No dia 9 de novembro de 1909, o jornal O Estado de São Paulo noticiava na página sete “o novo triunfo” de Santos Dumont, que havia acabado de receber a medalha de ouro da aeronáutica, na França. No mesmo dia, a uma distância de 9,9 mil quilômetros do país europeu, nascia Albertina Alves de Albuquerque, que escolheria Caxias do Sul como destino de todas as viagens que fez durante a vida e se tornaria a cidadã mais longeva do município. Aos 113 anos, a centenária é apenas 19 anos mais nova que a cidade, que completou 133 anos na terça-feira (20).
Ao contrário do considerado pai da aviação, não foram longas as distâncias que Albertina teve a oportunidade de percorrer. Nascida em Bom Jesus, ela também tinha um objetivo, assim como Dumont. Sem ter frequentado a escola, desde a infância precisou trabalhar e, por necessidade, sabia que tinha que sobreviver da melhor maneira que pudesse.
O trabalho pesado esteve presente na vida da mulher desde nova. Em uma época onde braços escravos ainda apanhavam ao mesmo tempo em que exerciam funções mais pesadas do que suportavam, ela fornecia toda força que tinha para dividir as tarefas. Morando na casa dos tios, após a morte dos pais, lembra de quando infância e trabalho caminhavam juntos.
Em uma lavoura onde os olhos não davam conta de ver o fim, Albertina ficava com a limpeza de roupas, dos galpões, do galinheiro e do chiqueiro dos porcos. Lúcida e com uma dicção perfeitamente compreensível, recebeu a reportagem do Pioneiro para uma conversa em que lembrou alguns momentos vividos nos últimos 113 anos.
— Nos criamos no tempo da escravidão, você ouviu falar? (Questiona Albertina à reportagem, embora a Lei Áurea, que decretou o fim da escravidão no Brasil, tenha sido assinada em 13 de maio de 1888, 21 anos antes dela nascer). A gente tinha que levantar com "os grandão" e qualquer coisa estávamos no laço, chicote, arreio. Conforme o que tu dizia para eles, era laço de cair. E tinha que levantar para o outro continuar laçando (batendo). Ninguém podia dizer nada. Teve um coitado que eu nunca esqueço o nome. Uma laçada bateu na orelha e cortou a orelha dele. Jovelino era o nome. Esses tempos eu estava falando da escravidão para o meu neto, ele disse que hoje não tem mais escravidão para nós, mas lá fora ainda existe e vai ter sempre a tal da escravidão, é crueldade— conta a mulher.
Por causa de uma saia, o indesejado primeiro casamento
Em uma sexta-feira chuvosa, aos 14 anos, Albertina recebeu da tia, a qual chamava de "mamãe", a tarefa de lavar uma saia. A mulher queria usar a peça no dia seguinte e, mesmo com o mau tempo, exigiu que a saia fosse lavada e estivesse seca a tempo do compromisso que teria. Na manhã de sábado, então, Albertina acordou o mais cedo que pôde, lavou a peça e, por causa da chuva, escolheu o fogo feito na cozinha como melhor lugar para secar.
Ao entrar no cômodo e ver a saia sendo seca em meio a fumaça, a tia gritou para que Albertina levasse a peça para o lado de fora e prometeu que no dia seguinte ela iria apanhar amarrada em um galpão para aprender a fazer a tarefa corretamente. Obedeceu a tia e, por medo, tomou a decisão de fugir de casa no domingo, para não apanhar. No amanhecer do dia seguinte, pegou as três peças de roupas que deixou separadas e foi até a casa onde uma moça, que havia sido criada junto com ela, estava morando.
— Fui para a cozinha, fiz o fogo e voltei para o quarto. Peguei aquela roupinha, eram umas três mudinhas só e fui para a casa da Maria Candida, nós chamávamos Doca. A estrada era de chão e mato. Quando cheguei, a Doca já tinha levantado e duvidou que a mamãe fosse fazer aquilo para mim. Ela ia fazer, mandou me surrar amarrada e por isso eu fui embora — conta Albertina.
Ao sentirem falta da mulher, os tios foram atrás de Albertina e, por causa dos rastros de um cavalo que ficaram marcados na estrada de chão molhada, concluíram que ela tinha fugido com um homem.
— Era Alfredo o nome dele e fizeram a gente casar. Eu não queria, eu não saí com ele. Ele falou que não tinha me visto, porque não tinha visto mesmo. Ele tinha 19 anos e eu 14. Também dizia que não queria casar, mas não adiantou. Ficamos uns três ou quatro anos juntos e virou tudo em nada. Nunca me esqueço dessa malvadeza que a nossa mãe de criação me fez — lembra a mulher.
Depois do primeiro e indesejado casamento, Alfredo se mudou para uma cidade de praia e Albertina acabou encontrando o segundo esposo, pai dos três filhos que teve. Já calejada das maldades, descobriu que o casamento poderia machucar ainda mais.
— Ele era de trazer mulher para dormir em casa, na nossa cama. A tal da cidade estava começando e ele começou a namorar uma morena. Ela tinha duas meninas, que eram muito queridinhas, e eu com os meus pequenos. Ele tirou a própria vida por causa dela e fiquei sozinha para criar os três. Um deles tinha três anos quando ele se foi. Um dia minha filha mais velha perguntou se eu queria trabalhar e falou "eu cuido dos guris". Ela tinha sete anos quando me disse isso — conta Albertina, emocionada.
