O combate ao racismo e à intolerância se tornou uma disciplina obrigatória no currículo escolar dos cerca de 42 mil estudantes matriculados na rede pública municipal de Caxias do Sul. O que antes era trabalhado em sala de aula apenas em determinados períodos do ano, como no Dia Nacional da Consciência Negra, lembrado neste domingo (20), agora é discutido durante o ano inteiro, em todas as áreas do conhecimento, fazendo com que uma educação antirracista apresente resultados práticos para além das escolas.
A temática é coordenada pelo núcleo permanente Qualificar a Educação para as Relações Étnico-Raciais (QuERER), da Secretaria Municipal da Educação (Smed), que tem a missão de promover, orientar e monitorar as atividades de combate ao racismo e de valorização da cultura e do protagonismo negro nas escolas de ensino fundamental e infantil da cidade.
Na prática, o grupo multidisciplinar organiza atividades e assessora projetos a serem desenvolvidos em todas as instituições, permitindo que professores e coordenadores pedagógicos sejam capacitados para realizarem as ações em sala de aula.
Segundo a professora e assessora pedagógica do QuERER, Joelma Couto Rosa, o núcleo busca ser um apoio aos docentes em sala de aula.
— É fazer com que os professores vençam essa dificuldade, esse medo muitas vezes de falar de racismo. Para que seja falado de uma forma natural, através da literatura, de curtas, de filmes, dos materiais pedagógicos que hoje em dia temos muitos. A gente sugere, faz formações para que os professores se sintam à vontade para trabalhar essas questões com os estudantes e com as crianças desde a educação infantil— explica.
Mais do que uma iniciativa recente, a criação do núcleo é percebida como uma política pública permanente e não como um projeto, onde a finalidade é que a cultura antirracista seja continuada nas instituições.
De acordo com último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 82% da população caxiense se declarou como branca, 13% parda, 3% negra, 0,41% amarela e 0,11% indígena.
— A escola é uma porta para se trabalhar para uma sociedade melhor, uma sociedade antirracista de fato. E ser antirracista não é fácil, é um movimento constante. A gente precisa estar sempre se reeducando. Às vezes é uma palavra, uma expressão, é um olhar e é isso que a gente tem que trabalhar com as crianças e com certeza reverbera nas famílias, na sociedade como um todo — afirma Joelma.
Escola cria coletivo de estudantes e professores e destaca protagonismo negro
Os corredores da Escola Municipal de Ensino Fundamental Prefeito Luciano Corsetti, no bairro Kayser, em Caxias do Sul, será tomado por rostos negros. Os estudantes de 8º e 9º anos escolheram dez personalidades afrodescendentes da política, da cultura e religiosa - nomes como Martin Luther King, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo.
As imagens serão acompanhadas de pinturas feitas pelos alunos na estética do afrofuturismo, um conceito que projeta um futuro do ponto de vista da comunidade negra e bastante explorado em filmes.
Além da imagem, o currículo de cada um. O objetivo é que a informação e o conhecimento ajudem a mostrar a importância do negro para a sociedade.
Essa é uma das atividades realizadas na instituição, considerada uma das maiores da cidade. Desde o início do ano, professores e alunos participam de um coletivo, que se reúne para debater ações e promover iniciativas que visam reduzir o preconceito e destacar a cultura de autores afrodescendentes.
— Quanto mais os alunos se identificam nas aulas, mais eles aprendem. Quanto mais autores das mais diversas etnias e raças são incorporados nas aulas de todos os componentes, mais os alunos se identificam — explica o professor e coordenador da escola, Ramon Tissot.
O coletivo tem a liderança do estudante Jésse Ribeiro Britto, uma voz que se destaca em meio aos colegas. Para ele, discutir o racismo em sala de aula ajuda a reduzir o preconceito e evitar práticas do senso comum,
— É importante inserir a cultura (negra) para as pessoas aprenderem e não saírem falando qualquer coisa, né, porque tem certas brincadeiras que, falas assim, do dia a dia, que tu nem percebe — afirma.
Para a estudante Ana Carolina Marchet, o racismo e outras formas de discriminação são possíveis de se combater com uma ferramenta.
— O preconceito é a falta de informação que nós temos isso por não pesquisar, não estudar e por não se colocar no lugar dessas pessoas — ensina.
Músicas e instrumentos afro-brasileiros ganham espaço na sala de aula
Os sons do surdo, bumbo, chocalho e as vozes que declamam poemas de autores negros se destacam nas aulas de música de alunos do 7º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Engenheiro Mansueto Serafini, no bairro Pôr do Sol. A única instituição de ensino integral da rede municipal de Caxias do Sul possui um grupo de música, formado pelos estudantes, que agora se apresenta mostrando para a cidade a cultura africana.
Os estudantes utilizam composições de Clementina de Jesus e do poeta Oliveira Silveira. O ritmo que embala a apresentação é o coco, difundido no Nordeste, que traz o recorte da cultura negra ao passo em que também preserva uma matriz indígena. Os jovens se apresentam na próxima terça-feira (22), 14h, na Praça Dante Alighieri, durante a Semana da Consciência Negra.
— No momento que a gente valoriza essa manifestação e demonstra e apresenta para eles como uma manifestação do povo negro ela automaticamente já é uma ação antirracista — explica o professor de Música, Dinarte Paz.
Para os estudantes, iniciativas como essa ampliam o conhecimento e dão mais voz aos negros, como Bryan de Araújo.
— Tem sido legal fazer esse trabalho com os amigos sobre o racismo, conscientizando os alunos a não fazerem na escola e aos alunos negros de criarem coragem e se manifestarem — afirma o jovem.
—A gente é a nova geração, temos que evoluir os nossos pensamentos, abrir a nossa mente. A gente tem que pensar fora da caixa, mostrar para o mundo que isso é errado e isso é falta de conhecimento sobre aquilo — explica a também estudante Agatha da Silva.
Os mesmos estudantes produziram uma revista digital elaborada anteriormente, ainda neste ano letivo, pelos estudantes de 6º e 7º anos, dentro da disciplina de Língua Portuguesa, abordando as questões de bullying e racismo.
— Aconteceu um caso de racismo entre duas turmas com a chegada de um estudante novo na escola e eu aproveitei para trabalhar essa questão. Pensei por que esperar a semana da consciência negra se é um tema que a gente tem que trabalhar o ano todo — explica a professora de Língua Portuguesa, Manuela Matté, responsável pela organização do textos produzidos pelos jovens.
Atividades realizadas o ano todo e que ganham mais visibilidade nesta época do ano.
— O que mais nos enche de alegria é ver os estudantes, os estudantes negros se empoderando, falando com alegria de quem eles são, das suas origens. Sem vergonha de mostrar quem eles são, sem vergonha de se autodeclarem negros, de se autodeclarem pretos, pardos. Ver essa gurizada mobilizada, mostrando a cultura negra, a cultura dos povos originários. Isso é demais — afirma Joelma Couto Rosa, assessora pedagógica do núcleo QuERER.