exemplifica o professor.
O IPH sugere uma pesquisa de campo para investigar quais materiais de construção foram utilizados nos imóveis completamente destruídos. Vânia, que acompanha os rios há 30 anos, concorda que os protocolos de aviso à população ainda são deficitários e podem ser melhorados, bem como a educação ambiental para que a conscientização da sociedade sobre o que pode ocorrer a partir da mudança climática que ocorre no planeta.
Já o engenheiro agrônomo da prefeitura de São Francisco de Paula, Lucas Casara Teixeira, vê que as PHCs podem gerar impactos ambientais nos rios — mas nada que aumente o nível ou volume das águas. O profissional do município analisa que pode existir uma redução de vazão em épocas de seca, por exemplo. Por outro lado, Teixeira destaca que a geração de energia é mais limpa que outras formas e vê um forte interesse na preservação da natureza ao entorno dos reservatórios, que também atraem empreendimentos de ecoturismo:
— Ocorrem alterações na temperatura da água e na concentração de sais, o que afeta os organismos aquáticos e peixes encontram maiores obstáculos para o desenvolvimento dos seus ciclos migratórios. Por outro lado, há que se destacar que a energia hidrelétrica é uma das formas mais limpas de geração de energia, visto que não demanda queima de combustíveis e praticamente não gera resíduos sólidos na sua operação. Especialmente no caso das barragens do município de São Francisco de Paula, com destaque para as barragens do Sistema Salto, existe um forte interesse por atividades relacionadas ao ecoturismo, o que gera naturalmente um grande interesse pela preservação dos ecossistemas do entorno dos reservatórios por parte dos empreendedores do setor e da sociedade em geral.