Doar sangue é fazer um pacto social com a vida. É permitir que até quatro pessoas sejam salvas apenas com uma bolsa de 470 mililitros de sangue. Doar é ficar sem saber para quem vai a doação, mas guardar para si o sentimento de dever cumprido.
Cerca de 10 mil pessoas compartilham esses sentimentos após realizar doações sanguíneas, no período de um ano, ao Hemocentro Regional de Caxias (Hemocs). Essa multidão solidária foi homenageada em alusão ao Dia Mundial do Doador, celebrado na quarta-feira (14), com diversas atividades realizadas de 12 a 17 de junho.
Contudo, apesar de parecer elevado, o número de 10 mil pessoas, segundo o diretor técnico do Hemocs, Roque Lorandi, é abaixo do ideal. Diante de uma planilha no computador, Lorandi avalia que, desde 2015, a média de doadores vem caindo. O ideal seria contar com 1,2 mil doações por mês, porém, atualmente cerca de 833 doações são registradas pela equipe em Caxias. Esse material coletado é dividido entre os 49 municípios da Serra, abrangendo cerca de 1,5 milhões de pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Caxias do Sul e Bento Gonçalves são os municípios que mais precisam desse volume. Cidades mais afastadas como Vacaria e Canela, entre outras, possuem agências do Hemocs com pequenos estoques para emergências.
— Garantir a segurança transfusional é nosso calcanhar de Aquiles. Quando não temos bolsas de sangue disponíveis aqui, fazemos buscas ativas aos doares frequentes, solicitamos a outros hemocentros do Estado ou compramos da rede privada — explica Lorandi.
Ele reforça que a queda na quantidade de doadores é a nível mundial, sendo que o público mudou de perfil e agora prefere que o Hemocentro vá até ele. Isso significa que a coleta acaba sendo realizada em empresas, centros comunitários e outros locais.
São dados que reforçam a complexidade de um serviço vital para o sistema de saúde da região. Por trás dos números, há muitos desafios para garantir estoques e diversas etapas a serem cumpridas antes de encaminhar uma bolsa de sangue para um paciente. Confira:
Equilíbrio de estoque
Por conta da queda no número de doadores,os estoques dos tipos sanguíneos são classificados em três categorias: estável, em alerta e crítico. Esses níveis mostram o desafio diário do Hemocs para abastecer hospitais. No dia 13 de junho, por exemplo, data da última atualização de estoques disponibilizadas pelo diretor, os tipos AB- e O+ estavam em estado crítico. No primeiro caso, o ideal seria ter duas bolsas, mas o órgão não tinha nenhuma. Em relação ao sangue O+, a equipe precisa ter 105 bolsas para um estoque estável, sendo que havia apenas 28 unidades disponíveis.
O tipo sanguíneo A- era enquadrado em estado de alerta. O ideal, segundo dados do Hemocentro, seriam ter 11 bolsas, mas apenas seis estavam estocadas. Para o tipo A+, o volume ideal é 75 bolsas; naquela terça-feira, havia 61 unidades, o que deixou o Hemocs em alerta. A situação era a mesma para o chamado doador universal, do tipo O-. Havia somente 13 bolsas, menos da metade do ideal que é 30. Já os tipos AB+, B+ e B – tinham estoques estáveis.
Chegada
Todo o processo de coleta demora cerca de 40 minutos. No Hemocs, a pessoa faz um cadastro na recepção e responde a perguntas como idade, peso, endereço e outros dados pessoais. O atendente solicita ainda, se o doador toma alguma medicação, se está com doença ou tem pré-disposição para alguma enfermidade. Segundo Lorandi, as exigências do Ministério da Saúde são bastante rígidas.
Pré-triagem
Após o cadastro, o possível doador aguarda para ser chamado na pré-triagem. Na sala onde há técnicos de enfermagem e enfermeiros, a pessoa passará por exames. Ali, é feita a conferência de peso, da condição física, a aferição de pressão e da temperatura corporal e o estado de saúde. Os exames iniciais são feitos pelo sangue. Cerca de 4 mililitros serão coletados para uma rápida avaliação da equipe. Nesse protocolo, é conferido se a pessoa tem doenças graves e que a impeçam de doar, como HIV, hepatite, diabete. O exame ainda mostra se as plaquetas estão em dia ou, ainda, se a pessoa tem anemia.