O grande amor e o carinho nunca recebido
Fazendo os mais variados trabalhos que conseguia para sustentar os filhos pequenos, Albertina passou cerca de cinco anos tendo que se virar sozinha. Os anos foram demorados até conhecer um casal de idosos, que acolheu a família e ofereceu um carinho de cuidado que ela nunca havia recebido.
— Eu estava no mercado fazendo minhas comprinhas, naquele tempo chamavam bodega, e depois que paguei e peguei a minha trouxinha, a dona Maria pediu para falar comigo. Ela já tinha ouvido falar de mim e disse que tinha uma casa desocupada, era de uma filha dela. Disse que tinha terreno, de planta e tudo. Fomos morar lá. Eles olhavam as crianças para eu trabalhar, foram muito bons para mim. Um dia eu estava contando essa história para uma mulher e ela perguntou se eu sabia quem era a idosa. Falou que era tia dela. Eu fiquei com vergonha, estava contando fofoca para a sobrinha da dona Maria — diz Albertina, rindo da lembrança.
Com a fé inabalável que carrega desde o início da vida, a católica mora atualmente em uma casa humilde no bairro Serrano. No pequeno cômodo de móveis e decoração coloridos, sorrisos guardados em fotos de casamentos, aniversários, batizados e formaturas de familiares dividem espaço com imagens dos santos em que acredita. O ambiente, repleto de sacolas com retalhos e tecidos, conta pedaços da dedicação à costura.
Anos atrás, depois de deixar o local onde foi carinhosamente acolhida pelos idosos, a mesma casa foi abrigo para o grande amor que viveu. Este, Albertina carrega com carinho no coração enquanto as lágrimas nos olhos lembram de uma história movida pela gratidão.
Em uma época em que Caxias do Sul ainda descobria e experimentava as novidades para o próprio desenvolvimento, numa região afastada de ruas com poucas casas, a mulher encontrou Ramon Antônio do Nascimento. Já aposentado, o homem foi o primeiro a tratar Albertina com amor e, conforme lembra ela, quem a ajudou a criar os três filhos depois de todo período de sofrimento.
— Era separado da mulher, tinha filhos como eu. Nos conhecemos e ficamos. Ficamos por 35 anos juntos. Foi ele que terminou de criar os meus filhos e nunca mais me deixou trabalhar fora. Ele era aposentado, muito bem aposentado. Quando minha filha encontrou o marido dela, ele me perguntou se eu ia deixar ela casar e eu disse que sim. Então, ele disse que toda a despesa do casamento seria por conta dele e pagou toda a despesa para que a minha filha pudesse casar — lembra Albertina.
Depois de ter vivido um casamento indesejado e outro infeliz, Albertina começou a desfrutar da vida ao lado de alguém que estava disposto a compensar todos os anos de sofrimento. A alegria era vivenciada em bailes e festas que ela não teve a oportunidade de ir.
— Era a coisa mais linda do mundo. Me diverti tanto, tanto, tanto. Nós nunca discutimos ou nos desentendemos com palavra nenhuma. Mas, quando a idade chega... — diz Albertina, emocionada.
Em uma manhã comum como todas as outras, Albertina acordou e viu que Ramon não estava bem. Com preocupação, pediu que levassem ele ao hospital, onde ficou por cerca de cinco dias. Impossibilitado de comer sozinho, foi cuidado pela mulher que escolheu passar os últimos dias da vida.
— Eu alimentava ele. Cuidei bem porque foi ele que me ajudou com meus filhos. Quando foi uma segunda-feira me falaram que ele tinha morrido, no hospital mesmo. Quando chegamos onde ele estava, vi que ele estava encolhidinho. Ele morreu bem encolhidinho. Não faz 30 anos, ele tinha 93 — conta Albertina, olhando para o chão como se estivesse presente naquele momento.
Um dos pesos de se tornar centenária é se acostumar com a perda de pessoas amadas. Irmãos, vizinhos, familiares e o grande amor que teve, são algumas das lembranças que carrega junto com a bagagem da própria história. Entretanto, Albertina tem fé em Deus e na vida. Para as pessoas que tiverem a oportunidade, ou não, de encontrar com ela, a mulher deseja duas únicas coisas.
— Saúde e felicidade para quem eu conheço e para quem não conheço. É isso o que desejo para o mundo inteiro — diz ela enquanto caminha, com o auxílio de uma amiga e uma bengala, até a casa quente porque as sombras das árvores já anunciam a chegada do frio noturno.
Título de cidadã caxiense
Na última quinta-feira (15), um projeto de decreto legislativo (PDL) foi aprovado para a concessão do título de Cidadã Caxiense para Albertina. A iniciativa foi aprovada por unanimidade pelos vereadores. O título deve ser entregue no dia 9 de novembro deste ano, data em que ela completa 114 anos, no plenário da Câmara Municipal de Caxias do Sul.
Conforme nota enviada pela Câmara, o reconhecimento ocorre pelo papel comunitário da mulher e por ela ser a cidadã mais longeva do município. Em todo o Rio Grande do Sul, a pessoa mais velha está, atualmente, com 115 anos.