Desde a implantação de cinco estruturas metálicas para a travessia aérea de anfíbios na Rota do Sol, em Itati, no final de outubro, o assunto tomou conta das redes sociais com piadas e questionamentos a respeito da efetividade dos dispositivos. A principal dúvida é como garantir que os animais utilizem os dispositivos e por que investir recursos em uma solução do tipo. A reportagem foi em busca de respostas, mas para entender a importância das estruturas, primeiro é preciso conhecer a região onde elas estão inseridas.
O local fica junto à Reserva Biológica Estadual Mata Paludosa, uma área de preservação criada oficialmente em 2000 após ser identificada por biólogos que realizavam o estudo ambiental para a pavimentação da Rota do Sol, na década de 1990. Ao avaliar a área de mata, às margens da rodovia — que já tinha o traçado definido — os especialistas encontraram um cenário rico em espécies animais e uma floresta úmida e alagadiça em períodos de inverno. Essas características são ideais para determinadas espécies de anfíbio, que só existem nessa região.
— Na primeira vistoria já se verificou a importância daquela aérea. A reserva foi criada por nós. É um ambiente único no mundo. De Mata Atlântica, na planície costeira do Rio Grande do Sul, só sobrou pouco mais de 200 hectares, que pegam a região de Itati, Terra de Areia, Dom Pedro Alcântara e Três Cachoeiras — afirma o biólogo e mestre em Ecologia Animal, Adriano Souza da Cunha, proprietário da Biolaw, consultoria ambiental responsável pelos estudos para construção da rodovia e também pelos estudos que identificaram a necessidade das travessias.
Ainda na época da pavimentação da estrada, três passagens subterrâneas foram implantadas por sugestão da equipe de Cunha. Ao longo de nove anos de acompanhamento da fauna, os biólogos conseguiram comprovar o uso dos dispositivos.
Contratada pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), a Biolaw voltou a campo entre o fim de 2017 e o início de 2018 para verificar o comportamento das espécies e a quantidade de mortes por atropelamento. Na época, o trabalho exigiu bloqueios momentâneos da rodovia e o acompanhamento de órgãos policiais.
— Comprovamos nesses anos a mais de estudo (2017 e 2018) que o atropelamento de animais terrestres tinha diminuído, mas os arborícolas (que vivem nas copas das árvores) não descem. Zorrilhos e gambás passam pelo túnel, mas pererecas, que vivem nas árvores, estavam passando por cima do asfalto. Existem basicamente três tipos de anfíbios: os sapos, que se afastam da água na fase adulta; as rãs, que vivem na água; e as pererecas, que nascem nas árvores e muitas morrem sem nunca descer — explica Cunha.
É aí que entram as passagens aéreas, instaladas nos pontos onde mais se identificaram os atropelamentos. São estruturas de três metros de largura, em aço galvanizado e pintadas com tinta naval para evitar corrosão. Quem as observa pode se questionar como os animais irão subir nas estruturas ou saber que devem passar por ali. É o caso de moradores das redondezas da Mata Paludosa, que não acreditam que os dispositivos salvarão os animais.
— É absurdo. Todo mundo ri. Ninguém acredita que as rãs (na verdade, pererecas) vão trepar. Virou motivo de chacota — afirma Pedro Rosa de Oliveira, 52 anos, que trabalha com serviços gerais.
O biólogo Cunha é enfático ao dizer que as estruturas estão longe de ficar prontas. O objetivo é que os animais saiam das árvores direto para a travessia, sem que precisem escalar. Para isso, elas serão envoltas pela vegetação, funcionando como uma espécie de extensão da mata.
— Vamos colocar plantas de crescimento rápido, trepadeiras que vão envolver a travessia. É uma estrutura metálica, atualmente fica ao sol e é quente. Anfíbios não gostam disso. Também é preciso ter cuidado para que não haja sobrecarga de terra e plantas que deem frutos que podem cair nos carros. Tudo isso será monitorado. Biologia não é uma ciência exata e é a primeira no mundo (travessia aérea voltada a anfíbios). Mas não podemos ficar esperando a espécie ser extinta — destaca o biólogo.
