Sem uma data definida para voltar às salas de aula, crianças e adolescentes dividem medos e angústias em diferentes proporções em Caxias do Sul. De um lado estão os mais jovens, que ainda não entendem os reflexos da pandemia no ensino e, ao mesmo tempo, tiveram o primeiro ano escolar longe do convívio com os colegas e professores.
Os alunos pequenos mal tiveram a oportunidade de ingressar na escola em 2020, sendo que a maioria perdeu a chance de vivenciar a descoberta do mundo das letras, as brincadeiras com os colegas no pátio e o aprendizado com o professor em função da pandemia. Para os adolescentes, a casa também virou sala de aula. Eles deixaram os bancos escolares enquanto se preparam para ingressar na universidade, que é um momento cercado de ansiedade e medos a respeito do futuro.
Passado um ano, a esperança de retornar às aulas presenciais foi mais uma vez substituída por incertezas. Diante do aumento do número de casos, mesmo que o RS tenha passado a considerar o ensino atividade essencial, a Justiça barrou o retorno dos estudantes para conter o risco de contágio de covid-19. Em casa, mais uma vez, as crianças se sentem inquietas, os adolescentes estão angustiados e os pais, preocupados. O efeito da suspensão das aulas também pode ser sentido de forma diferente entre os níveis de ensino.
Os professores se tornaram mais criativos, mas os reflexos dessas mudanças bruscas na educação serão diferentes para cada estudante. As aulas a distância e as plataformas digitais são mais usadas no Ensino Médio e Superior. Na educação básica, o cenário é diferente. A fase de alfabetização, por exemplo, é vista como uma das mais difíceis de se transpor para o ambiente virtual.
A primeira série
Pais das gêmeas Isadora e Larissa, de sete anos, o casal Zulmira Oliveira da Silva e Marcelo Videman encarar o desafio de tentar, em conjunto com a escola, alfabetizar as filhas longe da sala de aula. As meninas cursaram a 1ª série da educação básica na Escola Municipal de Ensino Fundamental Ilda Clara Sebben Barazzetti, no bairro Santa Fé, em Caxias do Sul. A mãe conta que o processo de aprendizagem em 2020 foi cansativo e exigiu paciência:
— No início era tudo novidade, não tinha noção da proporção que era estar vivenciando o lado da alfabetização com ela. O processo de ensino não foi nada fácil. Elas começavam numa boa as atividades, e aí partiam para a brincadeira, riam do nada e acabavam me tirando do sério algumas vezes. Foi um ano bem complexo porque visamos a proteção. Mas, em relação ao estudo, ficou muito abaixo do desejado e nem todos os pais tem a disponibilidade de tempo — confessa a mãe, que cuida de um bebê durante o dia e trabalha à noite, já que devido a pandemia não pode trabalhar porque atuava com transporte escolar.
Mesmo com o desgaste e se sentindo sobrecarregada, ver as meninas aprendendo a ler e escrever foi recompensador. Com o tempo elas passaram a respeitar a rotina.
— Hoje, as meninas estão mais disciplinadas, já conseguem fazer as tarefas e, às vezes, quando elas têm dúvidas, eu oriento. Elas sempre gostaram de desenhar e vivem com lápis e folhas rabiscadas. Elas já escreviam o nome porque tinham aprendido no período da escolinha. Aí aprenderam a ler em 2020 com as atividades de livros. Acho que o fato delas estarem sempre com folha e lápis, brincando de desenhar, facilitou um pouco — afirma Zulmira.
Para acompanhar a evolução das crianças, a mesma professora da 1ª série assumiu a turma que está cursando a 2ª série em 2021. Mesmo assim, a mãe admite que há apreensão com o futuro das meninas. Ela acrescenta que a vantagem do ensino remoto é que os pais podem acompanhar mais de perto o conteúdo e passar mais tempo com os filhos enquanto estudam. No entanto, ela sabe que nem todos os pais podem participar desse processo e, mesmo quando podem, não tem o preparo e a formação necessários para ensinar as crianças.
Metodologias diferentes, mesmas angústias
O casal Eliana Vaccari Mognaga, 44, e Daniel Angelo Mognaga, 43, também passou pela experiência de alfabetizar o filho Pedro, sete, em casa. A família contou com o suporte do Colégio São José, que dispõe de estrutura e ferramentas online diferentes para ensinar a distância. A escola optou pela plataforma zoom e, ao longo do ano, aumentou gradativamente o tempo de aula.
— Ficamos assustados no começo, pensando em como ele seria alfabetizado porque ele ainda não sabia ler e escrever. Mas ele conseguiu. Eu até me surpreendi porque um mês e pouco depois que estava em casa, o Pedro começou a ler — comemora Eliana.
