Passado mais de um mês do início do ano letivo de 2022, escolas da rede estadual e municipal — que tiveram volta às aulas entre os dias 18 e 21 de fevereiro — ainda enfrentam falta de professores, de funcionários e até mesmo de vagas para receber alunos em Caxias do Sul. Os desafios da rede pública são tema de uma série de reportagens que podem ser acompanhadas desta quinta-feira (23) até sábado (26).
Nesta primeira parte, as equipes da rede estadual buscam alternativas para lidar com a falta de professores e funcionários. Levantamento realizado pela reportagem de segunda-feira (21) até as 11h30min de quarta-feira (23) constatou que pelo menos 41 escolas, de 48 estabelecimentos consultados, sentem o impacto da falta de servidores em Caxias do Sul. Juntas, somam 24.076 estudantes matriculados. No total, o município tem 56 escolas da rede, porém sete não atenderam aos telefonemas, nem retornaram e-mail com solicitação dos dados. A direção da EEEF Ismael Chaves Barcellos optou por não fornecer informações sobre a escola.
A 4ª Coordenadoria Regional de Educação (4ª CRE), que abrange as escolas estaduais de Caxias, afirmou, em nota, que todos os esforços estão sendo voltados para a contratação de professores e funcionários. Enquanto isso não acontece, diretores reclamam de dificuldades de gestão enfrentadas pela defasagem no quadro de servidores. Além disso, estudantes de diferentes níveis estão sendo dispensados ou contando com atividades alternativas no horário no qual não estão tendo aulas.
Embora a demanda por professores ocorra em mais escolas (35) e impacte a vida de muitos estudantes, com pelo menos 892 horas/aula em aberto, especialmente em disciplinas como Matemática e Língua Portuguesa, a falta de funcionários, que ocorre em 30 escolas contatadas, também influencia a rotina escolar, superando a demanda por professores, com mais de 2.760 horas em aberto.
— Já tivemos anos bem piores aqui na escola, mas o recurso humano está piorando. Tem muitos diretores que estão sozinhos, que não conseguem nem fazer reunião porque precisam fazer todo o resto. Não temos perna para isso — afirma a diretora da Evaristo de Antoni, Ingrid Pereira Piccini.
O educandário que fica no bairro São José totaliza 796 estudantes matriculados e tem falta de professor que atenda a 18 horas/aula em Matemática; e duas horas/aula em Mundo do Trabalho — disciplina do novo currículo. Segundo a diretora, na equipe escolar ainda faltam profissionais para orientação pedagógica (40 horas) e monitores para alunos com necessidades especiais (20 horas), algo que deixa 18 alunos desassistidos. Na limpeza, ela afirma contar com duas funcionárias atualmente, sendo metade do necessário para o serviço, que conforme a diretora, ainda demanda, pelo menos, mais duas profissionais, em uma carga total de 80 horas.
O levantamento da reportagem também verificou que, em pelo menos sete escolas há falta de profissionais que atuem na secretaria. Somente no Colégio Henrique Emílio Meyer, no bairro Exposição, que tem 1.050 estudantes matriculados, 80 horas estão sem ocupação neste cargo.
— Há 10 anos, quando comecei a trabalhar aqui na escola, éramos em três profissionais. Com o tempo, as colegas foram saindo, sem substituição, e eu estou aqui sozinha desde novembro do ano passado, fazendo serviço de 60 horas, sendo que fui contratada para 40 horas. Com certeza este é o meu pior momento profissional — desabafa Vandelízia Stecanella Pedroso, 56, secretária da escola.
Na Escola Santa Catarina, que atende 1,1 mil estudantes no bairro de mesmo nome, a situação é crítica no refeitório. Segundo a diretoria, os estudantes da noite estão sem merenda porque a única profissional da cozinha está de licença. Também por falta de efetivo, apenas uma funcionária dá conta dos turnos da manhã e da tarde, frequentados por quase metade do total de alunos da escola.
— Quando entrei, há três anos, éramos em três. Mas depois elas foram saindo e não teve substituição. Naquela época, um dos motivos da saída foi que já achavam muito trabalho para ser feito em três. Se o salário fosse um pouco melhor, duvido que não teria quem quisesse. Mas com salário de R$ 1,3 mil, não tem como uma mãe de família sustentar os filhos. Eu fico porque não dependo só desse dinheiro — relata a merendeira da escola, Fabiana Aparecida Lemos Alves, 46.
Com experiência de uma década como merendeira, também em outras escolas da rede estadual, ela disse mal lembrar de quando teve uma estrutura adequada de equipe para atuar e que, especialmente nos últimos cinco anos, a situação foi se agravando até chegar ao ponto no qual ela se encontra atualmente: servindo sozinha refeições para mais de 500 estudantes.
