No movimentado Centro de Caxias do Sul, em que passos apressados se cruzam com apresentações de prender a atenção de motoristas nos semáforos, há pontos que se tornaram tradicionais com o passar dos anos. Eles quase sempre estão em uma esquina, dentro de suas carrocinhas ou casinhas, apenas esperando o próximo pedido ou a próxima conversa. Eles são um ponto de encontro, uma pausa no meio da correria ou até mesmo uma voz gentil para pedir informações. Atualmente, na área central, muitos dos vendedores de cachorro-quente, churros e até ervas são os herdeiros de negócios que não só marcam a região, como começaram pela iniciativa da família de cada um deles.
Antônio de Lemos, 53 anos, é um desses. Viu, em 1977, o pai, Hermes, assumir o ponto da esquina da Rua Marechal Floriano com a Avenida Júlio de Castilhos, em frente ao Hospital Pompéia. A venda de cachorros-quentes virou o símbolo da família. Hermes até largou o antigo emprego em uma metalúrgica para ficar apenas com o negócio. Ele batalhou, deu o sustento da família e o estudo dos irmãos de Lemos. Aos 82 anos, o dono original do Mc Dog morreu. Ficou 45 anos no mesmo ponto, vendo o Centro se transformar. A missão da carrocinha, agora, é do trio de irmãos: Antônio, Sônia, 55, e Neura, 57.
— No tempo que ele trabalhava, ainda era aquele carrinho móvel, que tinha que tirar do lugar. Depois, autorizaram deixar o carrinho fixo — lembra Lemos.
Além de dar o sustento para família, a carrocinha do seu Hermes sempre foi um apoio para os filhos. Os irmãos sempre se revezavam para ajudar o pai. Quando Lemos ficava desempregado, o pai sempre o recebia com um espaço para poder trabalhar. Desde 2015, o filho passou a trabalhar de forma permanente com os cachorros-quentes. Inclusive, quando o pai faleceu, deixou registrado que a carrocinha devia ficar com os filhos.
— Ele era bem orgulhoso com o carrinho… Conforme a gente podia, apoiava ele. Uma das minhas irmãs que fica aqui ajudava também. Quando eu ficava desempregado, eu vinha aqui. Na última vez, quando fiquei, disse, “Ô pai, me arruma um cantinho para trabalhar?”, e ele disse, “Vem, vem cá comigo” — conta o vendedor.
Com a carrocinha, Lemos tem o sustento para família e paga o INSS, para poder se aposentar. Depois que parar, a esperança é que a carrocinha continue na família. Ele tem uma filha de 25 anos, que estuda para ser técnica em enfermagem, e um filho de 15, que já foi convidado para acompanhar o dia a dia do pai, mas ainda não demonstrou interesse.
— Queria ver, se a gente continuar aqui, se eu passo para eles. Nunca sabemos o dia de amanhã, vai que eu consiga me aposentar — planeja o vendedor.
Enquanto isso, a carrocinha segue, quase que sem parar, com os três irmãos carregando a herança do pai.
Nova vida com a carrocinha
Em uma tarde mais calma, Talita Diana Ribeiro, 37, proprietária da carrocinha de churros e crepe da esquina da Rua Garibaldi com a Rua Sinimbu, comentava a ironia que notou ao ir para praia nas últimas semanas. Em Caxias, no verão, a venda de churros reduz, enquanto que no Litoral, que o preço é maior que os R$ 5 cobrados por Talita, as bancas estão sempre cheias.
Essa tendência até atrai Talita para outros planos, mas, agora, a vida dela é em Caxias. A vendedora herdou a carrocinha do cunhado, que se mudou para Santa Catarina há alguns anos e faleceu. Há três anos, ela é dona do ponto - que existe, pelo menos, há 15 anos. Separada, a vendedora, que nasceu em Bento Gonçalves, tem no serviço a principal fonte de renda para ela, a filha de 19 anos, e o filho de 11. Talita até revela o segredo para lidar com a sazonalidade: guarda mais no inverno para equilibrar as contas no verão.
— Quando ele (cunhado) foi embora para Itapema (SC), ele veio me procurar justamente por isso. Não queria que saísse da família. No começo foi um baque, sempre fui acostumada a trabalhar com comida, porém eu nunca tinha trabalhado assim. Mas tudo tu aprende — relembra Talita.
Na carrocinha, Talita faz muitas amizades e sempre que pode dá informações para quem precisa. Até mesmo durante a entrevista, uma pessoa passou para pedir orientações. No WhatsApp também carrega uma clientela fixa, que encomenda churros. A vendedora recebeu pedidos até quando estava na praia. Claro que não puderam ser atendidos, mas mostra a fidelidade dos clientes.
De muitas histórias que carrega ali, uma teve um novo capítulo na quinta-feira (19), bem no dia que a reportagem esteve no local e até provou os saborosos churros. Talita conheceu a filha recém-nascida de uma cliente que marcou a carrocinha ao incluí-la na gestação.
— Todas consultas de pré-natal ela vinha comprar churros, e hoje veio me trazer a nenê para conhecer — relata a vendedora, com um grande sorriso no rosto.
O tombo que mudou tudo
Quase na esquina da Rua Pinheiro Machado com a Rua Moreira César, uma casinha de madeira chama atenção dos pedestres. É um tanto diferente das conhecidas carrocinhas. Mas, ali está Gabriela de Lima, 39, que há oito anos assumiu o Quiosque do Chá, vendendo chás, ervas, géis e outros produtos. O negócio era da sogra, em ponto próximo ao Hospital Pompéia. Mas um tombo mudou tudo. E foi um "tombo" da casinha.
Em 2012, no primeiro ano da casinha, um ônibus bateu na estrutura e a casinha caiu. Isso, depois, fez com que a prefeitura mudasse a localização, para que acidentes não acontecessem mais. A casinha estava próxima do corredor de ônibus.
— Em 2012, em um horário que estava minha cunhada trabalhando, aconteceu. Só quebrou um pouco, ainda bem. Minha cunhada também não se machucou. O ônibus bateu e caiu na direção da calçada. Tombou na calçada — lembra Gabriela, o que, hoje, é um causo engraçado na família.
Antes, Gabriela tinha uma escola de música. Mas a crise em 2015 no setor metalúrgico de Caxias fez com que ela perdesse muitos alunos. A escola foi fechada e o negócio principal se tornou o Quiosque do Chá, que até ganhou reforma - também para reforçar a segurança.
— (Com o fechamento da escola) Eu tinha um outro ganha-pão já, com uma coisa que eu poderia trabalhar e com uma perspectiva de crescimento. Diferentemente do serviço, que é uma coisa que tu corta, por achar que não precisa daquilo, o chá ou o gel tem uma importância maior (para o cliente), então é prioridade de consumo — analisa Gabriela.
Como todos os vendedores ouvidos pela reportagem, Gabriela reforça que o cliente é essencial para estes negócios. Os pontos fixos e o costume de ter uma pausa ou rever um rosto amigo criam a conexão entre estes personagens, o centro caxiense e os pedestres quase sempre tão apressados.
— Tem vários clientes que acostumam a vir. Tem um cliente que é caminhoneiro, que vem e diz, "Bah, fiz uma viagem, vou ficar aqui essa semana, mas semana que vem terei uma longa. Então, já vim pegar pra não ficar sem meus produtos". Criamos uma proximidade com o cliente — descreve a vendedora.