Há dois anos, às 19h20min de 11 de março de 2020, a prefeitura de Caxias do Sul, confirmou o primeiro caso de covid-19 na cidade. Era oficial. A doença que assustava o mundo havia chegado na Serra. O primeiro caso em Caxias do Sul também foi o primeiro da região e o terceiro no Rio Grande do Sul. Era uma quarta-feira. O paciente, um homem de 42 anos, esteve em Milão, na Itália, e apresentou sintomas no dia 29 de fevereiro. O primeiro atendimento foi ambulatorial, quando ele teve febre, mas não houve necessidade de internação. A partir disso, o paciente foi colocado em isolamento domiciliar.
Desde então, assim como o mundo todo, a cidade foi assombrada pela covid-19. São 120.817 casos confirmados no município. Ainda mais doloroso é o número de mortes: 1.522 pessoas perderam a vida em função de complicações provocadas pelo coronavírus. Um dos momentos mais dramáticos da pandemia foi em março de 2021. Na época, mais de 170 pessoas estavam hospitalizadas nas unidades de terapia intensiva (UTIs) dos hospitais da cidade. Apesar disso, nas ruas, mesmo com restrições, havia desrespeito aos protocolos sanitários. A economia também enfrentava problemas e a vacinação avançava lentamente, visto que as primeiras doses haviam chegado na cidade em janeiro daquele ano.
A vacina, aliás, chegou como um ponto de esperança, mas também com desconfiança por parte da população. Ainda assim, a maioria aderiu à campanha. Até agora, 85,7% do público acima de cinco anos recebeu ao menos uma dose da vacina em Caxias do Sul. Um total de 75,71% completou o esquema vacinal e 32,96% fez a dose de reforço. Com isso, a rotina está cada dia mais próxima do normal em Caxias do Sul. O município acaba de retomar os grandes eventos, com a realização da Festa da Uva, assim como as aulas 100% presenciais. Nos hospitais, as UTIs covid-19 não estão lotadas, mesmo após uma nova onda de casos em função da variante Ômicron. Para a secretária de Saúde de Caxias, Daniele Meneguzzi, isso é reflexo da vacina, uma vez que nessa última onda a cidade chegou a ter 5 mil infectados.
— Estamos em um momento de queda acentuada. O número de novas infecções tem diminuído de semanas a semanas. Aprendemos que a covid-19 apresenta ciclos de aumento de contaminações, e eles duram de quatro a cinco semanas, e nessa nova onda não foi diferente.
Houve mudança também no cenário nos hospitais: a maioria dos pacientes internados não está vacinado ou não completou o esquema vacinal, segundo a secretária.
— Reforçou a importância de vacinas na erradicação de doenças. A ciência venceu porque via de regra os vacinados apresentam sintomas leves e não precisam de internação.
Daniele aproveitou para mais uma vez agradecer aos profissionais de saúde:
— Há dois anos os profissionais de saúde mostraram a sua força e deram conta de atender centenas de pacientes que precisam de cuidados, de oxigênio, de atenção. Foram momentos difíceis e muito tristes. Chegamos a ter 25 óbitos por dia — lembra ela.
Linha de Frente
A infectologista Andréa Dal Bó estava na linha de frente do município quando o primeiro caso foi confirmado. Ela avalia que o mais difícil foi estruturar a cidade para lidar com o desconhecido.
— Tinha a questão de proteção: as máscaras, a orientação de distanciamento social, aos hospitais e para as pessoas com sintomas buscarem atendimento.
No ano seguinte, mesmo os médicos mais experientes tiveram que lidar com a exaustão e números expressivos de mortes.
— Em 2021 tivemos as variantes, uma transmissibilidade maior e, infelizmente, muitos óbitos. Não estamos preparados para perder vidas e, sim, para salvar.
Ela destaca que a chegada da vacina veio para mudar o cenário:
— Tivemos a maior taxa de incidência de covid-19, mas com hospitalização e letalidade muito menor, mostrando que a vacina faz a diferença. A gente precisa avançar na terceira dose. Ela é necessária.
