Almoçar com a família, acampar com amigos, pescar na beira do rio, entrar na água para se refrescar em dias mais quentes ou apenas relaxar em contato com a natureza contemplando a paisagem. Esses são programas que fazem parte da realidade das cidades onde passam rios, como o Caí. Na região Nordeste do Rio Grande do Sul não é diferente. O problema é que as estatísticas comprovam que muitas pessoas desconhecem os perigos do rio por serem de fora da cidade ou da região ou apenas acabam ignorando o risco e perdem a vida ao não conseguir sair da água.
Na temporada 2020/2021, de dezembro até agora, oito pessoas morreram afogadas no Rio Caí. Os casos foram em Caxias do Sul, Bom Princípio e Vale Real, que são os pontos mais perigosos segundo os bombeiros que atuam na região. O Rio Caí é um dos mais importantes e conhecidos do Estado. Ele cruza 41 municípios. Destes, 18 ficam na região, sendo quatro cidades da Serra, dez do Vale do Caí, três da Região das Hortênsias e uma dos Campos de Cima da Serra, que é São Francisco de Paula, onde o Rio Caí nasce no distrito de Tainhas.
Os últimos casos deste ano foram registrados no Vale do Caí e na Serra. Luiz Antônio Feijó, 59 anos, desapareceu nas águas, em 18 de setembro. O caxiense foi até o curso do rio, em Vale Real para pescar. O corpo dele foi localizado no dia 22 preso a um dos pilares da ponte baixa. O barco em que ele estava, de madeira, foi encontrado emborcado, com o material de pesca, ainda no dia 20, perto da ponte.
Onze dias antes, em 6 de setembro, três jovem perderam a vida nas águas do mesmo rio em Caxias do Sul. Michelle Fonseca, 14, Daniel Fidelis, 20 e Jennifer Fidelis, 19, estavam em Nova Palmira, uma localidade do distrito caxiense de Vila Cristina. Um jovem que estava com o grupo relatou aos bombeiros que Jennifer entrou na água para socorrer Michelle. A adolescente teria começado a se afogar logo após entrar no Rio Caí, só que Jennifer também começou a ser levada pelo rio e Daniel entrou para socorrer as duas. Os três morreram.
Por que o Rio é tão perigoso?
Não existe detalhamento de quão profundo é o Rio Caí, mas assim como os rios da região que correm em áreas montanhosas e geologicamente cheias de fissuras e fendas é muito comum ter buracos de 10, 12 e até 15 metros de profundidade em todo o trajeto dele. A informação é de Marcos Vieira Porto, geógrafo e mestre em Geologia e Geofísica Marinha.
— Tem lugares que olhamos e o rio está raso e os banhistas ou quem foi pescar pensa que é tranquilo para atravessar, mas ali pode ter buracos. Vai ter trechos que têm os buracos e que são lugares que normalmente se denunciam pelo relevo, então se tu olha e verifica que tem montanhas muito íngremes nas proximidades do Rio Caí é um indicador de que pode haver um buraco profundo ali, em torno de até dez metros. Tem muitos desses locais em todo o curso do Rio Caí e é muito difícil precisar todos — explica.
Quanto a redemoinhos, o especialista aponta que depende do regime pluviométrico.
— Pode ser que esteja tudo calmo e muito tranquilo, mas logo depois das precipitações, das chuvas, a correnteza esteja forte e esse buraco gere o chamado redemoinho. Isso pode acontecer no curso médio do rio (saiba mais abaixo) onde o Caí é usado para irrigação e recreação. Esse trecho é onde tem lugares com balneários e mini prainhas com pedrinhas e areia, próximos aos afluentes, e frequentados por banhistas — destaca ele.
Porto explica ainda que todo rio é potencialmente perigoso:
— Existe uma coisa muito importante que nem todos sabem e precisam ficar atentos, porque quando a gente sabe que está chovendo de forma volumosa em algum lugar a montante, ou seja, rio acima, tem que ter muito cuidado. Porque, às vezes, não está chovendo onde estamos na água, mas já choveu um volume considerável rio acima e aí pode vir uma torrente de forma inusitada. Já teve gente que morreu por causa disso, que foi arrastada porque estava tudo calmo e tranquilo e, de repente, o rio se avoluma, vem aquele monte de água do nada... choveu muito em outro lugar e a água vem descendo, seguindo seu curso e a gente não tem ideia de que aqui embaixo será afetado. A pessoa é pega desprevenida porque ele vem com muita força.
