A tradição centenária de peregrinar ao Santuário de Caravaggio evoluiu, em 2019, para um roteiro que não tem mais ponto de partida apenas em Caxias do Sul, Farroupilha ou Bento Gonçalves. Inspirada em peregrinações como o Caminho da Fé, ao Santuário de Aparecida, em São Paulo, e o mítico Santiago de Compostela, na Espanha, a versão gaúcha parte de Canela, passa por Nova Petrópolis, Gramado e Caxias até finalmente chegar ao Santuário de Farroupilha.
São cerca de 200 quilômetros de caminhada que levam o peregrino a caminhar das planícies do Rio Caí ao topo dos Campos de Cima da Serra, em um roteiro que dispõe de todas as paisagens que a região tem a oferecer. Motivados pela fé ou pela aventura, mais de 2 mil pessoas já percorreram o Caminhos de Caravaggio desde a sua implantação, há quatro anos.
O roteiro é dividido em 10 trechos de, em média, 20 quilômetros cada e sinalizado por setas que também simbolizam a peregrinação. As amarelas indicam o sentido Canela-Farroupilha, mas o caminho pode ser feito também no sentido contrário quando indicado, então, por setas azuis.
Não existe um tempo determinado para completar o trajeto, mas a caminhada leva, normalmente, de sete a 10 dias. Os organizadores também sugerem que não se percorra o Caminhos de Caravaggio sem antes reservar hospedagem ao longo do trajeto.
A caminhada pode ser comprovada com carimbos em um passaporte, retirado no Santuário de Caravaggio ou nos Centros de Atenção ao Turista em Farroupilha e Canela. O documento, simbólico e não obrigatório, é marcado por estabelecimentos comerciais e em pousadas por onde o peregrino passa.
O percurso a pé, foi realizado em março pelo repórter, trajeto que se consolida a cada ano com a vinda de peregrinos de todo o país e de fora dele. Nesta sexta-feira (26), quando se inicia a romaria que deve levar mais de 300 mil ao Santuário de Caravaggio, em Farroupilha, mais fieis devem fazer o mesmo caminho, e o Pioneiro o compartilha com leitores.
Preparo é essencial
Condicionamento físico é fundamental para percorrer trechos com subidas e descidas íngremes de até 950 metros, distância que equivale a nove quarteirões, para se ter ideia. A personal trainer e ultramaratonista Leonice Ceconello percorreu, em 2021, os 217 quilômetros da Ultramaratona Caminhos de Caravaggio (evento realizado anualmente no trecho) em 46 horas.
Para os 10 dias de caminhada, a profissional recomenda reforço muscular e treinamento utilizando a mochila que será levada para o caminho, já carregada com roupas e kit de primeiros socorros. É fundamental também que se utilize nos treinos o mesmo calçado que será utilizado no trajeto:
— É um trabalho de resistência muscular. Se não conseguir ir para uma academia, recomendo que vá caminhar, regularmente, uma média de três horas por dia com a mochila nas costas e sem se preocupar tanto com a distância ou ritmo, mas com o tempo de caminhada.
É importante, também, um fortalecimento das costas e trabalho de abdômen para carregar a mochila. De acordo com Leonice, a preparação de uma pessoa de 50 anos, por exemplo, deve se iniciar até seis meses antes do desafio. Com o passar do tempo, caminhadas mais longas devem ser feitas por pelo menos uma vez por semana.
Outra dica, além de estar bem adaptado com o tênis e com o peso da mochila, é usar um bastão de caminhada, encontrado em lojas de aventura, que ajuda a firmar o corpo nas descidas e impulsionar nas subidas. Para os pés, e contra as incômodas bolhas que podem aparecer durante a jornada, a recomendação é usar cremes que previnem assaduras.
— Eu passo antes de cada caminhada ou corrida, e utilizo duas meias, uma mais fina e outra mais grossa por cima — recomenda a profissional.
Trecho 1 e 2 – Parque do Saiqui até Linha Furna
Com uma mochila do tipo cargueira (com alças que se ajustam a cintura e ao peito) pesando cerca de 10 quilos, iniciei a peregrinação às 9h de uma quinta-feira a partir da Igreja de Nossa Senhora de Caravaggio de Canela. O ponto de partida está no Parque do Saiqui, a sete quilômetros do Centro. Cheguei lá de carona, mas a linha 6152 do transporte público oferece ônibus com tarifa de R$ 5,55 a cada 30 minutos. O transporte tem saídas das rodoviárias de Gramado e Canela e paradas em pontos de linha comum.