Mesmo assim, quando teve a chance de frequentar o ensino presencial, o menino começou a ir para a escola. De imediato, a mãe percebeu a diferença no desempenho do filho:
— Lógico que faltou a convivência com a professora. Ele me pediu para ir para o colégio e eu levava porque ele precisava e queria ir. A evolução na escola foi muito maior, com a aula participativa porque uma coisa é o pai cobrar e outra a profe. Mesmo na aula online eles pensam: "estou em casa". Prejudica de certa forma na formação pois todo sistema de educação estava pensado para ser realizado de forma presencial e não ter o convívio diário com outras crianças acaba prejudicando na formação.
Ela finaliza:
— A participação dos pais na formação da criança é fundamental. Este formato a distância exigiu uma dedicação maior, e esta proximidade entendemos ser uma vantagem. Apesar do esforço da escola e professores, entendemos que a desvantagem é que o sistema não estava pensado para este formato, bem como muitos pais não tem a possibilidade de estar presentes o tempo necessário.
Adolescentes sentes reflexos na aprendizagem
Deixar o colégio e prestar vestibular já é considerado fonte de angústia para a maioria dos adolescentes. Soma-se a essa ansiedade viver em meio a uma epidemia que exige algo inédito, como o isolamento social, com medidas restritivas sem data para terminarem. A estudante Júlia Rivieri Resmini, 17, cursa o 3º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Imigrante. A adolescente avalia que 2020 foi um ano difícil para todos. Júlia tem diabetes tipo 1, portanto, está no grupo do risco, e como tem 17 anos, não será vacinada. Ela optou por permanecer no ensino remoto para evitar o contágio. Em casa, ela estuda durante a manhã, e à tarde e a noite se prepara para o Enem:
— Foi um ano de muitas dificuldades para todos, onde vimos situações ruins acontecendo o tempo todo. Acredito que muitas pessoas compartilham da mesma percepção, que nos faz sentir pressionados e perdidos por conta de tantas incertezas, especialmente nos estudos. Eu penso que as aulas híbridas têm algumas vantagens. Temos acesso aos professores de forma online e podemos entregar as atividades por meio da internet. Porém, acredito que nada se compara às aulas presenciais. A organização é mais fácil, além do entendimento da matéria e das aulas serem mais dinâmicas.
Para ela, estudar em casa é desafiador porque o aluno não tem contato direto com o professor. E essa é uma das desvantagens do modelo:
— Eu sinto falta da escola no geral, de poder estar com os meus colegas, conseguir tirar dúvidas, dialogar com o professor. Sinto que estou perdendo parte de uma fase muito importante da minha vida. O terceiro ano do Ensino Médio tem toda aquela pressão de faculdade no ano seguinte, além dos preparativos para a formatura, que com a pandemia se tornou difícil, porque não sabemos se poderemos viver ou não esse momento. O que piora toda a situação são as incertezas quanto ao futuro, como a dúvida de quando iremos poder vivenciar os momentos bons na escola, novamente — desabafa Júlia.
Outra escola, sentimentos parecidos
Depois de cursar praticamente todo o 2º ano do Ensino Médio em casa, Natália Lemos Porto França, 17, se sente mais adaptada a estudar longe da sala de aula. Para ela, o mais difícil em 2020 foi entrar na rotina e estudar sem a supervisão dos professores. Assim que a escola retomou as aulas presenciais, Natália voltou para o Colégio São José. Ela encerrou o ano animada com o retorno e feliz em frequentar a escola para concluir os estudos em 2021. Porém, a alegria de voltar à sala de aula durou pouco.
— Estudar a manhã inteira dentro de casa não é a mesma coisa com a qual os alunos estavam acostumados. Confesso que 2020 acabou sendo bem prejudicado, não pela metodologia, mas por essa questão do foco e da motivação de estudar, não necessariamente por dificuldade das aulas. Essa volta para a escola deu um ânimo na gente, tanto na vida, pela questão de sair de casa, de mudar de ambiente, porque estamos cansados dessa situação, mas também em relação aos estudos, por que ajudou a trazer um pouco de volta aquele foco que eu perdi. Voltamos ao convívio, mesmo longe dos amigos, que é necessário — conta ela.
Em um ano, ela se tornou mais disciplinada, mas também tem que aprender a lidar com outros problemas: a internet, que às vezes está lenta ou o sinal que cai. Assim, ela perde o acesso às aulas. Há ainda distrações que ocorrem porque a família também está em casa e os animais de estimação precisam de atenção e cuidados.
— Aquela questão do foco e da motivação mudou para mim e agora eu já estou bem mais adaptada e acostumada com a rotina. O fato de estar no terceiro ano também me fez mudar a mentalidade porque agora eu quero estudar mais para conseguir entrar em uma boa faculdade. A minha rotina é bem mais puxada porque estou conciliando a escola com o cursinho. As aulas do pré-vestibular são diferentes porque não são ao vivo. Então, faço a minha própria organização. No início foi bem difícil, mas agora peguei mais o jeito e está dando certo.