Rio Caí é traiçoeiro, alerta comandante dos bombeiros voluntário de Bom Princípio
Os bombeiros voluntários do Vale do Caí alertam para os perigos do rio, do qual já perderam as contas de quantos corpos precisaram resgatar. O comandante dos Bombeiros Voluntários de Bom Princípio, Paulo Renato Mayer Portinho, percorreu com a reportagem alguns pontos do rio, e mostrou onde ocorreram os afogamentos. Um dos pontos mais procurados para acampar e pescar é logo depois do paredão de pedra que é um dos lugares que os turistas querem conhecer. Esse paredão fica na estrada de chão batido a beira do rio na localidade de Passo Selbach. No acesso ao espaço, uma placa já avisa. Na imagem fica claro que é proibido nadar e a mensagem não deixa dúvidas: Perigo! Risco de Afogamento. Banhistas e pessoas que vão até o ponto pescar ignoram o aviso.
A equipe de Bom Princípio também atua em Tupandi e Vale Real. Para se ter uma ideia, desde 1998 até hoje, 32 pessoas morreram afogadas nas três cidades, segundo Portinho. No final do ano, com os dias quentes, a procura por rios para se refrescar aumenta e, com isso, a tendência é que o número de casos aumente também. Ele alerta a comunidade, principalmente, quem é de fora da cidade, a ficar atento aos pontos mais perigosos do Caí:
— Olhando assim, o Caí parece manso, calmo, uma lagoa, mas a cada enchente muda o relevo do rio. Quem não conhece não se dá conta da força da correnteza. Tem poços no Rio Caí com 12 metros de profundidade . As pessoas vem com a família acampar, passar o dia, fazem churrasco e acabam se empolgando e se atiram na água sem perceber os riscos. Tem meses, em época de seca, que parece uma praia, mas águas paradas são profundas. Tem que ter cuidado sempre. O Rio Caí é traiçoeiro — alerta ele.
Para o comandante, é essencial que quem pense em conhecer o Rio ou passar o dia em pontos na beira do Caí, avise os bombeiros ou moradores da cidade onde ficará:
— As pessoas das cidades não vão sozinhas pescar ou passar o dia na beira do rio. Elas conhecem os pontos mais perigosos. Os turistas, quem é de fora, tem que evitar ir sozinho aos lugares e, principalmente, procurar outros acessos ao rio, porque em caso de afogamentos fica ainda mais difícil localizar onde estavam e, por isso, é importante que nos avisem onde pretendem ir, e que falem com quem mora na cidade.
"Perdi as contas de quantos corpos de pessoas que perderam a vida tirei das águas do Rio Caí", conta mergulhador voluntário
Em São Sebastião do Caí, há uma equipe de mergulhadores que atuam no quartel dos Bombeiros Voluntários do município e ajudam em resgates de toda a região do Vale do Caí.
— O Rio Caí muda a cada cheia, é um rio novo a cada enchente. Infelizmente, há cada ano precisamos fazer resgates de corpos de quem desconhece o rio, entra na água e não sai. Geralmente, quem se afoga são pessoas de fora. É muito difícil ser alguém da cidade ou dos municípios da região — conta o comandante dos Bombeiros Voluntários de São Sebastião do Caí, Anderson Jociel da Rosa.
Mergulhador há 23 anos, Rafael Flores, 41 anos, está afastado da função há cerca de um ano por licença-saúde. Ele conta que começou a mergulhar como voluntário mirim aos 15 anos depois de ver o pai Adair Pedro Flores e os tios Getúlio, João, José e Paulo Propício atuarem na região para salvar quem se afogava ou retirar corpos de quem se afogou das águas do Rio Caí. Destes, apenas Paulo ainda está vivo e é com o tio que ele divide a paixão pela água.
— Eles mergulhavam porque não tinha mergulhador e nem equipamentos. Aprendi a mergulhar com garateia, usado para pesca com vários anzóis na extremidade da mesma linha, e apneia, sem equipamento, apenas com o ar dos pulmões. Os resgates eram feitos por eles e eu segui o mesmo caminho — recorda ele.
