Encontrar maneiras dignas de enfrentar o diabetes tipo 1 (DM1) é um dos principais objetivos do Grupo Gotas de Vida, de Caxias do Sul. Composto por cerca de 90 famílias de crianças e adolescentes com DM1, os integrantes estão em busca do apoio da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) para que o município ofereça gratuitamente um aparelho chamado FreeStyle Libre. O dispositivo realiza o monitoramento de glicose a partir de um sensor, sem precisar que o portador da DM1 fure o dedo a todo momento em que precisar medir os índices glicêmicos.
O Gotas de Vida destaca que o objetivo não é o conforto que o aparelho fornece, apesar de esse ser um bônus. A razão principal é o fato do dispositivo oferecer um controle para monitorar e apresentar os índices da glicose em relatórios completos e acessíveis. Dessa forma, os pais e responsáveis conseguem controlar os níveis glicêmicos das crianças e adolescentes de forma mais completa, evitando a instabilidade glicêmica e possíveis complicações.
Com o FreeStyle Libre é possível monitorar a glicose da criança a qualquer momento do dia e, caso seja preciso, aplicar a insulina necessária para corrigir picos altos ou baixos dos índices glicêmicos. O Libre é um sensor aplicado no braço e que faz leituras contínuas a cada minuto, armazenando até oito horas de dados. Ele tem duração de 14 dias e custa, em média, R$ 290.
De acordo com o relato de Cristiane Taufer, mãe de uma menina de sete anos e portadora de DM1, para que uma criança tenha um controle considerável com a caneta de insulina, seria preciso furar o dedo ao menos 10 vezes ao dia pelo resto da vida.
— Hoje, uma criança DM1 é tratada pela insulina, que é aplicada com agulha todas as vezes que come e em momentos de picos de glicemia. Para podermos dosar a insulina é necessário sabermos como está a glicemia e, para isso, se faz um furo na ponta do dedo. A gota de sangue que sai é aplicada em uma fita anexada em um monitor, que avisa o número glicêmico e, a partir dele, se define a dosagem da insulina (a ser aplicada). Ou seja, com essa técnica (furar a ponta do dedo) todos os dias, 10 vezes ao dia, a criança não tem tempo de curar o machucado até o próximo furo — disse.
A falta do controle glicêmico pode causar complicações como problemas renais, cegueira e amputações. Segundo o médico endocrinologista de Caxias Daniel Panarotto, a longo prazo o diabetes tipo 1 pode causar complicações nos olhos (retinopatia) e diminuição da sensibilidade dos nervos que conduzem calor, frio, vibração, toque e dor aos pés e outros órgãos (neuropatia do diabetes). Além disso, podem ocorrer complicações cardiovasculares (infarto, acidente vascular cerebral, obstrução arterial e trombose) e nefropatia (alteração causada pelo diabetes) que, em última instância, pode levar à hemodiálise.
— As complicações agudas são as hipoglicemias, as mais temidas por crianças que têm diabetes por terem sintomas desagradáveis e, se não forem tratadas, podem levar à perda de consciência e até à morte. Em contrapartida, as crises de hiperglicemia exigem internação e tratamento específico — disse o médico.
Como muitas crianças com DM1 são assintomáticas, elas não conseguem perceber as alterações glicêmicas. Por isso, o controle feito com FreeStyle Libre se torna mais seguro. Através dele, os pais podem conferir os índices a qualquer momento. Para isso, basta escanear o sensor com o leitor do aparelho ou com o aplicativo, através de um celular.
— Se formos conferir a ponta de dedo somente quando a criança estiver muito mal pode ser tarde demais — destacou Cristiane.
Um dos fatores mais importantes a respeito do equipamento é que ele indica a tendência da glicose. Segundo Panarotto, o aparelho também informa se ela está subindo ou descendo rapidamente.
— Você vai ler a medida quando escanear, mas ele está medindo mesmo que você não faça a leitura. Isso é importante porque, quando você faz o download dos gráficos, conseguimos enxergar uma curva de 24 horas, onde estão memorizadas as medidas. Para o médico há uma informação detalhada do que está acontecendo e ele vai poder correlacionar essas informações com a ingestão de carboidratos, com a alimentação, injeções de insulina, períodos de exercício e estresse e, assim, fazer um ajuste preciso do tratamento — destacou.
O especialista lembrou ainda que quanto maior for o controle da glicemia, menores são as chances de uma pessoa portadora de DM1 enfrentar complicações no futuro.
— Uma pessoa pode passar a vida inteira com glicose alta sem sentir nada. É importante que você monitore com frequência e, na minha experiência, o monitoramento frequente é o parâmetro que mais se correlaciona com o bom controle. Quanto mais testes você fizer, melhor é o controle da glicemia e menor é a chance de complicações — ressaltou o médico.