As pessoas que estão inaptas a doar sangue já são informadas na pré-triagem. Segundo o Ministério da Saúde há alguns impedimentos temporários como sintomas gripais, febre e diarreia nos últimos 14 dias, gravidez, parto ou aborto dentro de 90 dias, ou ainda, cesariana nos últimos 180 dias. A amamentação durante o primeiro ano de vida do bebê, consumo de medicamentos como antidepressivos, anticonvulsionantes, algumas cirurgias, endoscopia, colonoscopia por seis meses, tatuagem, acupuntura e micropigmentação e piercing impedem a doação por 12 meses. Outros impedimentos são definitivos, como ter tido hepatite após os 11 anos de idade, ter ainda hepatite B, C ou D, HIV, doença de Chagas e malária.
Triagem
Se nada disso for detectado no processo anterior, o possível doador passa para a triagem. Esse procedimento é uma consulta com uma profissional do Hemocs que faz mais uma análise do histórico do paciente em relação a doenças, se ele possui alguns dos empecilhos citados acima que podem deixar a pessoa inapta a doar. Essa conversa é individual, não é possível entrar acompanhante. Depois disso, o possível doador será encaminhado para a próxima sala.
A doação de sangue, em si, demora seis minutos
Sentado na poltrona de doação, o doador é picado por uma agulha um pouco mais grossa que uma utilizada na aplicação de vacinas como a da gripe, por exemplo. Coleta-se cerca de 9 mililitros por quilo do doador, sendo o máximo permitido de 470 mililitros de sangue. Além disso, é coletada uma bolsa pequena de sangue, com cerca de 9 mililitros, para envio para exames. A agulha fica no braço do doador por cerca de seis minutos.
Uma das orientações do profissional que acompanha a doação é que a pessoa fique abrindo e fechando a mão. O movimento aumenta o fluxo sanguíneo permitindo que a doação tenha maior celeridade. Finalizada a coleta, o enfermeiro ou o técnico de enfermagem retira a agulha e a bolsa de sangue. A bolsa maior é movimentada para que o anticoagulante fique uniforme dentro e o sangue não estrague. Uma pequena quantidade do sangue coletado fica em uma bolsa menor, que é separada para exames.
O doador tem alimentação e hidratação disponibilizada de forma gratuita ao final do processo de coleta. Ele recebe um lanche composto por frutas, sanduíche, bolacha de água e sal, suco, água chá e café. A orientação é que o mesmo deve permanecer 15 minutos no local para garantir que está bem antes de ser liberado. Todo o processo de doação de sangue, do cadastro até a saída, demora cerca de 40 minutos A pessoa recebe um atestado médico pelo período em que esteve doando sangue.
Os homens podem voltar a fazer doações de sangue após 60 dias, respeitando um limite de quatro doações por ano. As mulheres podem retornar após 90 dias, não excedendo três doações por ano. Segundo Roque Lorandi, a maioria do público doador hoje em Caxias são homens, com idade entre 20 e 30 anos e pessoas com Ensino Superior completo.
Sangue coletado percorre um caminho dentro e fora do Hemocentro
Independentemente do tipo sanguíneo do doador, a quantidade coletada passará pelo mesmo processo. O sangue inicialmente fica em repouso durante quatro horas na sala de processamento. Depois, dentro de uma máquina que é similar a uma centrífuga, os hemocomponentes são divididos. Uma bolsa de sangue é dividida entre três e quatro hemocomponentes, segundo Lorandi.
Geralmente é retirado uma bolsa de plasma, uma de plaquetas e uma de sangue, chamado de Chad (concentrado de hemácias) pela equipe do Hemocs. O plasma é um líquido amarelo claro que representa 55% do volume total de sangue: por ele circulam elementos nutritivos essenciais para as células. Já as plaquetas são necessárias para a cicatrização de feridas e reparação de vasos sanguíneos.
Cada bolsa de hemocomponente é rotulada com um número diferente para que o rastreamento seja possível. Depois de identificados, a próxima sala a receber as amostras é o laboratório de sorologia, onde o sangue é analisado novamente com o objetivo de identificar doenças. Uma pequena amostra do material, então, é enviada para um laboratório, cadastrado pelo Ministério da Saúde, em Florianópolis (SC), para análise mais minuciosa. Esse laboratório envia os resultados para o Hemocs em 24 horas. Outra amostra fica sendo analisada também em Caxias, para que os resultados sejam confrontados. Se forem positivos para doenças, o sangue é descartado; se forem negativos, o processo de doação continua.