Flores ressalta que na cidade o número de afogamentos é menor do que na região porque os bombeiros tem feito um trabalho de prevenção nas escolas, e os moradores conhecem bem os perigos do rio. Já nas cidades próximas, como Harmonia, Feliz, Vale Real e Bom Princípio, a equipe de mergulhadores do Caí é acionada. O mergulhador voluntário salvou muitas pessoas, mas o número maior são das pessoas que não conseguiram sair com vida:
— Salvei muitos, mas tirei muitos sem vida da água também. Já perdi a conta de quantos corpos que resgatei na região do Vale do Caí. Tem casos mais marcantes, mas não lembro ao certo o ano. Sei que foi na véspera de Natal. Tirei três corpos da água e no ano seguinte dois irmãos morreram afogados.
Flores conta ainda que um dos casos de afogamentos no Rio Caí, em São Sebastião do Caí foi do avô dele
— Meu vô era marinheiro e morreu afogado. Foi meu tio, o José, que tirou o corpo do próprio pai da água.
Não basta saber nadar, diz comandante do 5º Batalhão de Bombeiros Militar
O comandante do 5º Batalhão de Bombeiro Militar (BBM) de Caxias do Sul, tenente-coronel Julimar Fortes Pinheiro, afirma que os dois rios com maior incidência de afogamentos na Serra são o Rio Caí e o das Antas. Para ele, é necessário que as pessoas se preparem para ir até esses locais e levem boias, coletes ou objetos que permitam que a pessoa flutue na água:
— Por desconhecer a profundidade, acabam entrando no rio além do limite de segurança, que é com a água até a cintura e não levam equipamentos de proteção que ajudem a pessoa a flutuar. Tanto os banhistas quantos os pescadores amadores entram sem equipamento de proteção, e mesmo conhecendo o rio, ou sabendo nadar, infelizmente, perdem a vida. Não basta ter habilidade, saber nadar, para vencer a correnteza de um rio. Tem que levar objetos que mantenha flutuando, como boia, colete... levar cordas também e não ir sozinho, porque, aí, quem tá na margem pode jogar esse objeto na água; e quem está se afogando consegue flutuar até a chegada do socorro.
Ele entende que, em casos de afogamento, o desespero acaba levando as pessoas a tentar salvar quem está na água, mas aponta que o ideal é tentar manter a calma. E, se não levaram itens de segurança, procurar algo no entorno.
— Sabemos que no desespero um tenta salvar o outro e, na maioria das vezes, temos mais vítimas. Tem que tentar respirar, se acalmar e ver se encontra um galho, se tem algo no entorno, uma corda, uma madeira que possa ajudar quem está na água a flutuar, porque isso pode salvar vidas.
O comandante finaliza com um alerta.
— Tem duas coisas que não combinam para quem busca lazer ou tranquilidade pescando em rios: bebida alcoólica e água ou alimentos e água. Mas, especialmente, beber e nadar, porque o pessoal extrapola na bebida, se empolga na água e não volta — lamenta ele.
Saiba mais sobre o Rio Caí
O Rio Caí nasce perto de Tainhas, distrito de São Francisco de Paula, e deságua no Delta do Rio Guaíba, em Nova Santa Rita. Da nascente à foz tem cerca de 285 quilômetros e vem correndo de montante a jusante atravessando 41 municípios. Tem uma área de cerca de 5 mil quilômetros quadrados e corresponde a 1,8 do Estado em termos de área.
De acordo com o geógrafo e mestre em Geologia e Geofísica Marinha, Marcos Vieira Porto, o Rio Caí é dividido em três trechos. São eles, o curso superior, médio e o inferior. No superior, ele é mais usado para irrigação de culturas, produção de muda, diluição de despejos industriais e domésticos e algum tipo de recreação, que é pesca ou banho. No curso médio também é usado para irrigação e recreação, com pequenas prainhas e é frequentado por banhistas. Já no curso inferior, o Caí é usado para irrigação, alguns trechos são navegáveis por embarcações pequenas e há pontos de recreação, com pequenas praias onde tem trechos com areia e pedras miúdas e também para abastecimento público e industrial.