— Merenda nunca faltou, o que tem é falta de funcionário — completa Fabiana.
Segundo a diretora, Flavia Schefelbanis, a escola tem contado até mesmo com o auxílio de uma mãe, que integra o Conselho de Pais e Mestres (CPM) e está atuando como voluntária na cozinha.
— Felizmente, temos uma comunidade ativa, porém é difícil dar conta. A escola está movimentada, os alunos estão vindo com euforia, ansiosos depois de tanto tempo sem estar em sala de aula, é difícil manter tudo em ordem. Se tiro uma pessoa de um lugar e ponho em outro, é desvio de função. Essa situação está nos levando a fazer uma reunião com os pais, para relatar o que está acontecendo — comenta a diretora.
No levantamento da reportagem as escolas também relataram falta de profissionais em cargos de supervisão, orientação educacional, coordenação pedagógica, financeiro e vice-direção. Na EEEM Antônio Avelino Boff, em Fazenda Souza, dentre outras demandas, o diretor Orlando Kilian Corrêa relata que está atuando sem vice-direção em dois turnos.
— É muito complicado. A gente está procurando substituir alguns professores, porque algumas turmas não podemos liberar. Aqui a contratação ficou ainda mais difícil depois que o Estado reduziu o complemento de difícil acesso que era fornecido. Antes da reforma, até 2018, quem trabalhava 40 horas, recebia em torno de R$ 700, valor que agora está na metade. Tem professor pagando para vir trabalhar. Isso precisaria ser revisto, porque não tem condição — comenta o diretor.
Alunos chegam a ser dispensados por falta de professores
Diretores e outros profissionais de escolas da rede estadual ouvidos pela reportagem relataram que, além de suprir a falta de servidores, também é difícil manter o atendimento aos estudantes nos períodos sem professor. Em algumas escolas, a organização das matérias tem sido feita de forma a viabilizar que os estudantes seja liberados mais cedo, comecem mais tarde o turno ou, sequer, se desloquem até a escola em determinados dias.
Somente na Escola Estadual de Ensino Médio Maria Aracy Trindade Rojas, que atende a estudantes no bairro Santa Lúcia, faltam professores de Língua Portuguesa (43 períodos), Literatura (cinco períodos), Espanhol (13 períodos), Física (sete períodos) e Inglês (seis períodos). Segundo a direção da escola, o turno mais prejudicado é o da manhã: pelo menos três turmas não tiveram aula na quinta-feira passada, dia 17, sendo dispensadas por falta de docente em sala de aula.
— Com o novo currículo, temos mais períodos de Língua Portuguesa agora. Somente nesta manhã (dia 17) seriam quatro, por isso acabaram nos dispensando. Nas terças também estão nos liberando mais cedo porque não tem o último período, que seria de Física — relata Juliane da Silva Lemos, 17, que está matriculada no 3º ano do Ensino Médio da escola Maria Aracy.
Juliane integrou um grupo de cerca de 40 estudantes que se manifestaram em frente à sede da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) na quarta-feira, dia 16.
— Fomos até lá em busca de respostas, de um posicionamento deles. Nos disseram que não têm muito o que fazer, porque não depende apenas deles. Até o momento ainda não tivemos nenhuma substituição e nem previsão. Meus colegas e eu estamos nos preparando para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) sem professor em sala de aula — lamenta a estudante.
Sindicato aponta demissões e desvalorização
O 1º Núcleo do Cpers-Sindicato, que abrange 92 escolas da rede estadual da região, incluindo as 56 de Caxias do Sul, também realiza um levantamento nas escolas para averiguar a situação. O diretor do núcleo, David Orsi Carnizella, afirma que, neste ano, a falta de professores — também registrada no início de outros anos letivos — está agravada pelo fato de docentes que reduzem carga horária no Estado estarem sendo desligados.
Ele relata que, pelo menos até o final do ano passado, os profissionais podiam dividir a carga com outras redes, sem perder o vínculo, mantendo horas mais "quebradas" na rede estadual, que os paga por hora. Segundo Carnizella, esse procedimento não tem mais sido aceito pelo Estado.
— Algumas matérias têm uma questão bem estrutural mesmo, que depende das universidades, do incentivo às licenciaturas em determinadas áreas. E tem também casos isolados, de disciplinas que perdem profissionais para outras redes, como no caso do Espanhol e do Inglês. Mas, desde meados do ano passado, professores que optam por reduzir a carga horária para conciliar com as aulas em outras redes, estão sendo desligados — afirma o presidente.
Segundo ele, a defasagem salarial do funcionalismo público na rede estadual é um dos principais motivos que levam professores, que legalmente podem exercer até 60 horas semanais, a conciliarem as aulas das estaduais com escolas de outras redes.