Na sequência os profissionais de Bioquímica do Hemocs, que compõe uma equipe de 45 servidores, utilizam o laboratório de imuno-hematologia para equalizar os componentes do sangue. O diretor salienta que não é apenas a tipagem sanguínea (A+, A-, B+, B-, AB+, AB-, O+ e O-) que precisa ser igual entre o doador e o receptor, há outros inúmeros componentes precisam ser equilibrados, antes que a transfusão seja liberada.
Exames finalizados e aprovados, as bolsas de sangue, de plasma e de plaquetas vão para a sala de distribuição. O espaço é equipado com inúmeros refrigeradores que mantêm cada hemocomponente na temperatura adequada. Cada tipo sanguíneo já está dividido e estocado. O sangue, deve ficar na temperatura de 3°C, com validade de 35 dias. Já as plaquetas ficam entre 20°C e 24°C, com durabilidade de cinco dias e o plasma é congelado, em uma temperatura de -30°C, com validade de até um ano.
Referência regional
Caxias do Sul é referência para os demais 48 municípios da Serra. Em 16 cidades, há agências, locais similares ao Hemocs onde se guardam pequenos estoques para emergências. Dentre elas está Canela, que devido à distância, possui uma agência com algumas bolsas. Para repor esses estoques menores ou em casos de emergência, o Hemocs tem esquemas de transporte de sangue. Todas as quintas e sextas-feiras, são enviadas as bolsas de sangue para as agências. Ainda, em caso de necessidade, os médicos entram em contato com a direção do Hemocentro de Caxias e solicitam a quantidade de bolsas que precisam para um determinado procedimento.
Um paciente que vai passar por cirurgia cardíaca, por exemplo, precisa de pelo menos 10 doadores de sangue. Já um paciente que precisa fazer um tratamento de leucemia, segundo Lorandi, pode precisar de cerca de 120 doadores de plaquetas por mês. O diretor técnico comenta que, normalmente, um paciente adulto com leucemia, pesando na faixa dos 70 quilos, precisa fazer transfusões de sangue com frequência para o tratamento da doença. Uma transfusão mobiliza sete doadores, fazendo o procedimento a cada dois dias, o que chega a 30 pessoas em uma semana. No somatório de quatro semanas, 120 pessoas serão mobilizadas.
Por isso, quando uma pessoa precisa utilizar o estoque de sangue, é comum que sejam feitas campanhas de doações, em que as pessoas vão até o Hemocs em prol de uma pessoa. Mas, na visão do diretor técnico, não é possível colocar a carga da reposição apenas sobre a família do paciente, que já está passando por uma fase difícil com a doença.
— Não temos como colocar uma obrigatoriedade sobre a reposição, como que você vai mobilizar 120 pessoas para doação em uma semana? Por isso, a conscientização é de todos — lembra Lorandi.
Ele também esclarece que não há custos para o uso do estoque do Hemocs para as famílias. O acesso ao sangue é um direito. O diretor comenta que a distribuição aos hospitais é um dos serviços mais delicados, pois, quando os estoques estão baixos, ele precisa “ponderar” o pedido de envio de sangue.
— Às vezes, o médico pede quatro bolsas, eu tenho aqui só as quatro, eu não posso enviar todo meu estoque e vai que uma criança precise de uma bolsa aqui. Preciso ponderar a todo momento o que fazer e quem atender, é difícil — revela Lorandi.
Para o serviço de distribuição, o Hemocentro tem uma escala de funcionamento todos os dias, independente de feriados, durante as 24 horas do dia. Por isso, há estrutura para dormir, para alimentação, banho, ou seja, condições específicas para o plantão do profissional.
Hemocentro pretende disponibilizar transporte aos doadores
O Hemocs pretende ter uma van exclusiva para o transporte diário de doadores, em roteiro municipal e intermunicipal. O processo já está em fase de licitação e o projeto será chamado de Linha da Vida.