A médica demostra preocupação sobre a vacinação de crianças na cidade:
— Há aumento de hospitalização nessa faixa etária com a Ômicron no RS. As crianças têm que estar vacinadas para se pensar em flexibilização de uso de máscaras — alerta a especialista.
Para o médico intensivista Roger Weingartner, os sentimentos que vinham na época também eram de ansiedade pelo desconhecido.
— Lutaríamos sem armas. Sabíamos que teríamos tempos difíceis, tanto pelo risco de contaminação da equipe (algum de nós morrerá? quem? ) quanto pela gravidade que era anunciada. Depois, veio um período de relativa diminuição de casos. Escutávamos que a pandemia havia terminado. No entanto, não havia vacina para todos. Para nós, iniciamos no final de janeiro de 2021. Portanto, parecia óbvio que voltaria uma nova onda. Era questão de tempo.
Ele ressalta que a segunda batalha foi muito mais agressiva, com a nova onda:
— Muita gente jovem e sem outros problemas de saúde ficaram doentes e de forma grave. Houve UTIs sendo abertas em locais improvisados, o medo de faltar respiradores e até mesmo de oxigênio, como vimos em algumas cidades. As equipes estavam cansadas, tanto psicologicamente quanto fisicamente pelas horas ininterruptas de trabalho. A terceira onda que tivemos não afetou as UTIs como as outras, afetou principalmente as equipes de pronto atendimento, porque os pacientes estavam menos graves. Isso é reflexo da vacinação, somada à imunidade natural pela infecção que muitos adquiriram e a última variante menos agressiva — avalia ele.
Higienização se tornou um legado
Para a infectologista Viviane Buffon, do Hospital Geral, o cenário também é considerado mais tranquilo porque há redução no número de internações.
— Não podemos afirmar que não vamos voltar a ter aquele cenário, mas estamos confiantes. O grande ensinamento da pandemia não foi apenas de ter um sistema de saúde organizado e fortalecido, mas também de manter todo o cuidado com a saúde mental. A pandemia trouxe a necessidade de isolamento, medo da morte e esse alerta de que é preciso cuidar da saúde mental.
Para a médica, há hábitos que vão se tornar um legado:
— O uso de máscara se houver sintoma respiratório, o uso do álcool gel, a higiene das mãos com água e sabão, esses cuidados, que não eram pensados quando se tem algum sintoma respiratório, acredito que a maioria das pessoas vai utilizar como um recurso de proteção.
Nova fase ainda traz dúvidas, analisa membro da Rede Análise Covid-19
Isaac Schrarstzhaupt, da Rede Análise Covid-19, que reúne pesquisadores brasileiros, avalia que essa "nova fase" ainda traz muitas dúvidas.
— A primeira coisa que os dados nos deixam claro é de que ainda não temos uma previsibilidade nas curvas ou uma "curva sazonal" como temos com a Influenza, por exemplo. Todos os anos, até 2019, a gente sabia o início, o fim e até o tamanho da curva. Quando acontecia alguma epidemia, sabíamos o limiar. Desde 2020 e mesmo agora, as curvas ainda estão totalmente imprevisíveis, e o número de casos ainda é bastante alto.
Ele pontua que a vacina reduziu a letalidade da doença, mas a transmissibilidade segue cada vez mais alta devido às variantes e às flexibilizações.
— Estamos em queda, mas o patamar ainda está altíssimo, o que significa que tem bastante vírus circulando ainda. Agora é uma época onde tradicionalmente temos aumento de síndromes respiratórias. Considero temerário flexibilizar máscaras. Parece que mudamos um pouco a percepção do que é ruim, pois o Brasil inteiro tinha 15 óbitos por dia por todas as causas de SRAG somadas em 2019 e hoje, só Caxias do Sul, está tendo dias de seis óbitos só por covid.