— A gente recebe por hora. Então, quando baixa a carga, reduz também o salário. Mesmo assim, muitos professores querem manter o vínculo. No caso de outros funcionários, por falta de efetivo, muitos estão ficando sobrecarregados porque fazem o serviço de duas ou até três pessoas — relata Carnizella.
Procurada pela reportagem, a 4ª CRE não repassou um levantamento a respeito da falta de professores, justificando que não é possível precisar um número, uma vez que o quadro está em constante mudança em função de fatores como contratações, dispensas e licenças. Em uma nota oficial, informou, ainda, que "todas as carências são tratadas com a maior celeridade possível com o objetivo de sanar a falta de RH nas escolas o mais brevemente, seguindo a legislação e o edital vigente para contratação". A coordenadoria regional não comentou os desligamentos apontados pela representação sindical.
Abaixo, a situação da rede estadual no município:
Rede municipal também registra falta
Na rede municipal, também há defasagem de efetivo neste início de ano letivo. Em ofício mais recente divulgado pela Secretaria Municipal de Educação (Smed), na semana passada, ainda haviam 31 vagas em aberto. A presidente do Sindicato dos Servidores Municipais de Caxias do Sul (Sindiserv), Silvana Piroli, diz que isso ocorre por fatores como aposentadorias, exonerações e licenças, e também por uma falta que, segundo ela, é histórica na rede municipal de Caxias.
— Historicamente existe falta de professores, o que a Smed faz para equacionar o problema é nomear mais profissionais, a exemplo do edital publicado no dia 4 de março; e divulga também as vagas para ampliação de jornada. Este início do ano foi tumultuado pois existia carência de profissionais para determinadas áreas, mas que, aos poucos, vem sendo supridas com Convocações de Ampliação de Jornada (CAJ) e nomeações. Ainda tem necessidade de aumentar o número de nomeações, uma vez que o concurso está em vigência. O Sindicato defende que devem ser nomeados mais servidores, pois o quadro de alunos está se ampliando — afirmou Silvana.
A secretária da Educação, Sandra Negrini, diz que, em um universo de cerca de 3 mil profissionais, há falta de 10 professores para carga horária completa (20 horas). A dificuldade é preencher as cargas horárias "quebradas" nas instituições, que variam de duas a 10 horas/aula nos cinco dias da semana.
Ela explica que as cargas horárias que precisam ser preenchidas não justificam a nomeação de um professor. Para resolver a questão, a Smed, então, propõe a ampliação de jornada para os profissionais, porém, nem todos aceitam a proposta:
— Muitos professores, ao serem chamados, preferem vagas que não demandem a sala de aula e isso faz com que a secretaria tenha que chamar os próximos inscritos, demorando um tempo. Não tem nenhuma turma sem professor, a escola tem um corpo de apoio que faz essa substituição — explica Sandra.
Seduc diz estar tomando providências
Procurada pela reportagem a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) confirmou que há demanda por professores e profissionais da área da Educação em Caxias do Sul. Em retorno via assessora, afirmou que "a organização do quadro de recursos humanos é realizada de forma constante em todas as regiões e nota-se que há um aumento da necessidade nos períodos em que ocorre a convocação de professores pelos municípios".
Questionada em relação aos desligamentos por redução de carga horária, relatados pela representação sindical, a secretaria disse que "o contrato emergencial do Estado é de 40h e uma vez que o profissional pede redução de 20h, ou menos, há a necessidade de realizar outra contratação. Portanto, pelas regras, os funcionários que cumprem a carga horária completa têm prioridade na efetivação da vaga".
A declaração por e-mail destacou, ainda, que "todas solicitações das escolas estaduais serão atendidas e novas contratações emergenciais já estão sendo realizadas para suprir as vagas", porém não deu uma previsão de quando o quadro funcional deverá estar completo.
CONTRAPONTO
Confira a íntegra do comunicado enviado pela Seduc:
A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) informa que há uma demanda por professores e profissionais da área da Educação no município de Caxias do Sul. A organização do quadro de recursos humanos é realizada forma constante em todas as regiões e nota-se que há um aumento da necessidade nos períodos em que ocorre a convocação de professores pelos municípios.
A Seduc reitera que todas solicitações das escolas estaduais serão atendidas e novas contratações emergenciais já estão sendo realizadas para suprir as vagas.
Em relação à redução de carga horária dos professores, cada caso está sendo analisado individualmente. O contrato emergencial do Estado é de 40h e uma vez que o profissional pede redução de 20h, ou menos, há a necessidade de realizar outra contratação. Portanto, pelas regras, os funcionários que cumprem a carga horária completa têm prioridade na efetivação da vaga.