Basta o inverno começar a se insinuar nas primeiras quedas mais acentuadas de temperatura, que um dos pratos mais tradicionais da culinária da Serra reaparece com todo o protagonismo, ainda que seja repelido quase na mesma medida com que é adorado. E é justamente essa peculiaridade que deixa claro estarmos falando do bucho, da tripada ou do mondongo, sinônimos para a iguaria preparada a partir do estômago do boi e que, em sua receita mais convencional, é servida acompanhada de pão e queijo ralado (mas que também vai bem com arroz e até com uma polenta mole).
No Bistrô Brunetta, em Caxias do Sul, onde os irmãos Francisco e Kellen Brunetta representam a terceira geração da família que consagrou a tripada na região, servindo o prato no restaurante instalado no entorno do Santuário de Caravaggio, em Farroupilha, o bucho é o que o chef Francisco chama de “produto estrela”. No mundo dos negócios, é o termo que define o carro-chefe em vendas, indispensável para o sucesso da empresa.
— Não podemos nem pensar em faltar bucho aqui no bistrô, principalmente no inverno. É um alimento muito enraizado na cultura italiana, que carrega uma memória afetiva para os mais antigos, mas que também as gerações mais novas aprendem a gostar por crescer vendo os nonnos comendo — comenta o chef.
Graduado em Gastronomia na UCS, Francisco une o conhecimento acadêmico à sabedoria adquirida no seio familiar para preparar tanto o bucho servido à mesa quanto a versão vendida congelada em porções de 500 gramas, que só requer aquecer.
— Gosto de mesclar o antigo com o novo, que é a preocupação maior com ingredientes e com um modo de preparo mais saudável, e também o uso de uma diversidade maior de temperos. Minha avó, por exemplo, tinha que temperar com aquilo que ela mesma plantava, que era basicamente a cebola. Hoje a gente tem uma facilidade muito grande para conseguir qualquer insumo, o que contribui para chegar a um sabor ainda mais gostoso. Tanto quanto a questão da peça estar muito bem lavada, o tempero também é muito importante para tirar o gosto do estômago do animal — comenta Francisco.
Como pode, contudo, um produto ser ao mesmo tempo o queridinho e o vilão da história? A relação de amor e ódio é tamanha, segundo Kellen, que a administradora conta que é comum haver clientes que pedem para o bucho seja retirado da mesa quando servido na sequência com outros 14 pratos.
— Quando a gente está servindo, tem pratos que o cliente eventualmente não come, mas que ficam na mesa. Já o bucho ele pede para retirar, por se sentir incomodado. É algo cultural. Acho que muita gente ainda relaciona a tripada ao intestino, o que dá um certo receio de experimentar. Também é uma questão de ter a mente aberta para conhecer novos sabores — pontua.
Francisco acrescenta que é importante a qualidade no preparo, uma vez que, especialmente quando se trata de experimentar um prato diferente, a primeira impressão muitas vezes é a que fica:
— A dica que eu dou para quem ainda não provou o bucho é que experimente sem crenças limitantes, achando que não vá gostar. É um alimento muito saboroso e repleto de nutrientes e vitaminas.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Iguaria comum a diversas culturas pelo mundo, a tradição do bucho na Serra está intrinsecamente ligada à família Brunetta e remete ao final dos anos 1950, quando a família chegou a Farroupilha, vinda de Santa Catarina, e adquiriu o restaurante em Caravaggio. Principalmente no período das romarias ao Santuário, a tripada era o alimento que saciava a fome dos peregrinos após longas caminhadas em jejum.
— Antigamente as pessoas tinham muito presente o costume de não comer antes de comungar. Após a missa, por volta das 9h, elas estavam varadas de fome e a tripada era o alimento mais encorpado para se alimentar. Era uma espécie de brunch da época — compara Kellen.
Principalmente até os anos 1970, quando a possibilidade de armazenamento e refrigeração dos alimentos era mais limitada, o preparo do bucho iniciava com o abatimento do boi como parte das festas comunitárias, para que então se dividisse as diferentes partes do animal entre as famílias vizinhas. Com o surgimento dos açougues, tanto nas casas quanto em restaurantes como o Brunetta foi possível adquirir o bucho já lavado, cortado e pronto para o cozimento. As melhores condições sanitárias acompanharam inovações na receita, mas sem que esta perdesse sua essência.