No primeiro trecho, o peregrino caminha pelo acostamento da RS-235 até o centro de Canela e, depois, pela Avenida das Hortênsias, até um dos extremos da Avenida Borges de Medeiros. São 14 quilômetros de asfalto e em zona urbana que possibilitam, conforme o preparo físico, que o segundo trecho seja feito no mesmo dia. Às 14h, sob sol a pino e com paradas essenciais para reforçar o filtro solar, encarei o segundo trecho pelo interior, mas todo de asfalto até a Linha Furna. Foram mais 16 quilômetros até a Hospedagem Sartori. Em seis horas foram encerrados os 30 quilômetros de caminhada no primeiro dia de caminho.
Pontos de partida e chegada, as hospedagens ficam em meio ao percurso e são classificadas como hotéis, pousadas, acolhimento familiar e acolhimento religioso. A cada trecho o peregrino encontra opções que podem (e devem) ser reservadas com antecedência. As diárias variam entre R$ 110 e R$ 180 e oferecem café da manhã. Em algumas há ainda a opção de janta inclusa.
Na Linha Furna, há opção de acolhimento familiar, na Veduta Del Monte, e também na Pousada Colina de Pedra.
Trecho 3 – Linha Furna até Vila Oliva
Se no primeiro dia de caminhada encarei poucos desníveis, é no terceiro trecho que morros começam a fazer parte da peregrinação. Do interior de Gramado a Vila Oliva, em Caxias do Sul, são 717 metros de declive e 642 metros de aclive em um trecho feito todo em estrada de chão. O cansaço, no entanto, é recompensado por belas paisagens. Dentre elas, a travessia da Ponte do Raposo sobre o Rio Caí. Foram quase cinco horas de caminhada que totalizaram 22,5 quilômetros com destino final na Pousada Recanto da Vovó, onde o peregrino é recebido com lanche e escalda pés.
Em Vila Oliva há duas opções de hospedagens familiares, na Pousada Dona Solange e na Pousada Vale da Bênção.
Trecho 4 e 5 – Vila Oliva / Santa Lúcia do Piaí até Nova Petrópolis
No terceiro dia optei por unir dois trechos novamente e encarei 30 quilômetros em uma caminhada de mais de seis horas. A opção mais leve é se hospedar no Seminário Nossa Senhora da Divina Providência, em Santa Lúcia do Piaí, a única opção do peregrino ao fim desse trecho, distante 15,5 quilômetros de Vila Oliva.
Como escolhi seguir viagem, foram então mais 15 quilômetros com subidas de até 950 metros naquele que foi o dia, até então, de maior dificuldade, agravada pelo calor e pela quantidade de morros. As paradas para hidratação e reforço do filtro solar eram frequentes e realizadas geralmente em pequenas capelas que se encontram no caminho.
Em Santa Lúcia do Piaí, a parada obrigatória é o bar do Seu Guerino, para um refrigerante gelado e o carimbo no passaporte. Nesse trecho atravessei mais uma vez o Rio Caí, dessa vez pela ponte em Pedancino, divisa entre os municípios de Caxias do Sul e Nova Petrópolis.
O dia terminou ao entardecer na Hospedaria Bom Pastor, na Linha Brasil, em Nova Petrópolis. A hospedagem está localizada na RS-235 e é a opção dos peregrinos por estar em meio ao percurso.
Trecho 6 – Linha Brasil até Linha Imperial
Depois de ter feito o maior trecho até então, cheguei na metade da jornada bastante cansado e com três bolhas em cada um dos pés. O quarto dia e sexto trecho de caminhada é mais leve, sem tantas subidas, e pelo interior de Nova Petrópolis. Ele é dividido em partes de asfalto e partes de estrada de chão. Saindo da Linha Brasil, o peregrino percorre a estrada Nove Colônias até chegar a Linha Imperial e terminar o dia mais próximo do centro da cidade. Aqui foram 20 quilômetros percorridos em quatro horas e finalizados na Pousada dos Plátanos, que também está em meio ao percurso.
A Pousada da Chácara também é uma das opções.
Trecho 7 – Linha Imperial até Vila Cristina
O trecho 7 reserva ao peregrino uma média de descidas de 756 metros, o equivalente a sete quarteirões e meio. A caminhada começa em Nova Petrópolis, contorna a Cooperativa Agropecuária Petrópolis (PIÁ) e sobe a serra na região do Morro Malakoff. O destino final é em Vila Cristina, no interior de Caxias do Sul. Mas, para isso, é preciso descer novamente ao nível do Rio Caí com ele sendo margeado ao passar pela Linha Sebastopol. Novamente, as belas paisagens ofertadas pela natureza são a companhia do peregrino. Depois de quatro horas de caminhada, os 20 quilômetros do dia foram vencidos ao atravessar a BR-116 e chegar na pousada Recanto das Águias.