Entre a primavera e o verão do ano que vem, um novo estudo será realizado para medir a efetividade dos dispositivos.
Licença ambiental exige preservação
Conforme Adriano Souza da Cunha, as medidas que já foram tomadas são uma forma de adequar a rodovia para garantir a preservação dos animais. Na época da projeção da estrada, chegou a se levantar a hipótese de se construir uma pista elevada, deixando toda a parte inferior livre para a circulação dos animais. A ideia acabou descartada devido ao alto custo.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no entanto, exige medida de proteção da fauna para a licença ambiental de operação da rodovia. O documento foi renovado por 10 anos recentemente. Além disso, segundo o Daer, o Ministério Público Federal (MPF) também determinou medidas de preservação a partir de uma ação civil-pública movida por organizações não-governamentais.
Essas exigências legais também estão por trás da existência das lombadas eletrônicas com limite de 40km/h, no exato ponto onde ficarão as travessias. Segundo o Daer, inclusive, se os novos dispositivos reduzirem drasticamente os atropelamentos e houver autorização judicial, os controladores podem ser removidos. Cunha, porém, entende que o melhor seria reposicioná-los, aproximando um do outro.
— Os caras reduzem nas lombadas e aceleram entre elas. Se andassem a 40km/h, perderiam 30 segundos de viagem e não precisaria fazer tudo isso, porque os bichos conseguiram escapar. Tenho certeza que se ali tivesse um panda, todo mundo diria "coitadinho do panda", porque tem apelo — observa.
Mariza Strasbur, 38, é atendente de um mercado na localidade de Vila Nova, ao lado da Mata Paludosa. O ponto também é conhecido como Vila do Sapo, devido à aparição frequente de anfíbios. Para ela, tudo o que puder ajudar na preservação é bem-vindo.
— Já vi puma, já vi tatu. Acho que o pessoal tem que cuidar. Eu, como cidadã, respeito.
Extinção de espécies traz prejuízo a humanos
Para implantar as travessias, os técnicos buscaram referências em todo o mundo. Não foram encontradas, porém, travessias aéreas para anfíbios. Segundo Cunha, onde mais há travessias para essas espécies é a América do Norte e a Europa. No entanto, por não serem regiões tropicais, nesses países há apenas anfíbios terrestres, que demandam passagens subterrâneas. Na Ásia, segundo ele, há algumas passagens aéreas para a fauna que precisaram ser adaptadas para a realidade brasileira.
A preservação dos anfíbios da Mata Paludosa é importante não apenas por respeito à natureza e manutenção do equilíbrio ecológico. Espécies do tipo podem ser fonte de substâncias com potencial de uso medicinal.
— A perda de qualquer espécie é sempre desastrosa, ainda mais sendo vertebrados. Anfíbios têm muitos hormônios que não são totalmente conhecidos e que podem ter uso para a saúde. Tem várias questões genéticas deles que ainda nem sabemos direito, temos que preservar ainda que não saibamos todo o potencial — defende o biólogo.
Preservação já foi alvo de campanha
Entre os questionamentos e manifestações de quem desconhece as demandas ambientais da Rota do Sol, alguém pode se perguntar por que não há uma divulgação maciça das ações realizadas na rodovia. Questionado, o Daer disse que serviços e obras são permanentemente divulgados no site e redes sociais da autarquia, além de veículos de comunicação. Além disso, todas as sextas-feiras o órgão publica conteúdo dedicado à preservação ambiental da Rota do Sol.
Ainda segundo a autarquia, atualmente não há recursos para campanhas publicitárias maciças, mas ações do tipo já foram realizadas entre 2013 e 2014, quando outdoors alertavam parado risco de atropelamento de animais durante o período de veraneio.