Como ajudar na alfabetização das crianças
A suspensão das aulas tem deixado não só as famílias, mas especialistas da área angustiados e aflitos pela descontinuidade do processo do ano letivo. Há preocupação com a alfabetização porque é na escola que ocorre o processo sistematizado de intervenções e atividades didáticas pedagógicas intencionais e pensadas em alfabetizar. Por outro lado, também se sabe que os adolescentes são prejudicados, não apenas porque muitos vão desistir de estudar ou ter mais dificuldade de entrar na faculdade, mas também porque perdem momentos e rituais de passagem significativos, como a formatura no Ensino Médio.
— A alfabetização é a chave de ouro para a criança entrar no mundo convencional e social. Sem esse acesso aos códigos que compõem a escrita, vai ficar mais distante a possibilidade de ela se aproximar do letramento todo, de se aproximar do jornal, da lista de instruções, da receita, dos livros de história. Afastando a criança disso, ela concorre para ficar cada vez mais excluída também da probabilidade de não ter sucesso na escola e abandoná-la — avalia a secretária de Educação de Caxias, Sandra Negrini.
Ela explica que a alfabetização ocorre nos diferentes espaços da sociedade, sendo que a escola sistematiza esse processo e acelera o aprendizado. Quando são colocados à disposição da criança livros, vídeos, histórias, jogos e listas e quando ela tem uma família que lê automaticamente, ela constrói esse processo de alfabetização. A secretária ressalta que as famílias estão recebendo atividades, que são planejadas pelos professores, para que pais consigam acelerar esse processo de alfabetização e letramento da criança.
— A família pode ajudar e contribuir com leituras diárias, contação de histórias e usar a escrita de forma significativa para incentivar e ajudar a criança. Quando a família ou as pessoas próximas se propõem a colaborar com leituras, conversas, jogos, trazendo um livro diferente para a criança olhar, incentivando ela a ler, mesmo que de forma virtual, levar ela para um passeio e chamar a atenção ao que está escrito no caminho, todo mundo ganha. A aprendizagem da criança é uma responsabilidade de todos nós. A criança que é estimulada neste momento a olhar para o mundo escrito com certeza vai retornar para a escola com habilidades melhores, que vão contribuir para a construção da alfabetização de uma forma mais acadêmica e sistematizado para que a criança consiga percorrer o mundo.
Já em relação à aprendizagem, a secretária Sandra ressalta ainda que há especialistas que apontam que, para cada ano de ensino remoto, são necessários outros quatro para recuperar a aprendizagem:
— Esse distanciamento tem consequência no processo de aprendizagem dada a intervenção que a escola, por meio de seus professores, faz durante as aulas presenciais. Temos especialistas que dizem que para recuperarmos muitos dos conhecimentos e habilidades destas crianças e adolescentes, precisaríamos, para cada ano de distanciamento presencial, quatro anos para recuperar aquilo que a gente trabalharia na escola. Temos um grande trabalho pela frente, mas temos feito intervenções semanais, orientado e colaborado com as famílias para potencializar essas atividades.
Especialista avalia reflexo nos jovens
A especialista em Gestão Educacional e mestre em Formação de Professores da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Flávia Fernanda Costa, ressalta que os jovens estão em uma etapa muito importante, que é o fechamento de um ciclo na vida escolar e de consolidação das aprendizagens. Para ela, os adolescentes perdem vivências e até mesmo apoio no momento em que estão prestes a realizar o Enem ou o vestibular.
— É um ritual, o fechamento de um ciclo, que é o encerramento do Ensino Médio. Talvez a grande perda seja não ter a vivência com os colegas e professores. O suporte e o diálogo com os professores nesse momento é fundamental. É hora de esclarecer dúvidas, porque muitas vezes a gente tem a oportunidade de fazer as orientações ou de criar espaços, esclarecer dúvidas e ajudar nas angústias, que são próprias desta faixa etária. Pensando nisso, vejo até com muito mais fragilidade os jovens do que os pequenininhos. Tem a formatura, a despedida dos colegas, a oportunidade de estar com os colegas, e um momento de expectativa e ansiedade de ingressar na universidade e até de se inserir no mundo do trabalho.
A pedagoga acrescenta ainda que no retorno presencial serão encontradas situações adversas, desde estudantes que foram estimulados pela família e que tiveram acesso à plataformas digitais e recursos de aprendizagem até alunos que ficaram totalmente distantes dos estímulos:
— Temos de aguardar o retorno e diagnosticar a situação para reprogramar as atividades das crianças e dos adolescentes. A gente ainda não tem como medir e como avaliar os reflexos, mas está muito claro a questão de que os alunos que estão em escolas que tem uma boa condição em termos de tecnologia, de plataformas e de professores que estão preparados e qualificados para desenvolver atividades com os acessos remotos estarão melhores em relação aos alunos que não tem essas mesmas condições. Me preocupa ainda a questão do Enem porque nós tivemos muitos estudantes que não fizeram o exame porque não se sentiram preparados, o impacto do ensino remoto tem que ser avaliado depois com base em dados para diagnosticar os reflexos, mas certamente não ter esse preparo adequado atrasou muitos estudantes que desejavam entrar no ensino superior por meio de Sisu — lamenta Flávia.