Apoio do poder público
O Grupo Gotas de Vida, com apoio dos vereadores Felipe Gremelmaier (MDB) e Estela Balardin (PT), entrou em contato com a SMS para explicar a situação enfrentada pelos portadores de DM1 na busca do fornecimento do FreeStyle Libre. A reunião foi realizada dia 24 de abril. Na ocasião, a situação foi exposta e foi feito pedido do fornecimento do aparelho para as cerca de 130 crianças e adolescentes de Caxias com diabetes tipo 1.
Após o pedido, a secretária se encarregou de verificar como outros municípios brasileiros, apresentados pelos pais, fazem para atender a esse público, e se dispôs a entrar em contato com o governo do Estado e com a empresa fornecedora para checar a possibilidade de Caxias atender essas pessoas. Desde então, o grupo aguarda o retorno da SMS.
Em nota, a SMS afirmou que "o dispositivo FreeStyle Libre não está contemplado no rol de produtos fornecidos pelo SUS pelo Estado ou Ministério da Saúde" e que a pasta "realiza estudo sobre a possibilidade de fornecimento, o que demandaria captação de recursos estimados em cerca de R$ 1 milhão ao ano". Conforme a secretaria, "152 crianças e adolescentes fazem retirada de fitas e lancetas para controle da glicose fornecidos pelo SUS" na cidade e há casos de pacientes em uso de insulina, também fornecida pelo SUS.
Aparelho é capaz de mudar vidas
Só quem convive com a realidade do diabetes é capaz de compreender os desafios da doença. As picadas diárias para aplicação de insulina, o controle minucioso dos alimentos ingeridos, as pontas dos dedos repletas de furos e a preocupação constante com os valores glicêmicos são apenas alguns dos aspectos do dia a dia de uma pessoa com DM1.
A caxiense Laura Becker Zeferino, 10 anos, é uma das tantas crianças que enfrenta essa realidade. A menina descobriu a doença aos sete anos e, desde então, sofria com a quantidade de vezes que precisava furar a ponta dos dedos. Não apenas a dor era um dos fatores negativos, mas, principalmente, a falta de informações detalhadas do que acontecia com seu corpo em um período de 24 horas.
Segundo a mãe da menina, Aline Becker, Laura já estava começando a apresentar indícios de problemas renais por conta de glicemias muito altas. Ela relatou que a médica de Laura explicou que, apesar de durante o dia os índices estarem teoricamente bons, à noite eles ficavam alterados.
— Tem até uma regrinha que dizem que tem que medir antes de comer para saber quanto aplicar de insulina e duas horas depois para ver se o alimento e quantidade aplicada deram certo. Mas, nessas duas horas depois que tu come, muita coisa acontece — disse Aline.
Por conta da situação, a mãe da menina comentou com um grupo de amigos como os dias estavam sendo difíceis. Tendo conhecimento disso, eles se propuseram a ajudar mensalmente com o FreeStyle Libre. E, há cerca de dois meses, a vida de Laura passou por uma revolução.
— No primeiro dia que eu falei para ela que a gente tinha ganhado o aparelho, que não ia mais precisar furar o dedo, ela acordou com a glicemia baixa, o que era incomum. Só o fato de ela saber que não ia mais precisar fazer essas picadas já fez com que se animasse. Percebi que a nossa rotina e o humor melhoraram muito. Claro, ainda tem as picadas da insulina, mas reduziu pela metade — destacou a mãe.
Aline comentou também que Laura está mais feliz e animada, o que é essencial para um diabético. Isso porque o emocional tem um poder gigantesco no controle da glicemia. Diferentemente do que a maioria das pessoas acha, não é apenas a comida que altera a glicose do corpo. Felicidade, tristeza, raiva, ansiedade e até a ingestão de medicamentos têm influência direta.
— Os dedos dela já tinham caroços de tanto furar. Na primeira semana com o equipamento, a gente teve uma melhora extraordinária, principalmente pela questão de que tu consegues medir o tempo inteiro. Isso é muito importante — contou.
Após começar a utilizar o aparelho, diversas coisas mudaram na realidade da mãe e da filha. Uma delas é o fato da glicemia ter passado a atingir índices muito baixos. Durante o dia, Laura sente que não está bem e sinaliza para a mãe, que deixou o emprego para cuidar da filha. Contudo, como à noite Laura está dormindo, ela não sente quando os níveis estão baixos.
— Ela tem muitas hipoglicemias noturnas e isso é muito perigoso. Estou medindo de hora em hora para saber como está — desabafou.
Aline destacou ainda que o dispositivo está a ajudando também a entender o impacto dos alimentos.
— Eu consigo ver o que eu posso oferecer para ela comer e o que eu não posso — finalizou.