De acordo com Lorandi, o objetivo é ter parceria com empresas de Caxias do Sul. Em uma data a ser agendada, um motorista buscará cerca de 10 a 15 pessoas e levará até o Hemocs para doação. Ao final, haverá a possibilidade do retorno para o trabalho ou, se a empresa liberar, a pessoa será enviada para casa. O órgão e a empresa terão um controle de quantas pessoas doaram. Devido às reclamações e até receio do empreendedor de liberar seus funcionários e eles não comparecerem para a doação, a instituição de saúde precisou pensar nesta saída.
— Ouvimos ao longo dos últimos anos que as pessoas têm receio de sair do trabalho para vir fazer uma doação e depois serem demitidos, algo relacionado à falta naquele turno— comenta o diretor.
Lorandi relembra que a doação de sangue precisa ser altruísta, ou seja, deve ser feita por caridade e não por obrigação.
Atividades de busca ativa de doadores aumentaram principalmente durante a pandemia de covid-19. O diretor técnico conta que, anteriormente, o Hemocs tinha um ônibus, com possibilidade de fazer até quatro coletas simultâneas. Devido ao distanciamento necessário exigido durante a pandemia, o ônibus ficou inviável. Desde lá, o Hemocs decidiu fazer as coletas em pontos fixos com a ajuda da própria comunidade. Um exemplo são coletas em centros comunitários de bairros, em que o órgão leva os equipamentos para a doação e os moradores organizam o espaço e a quantidade de doações. Neste ano, cerca de duas coletas externas são realizadas por mês. Além disso, o Hemocs faz mensalmente campanhas de conscientização em escolas municipais e estaduais.
Quem doa para quem?
:: O doador com tipo sanguíneo A+ pode doar para pessoas com tipagem sanguínea AB+ e A+. O recebimento de sangue pode ser dele mesmo ou de A-, O+ e O-.
:: Já a tipagem A- pode ser direcionada para pessoas com tipagem sanguínea A+, A-, AB+ e AB-, sendo possível receber de A- e O-.
:: O dador com sangue do tipo B+ doa para pessoas com a mesma tipagem sanguínea e para AB+, mas pode receber de B+, B-, O+ e O-.
:: A tipagem sanguínea B- serve para B+, B-, AB+ e AB-, recebendo da mesma tipagem e do doador universal, O-.
:: O tipo sanguíneo AB+ doa apenas para a mesma tipagem e pode receber de todos os demais.
:: Já o AB- pode doar para pessoas com o mesmo tipo sanguíneo e para o AB+, mas pode doar para A-, B-, O- e AB-. O tipo O+ recebe de todos os tipos sanguíneos positivos (A+, B+, O+ e AB+), sendo receptor dele mesmo e do O-.
:: O doador universal é o O-, já que ele doa para todos, mas pode receber apenas dele mesmo.
O que preciso para ser um doador?
:: Um dos requisitos para ser um doador é que a pessoa tenha entre 18 e 69 anos. A primeira doação deve ser feita antes dos 60 anos. Jovens com 16 e 17 anos devem apresentar uma autorização de um responsável, acompanhada de uma cópia de um documento dele.
:: O possível doador deve pesar mais de 50 quilos, estar bem de saúde (sem gripe ou outras doenças virais ativas).
:: A pessoa deve levar no dia da coleta um documento com foto, estar alimentado, ter evitado alimentos gordurosos nas três horas que antecedem a doação, não ingerir bebidas alcoólicas 12 horas antes e não fumar duas horas antes.
O Hemocentro de Caxias do Sul orienta que as pessoas entrem em contato por telefone para fazer o agendamento da doação. O atendimento é de segunda a sexta, das 8h15min às 16h45min, e aos sábados, das 8h às 12h. O agendamento pode ser feito pelos telefones (54) 3290-4536, (54) 3290-4543 ou (54) 98418-8487.
:: Os benefícios da doação agendada, segundo Roque Lorandi, são agilidade no processo de coleta, além do controle para que a quantidade de público seja adequada, já que o sangue tem um período de validade. As doações espontâneas, é claro, também são bem-vindas.
Serviço
::: O Hemocentro de Caxias do Sul fica na Rua Ernesto Alves, 2260, ao lado da UPA Central.
::: Os agendamentos para doações podem ser feitos através dos telefones (54) 3290-4536, (54) 3290-4543 ou (54) 98418-8487.
::: O horário de funcionamento é das 8h15min às 16h45min, sem fechar ao meio-dia.