A Recando das Águias é a opção mais próxima para que vem de Nova Petrópolis, mas nesse trecho há ainda a Pousada Famiglia Pezzi, na Estrada do Imigrante, e o Hostel Parada dos Caminhantes. Para chegar até eles, o peregrino precisará encarar mais cinco e 12 quilômetros de caminhada, respectivamente.
Trecho 8 e 9 – Vila Cristina / Caravagetto até Vale Trentino
Com a lista de hospedagens que estão instaladas no Caminho em mãos, é de escolha do peregrino optar pela distância que será percorrida a cada trecho. A rede de estabelecimentos é organizada e está habituada a receber os peregrinos. Descanso é fundamental para acordar cedo e voltar a peregrinar. A ideia é sempre chegar durante a tarde nas pousadas para descansar para o que virá.
No sexto e penúltimo dia de caminhada, voltei para a estrada antes do sol nascer. O dia seria longo, prometeria temperaturas superiores a 30°C, e novamente dois trechos seriam feitos. No primeiro deles, acessei a RS-452, no Vale do Caí, e, depois de cerca de uma hora de caminhada, cheguei à estrada Frederico Thomas, que corta a localidade de Nova Palmira com o município de Vale Real. A partir dali o trecho é feito todo em estrada de chão, na localidade de Caravaggeto, interior de Farroupilha. O trecho nove termina na igreja da comunidade após 15 quilômetros de caminhada. Ali, as opções de hospedagem são a pousada Casa Canjerana, distante quatro quilômetros do percurso, e o Hotel Di Capri, no centro de Farroupilha, que oferece o traslado de ida e volta para buscar os hóspedes. Depois do descanso, pela manhã, o peregrino retorna ao local e segue a caminhada.
O Vale Trentino, no 4º distrito de Farroupilha, é o penúltimo destino e tem como parada a Vinícola Colombo. Ao total foram sete horas e meia de caminhada até chegar ao último local que me hospedaria depois de vencer 33 quilômetros de morros e estrada de chão.
Trecho 10 – Vale Trentino até Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio
Depois seis dias e 160 quilômetros percorridos a pé, cheguei no último dia de peregrinação. Desde o final do terceiro trecho as bolhas me faziam companhia e trocar curativos era uma rotina antes de cada início de dia. Usei cicatrizante, protegi com pomada, mas o que me restou foi aceitá-las e vê-las como mais um obstáculo a ser vencido.
25 quilômetros me separavam do destino final: sentimentos se misturam no último trecho que passa pelo Vale Trentino e Forqueta, atravessa a RS-122 e acessa a Rodovia dos Romeiros pelo interior de Farroupilha. Nostalgia por tudo que foi percorrido, alívio em chegar e até saudade antecipada das amizades que foram feitas ao longo dos dias me levaram a chegar ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio.
Na chegada, o peregrino que completa a caminhada toca o sino do campanário, recebe certificado, medalhinha e um livro sobre a história do Santuário. Para isso é preciso apresentar o passaporte com ao menos dois carimbos feitos em cada uma das cidades por onde passou.
"Peregrinar é não pensar na chegada"
Antes de sair, um primo que já chegou a Machu Picchu, no Peru, a pé, me disse que, conforme nos aproximamos do destino, afrouxamos o passo. Ele tinha razão. Peregrinar é não pensar na chegada, é refletir durante os passos, falar sozinho, encontrar pessoas e se conectar com o que realmente importa. Outro me disse que o cérebro entenderia rápido o que me propus a fazer e levaria o corpo a alcançar o objetivo diário. Mais um que tinha razão. Caminhar passou a ser um movimento tão natural quanto respirar. No restante das horas, organizava a mochila, me protegia com filtro solar, refazia curativos nos pés e saía de manhã cedo, quando o sol ainda não me castigava. Por sete dias, venci trechos de 20, 25 e até 35 quilômetros. A geografia da Serra oferece paisagens ainda mais incríveis pra quem se dispõe a atravessá-la a pé. E é olhando pra elas que o cansaço e as bolhas nos pés ficam para depois. É fácil encontrar na caminhada analogias com a nossa vida. Porque é preciso estar sempre atento para não se perder e antecipar ameaças, como o trânsito ou cachorros soltos e desconfiados. É preciso carregar pouco peso, levar o mínimo necessário, e fazer uma jornada leve. É necessário escutar o corpo, estar aberto a encontros e aprender com a experiência do outro. É preciso continuar e parar apenas para descansar e poder seguir. Seja nessa ou em qualquer outra caminhada.