O salão paroquial da Igreja Nossa Senhora de Lourdes, em Caxias do Sul, recebeu 41 pessoas em situação de rua entre a noite de quarta-feira (28) e a madrugada desta quinta-feira (29). O número aumentou dos 36 presentes da noite anterior, já que os registros de neve e frio se intensificaram nas últimas horas e fizeram com que o público necessitado procurasse mais a acolhida do projeto social. Às 7h desta quinta-feira, muitos dos que estavam no espaço encantavam-se e brincavam com a neve, que ainda marcava presença nos jardins.
— Fantástico! Nunca tinha visto antes! — dizia David Custódio Duarte, 36 anos, de Porto Alegre.
Ao lado dele estava Kevin Lucas Suarez, 26. Feliz, ele pedia um registro fotográfico em que aparecesse o o nome da mãe de seus filhos, que ele escreveu nos flocos brancos.
— A neve é simplesmente top — contava, sorrindo.
David e Kevin passaram a noite no salão. O Hospedagem Solidária é resultado de uma parceria da Pastoral das Pessoas em Situação de Rua com a Fundação de Assistência Social (FAS). Uma força-tarefa criada por conta das baixas temperaturas registradas no Estado e, especialmente na Serra, faz com que, a partir desta quinta-feira, o espaço receba as pessoas também durante o dia. Até então, a recepção acontecia somente à noite.
Conforme a presidente da FAS, Katiane Boschetti, o horário começou a ser ampliado na terça-feira, quando o local passou a receber as pessoas às 16h. O horário normal é às 19h30min. Nesta quinta, permanecerá aberto sem fechar. Esse formato vai durar até nova informação dos organizadores, que não trabalham com um prazo para retomada do horário habitual. A Hospedagem Solidária começou em maio, na paróquia de Lourdes, com capacidade para 35 lugares. Por conta do frio, a quantidade subiu para 85 nesta semana.
Como é feita uma abordagem inicial antes da entrada, tanto por questões de segurança quanto por situações envolvendo sintomas de covid-19, quem passou a noite e pretende sair durante o dia terá que esperar a triagem das 19h30min para retornar. Já quem permanecer, poderá dar continuidade ao abrigo até a manhã de sexta-feira.
"Estou acostumado a não ter pra onde ir", diz acolhido do projeto
Entre os 41 acomodados em colchões pelo chão estava Alessandro Rafael Ferreira, 37. Natural de Erechim, ele contou que foi morar ainda bebê em Paragominas (PA) com os pais. Com histórico de violência doméstica, a mãe dele fugiu de casa e entrou em contato com Alessandro quando ele já tinha 14 anos. Foi quando ele conheceu a mãe e voltou para Erechim.
— Aos 16 eu passei a vender mandolate e já não ficava mais em uma cidade só. Comecei a viajar sempre. Não tenho endereço fixo. Já estou acostumado a não ter pra onde ir. Minha vida é trabalhar e servir a Deus. Não me importo com capital, não preciso obter nada nesse mundo — contou.
Para Alessandro, o vício fez com que ele não seguisse os sonhos de ser caminhoneiro ou engenheiro civil.
— Eu usava crack, pó, êxtase, tudo para passar o tempo. Mas agora estou parando. Nós temos um tempo nessa caminhada da vida e, quando chega ao fim da linha, aí vamos ver se fomos bons ou não, Deus é quem saberá — afirmava.
Alessandro está em Caxias há três anos e contou que, em breve, voltará a Erechim.
Voluntários ressignificam a vida após experiências com rua e drogas
A equipe de voluntários que dedicavam o tempo para cuidar do grupo e servir café da manhã é formada por inúmeras histórias e experiências de vida. A de Roger Schweickardt, 35, é marcada pela superação. Ele trabalha na Pastoral de Apoio ao Toxicômano Nova Aurora (Patna), além de doar o tempo a projetos como o Hospedagem Solidária e em atividades do projeto Mão Amiga. Mas, antes disso, uma reviravolta precisou acontecer. Roger era funcionário público federal, mas acabou sendo exonerado. O motivo é que ele já sofria com dependência química, o que refletiu na sua disciplina profissional — a situação dramática durou cerca de sete anos.
— Fiz meu tratamento na Patna e me identifiquei bastante. É possível sair de tudo, mas a pessoa tem que querer. Eu diria que 10% é responosabilidade das instituições (terapêuticas) mas 90% é força de vontade. Não cheguei a morar na rua, mas estava nesse caminho. A dependência química, por não ter cura, exige tratamento e vigilância para sempre — disse Roger, ao contar que começou a usar drogas quando tocava em uma banda, à noite.
Atualmente, ele canta e toca violão nos encontros da Patna. Formado em biologia e história, ele também deu aulas, mas atualmente busca formação na área de tecnólogo em educação social.
"O que leva as pessoas às drogas é a decepção", diz pastor recuperado
Por volta das 7h, o pastor Almir Guedes, 62, vestia um jaleco branco de voluntário e assumia seu posto na hospedagem. Depois de passar a noite no serviço de abordagem às pessoas nas ruas, ele voltava ao salão para monitorar o projeto. Almir entende bem a situação em que os beneficiados do programa estão. Dependente químico na juventude, ele também viveu nas ruas de cidades de Minas Gerais, Estado em que nasceu.
— Sou ex-viciado e faz 34 anos que me recuperei. O que leva as pessoas às drogas é a decepção, a mágoa, o ressentimento. Para me vingar das pessoas, eu estava me matando, sem analisar as consequências. Meu objetivo hoje é mostrar que a vida não é isso — destaca.
Ligado à doutrina Sara Nossa Terra, Guedes montou um grupo de atendimento a dependentes, chamado Libertos, e atua como voluntário nas horas vagas.
Conforme a Pastoral das Pessoas em Situação de Rua, o programa precisa da doação de cobertores de solteiro, calçados e jaquetas masculinas, além de arroz, extrato de tomate e pó para suco. Semanalmente, as redes sociais da Diocese de Caxias do Sul disponibilizam informações acerca dos itens necessários.
A hospedagem funciona de segunda-feira a domingo e conta com a colaboração de voluntários de diversos grupos e movimentos da Igreja Católica, com apoio da FAS e da Guarda Municipal de Caxias do Sul. O “Médicos do Mundo” também auxilia com a presença de médicos, enfermeiros, dentistas, podólogos e psicólogos.
Mais informações podem ser obtidas pelo fone (54) 3222-1636, no Salão Paroquial de Lourdes.