Na fila de espera da Central de Leitos de Caxias do Sul, que regula as vagas da região, havia 57 pacientes com covid-19 aguardando vaga de UTI até o fim da manhã desta sexta-feira (12). Desses, 29 pacientes são de Caxias e 28 de outros municípios. Mas se engana quem pensa que a espera se restringe apenas ao tratamento do coronavírus. A superlotação impulsionada pela pandemia afeta também pessoas que precisam de outros tratamentos.
Até esta sexta-feira, eram sete pessoas aguardando UTI por diferentes tipos de doenças e outras 14 pessoas na fila por um leito de enfermaria, seja para tratar covid-19 ou outras enfermidades. Detalhe: esses pacientes levarão de dois a três dias ou até mais tempo para conseguir a terapia hospitalar que realmente precisam. Nesse período, correm o risco de morrer, como já aconteceu nos últimos dias, em que nove pacientes perderam a vida à espera de UTI, número que pode ser ainda maior, pois nem todas as instituições de saúde informam quando ocorre esse tipo de óbito.
Hoje, esses homens e mulheres recebem atenção improvisada em unidades de pronto-atendimento, em macas de prontos-socorros e leitos de enfermaria de Caxias do Sul e região. A diretora do Departamento de Avaliação, Controle, Regulação e Auditoria (Dacra) de Caxias do Sul, Marguit Meneguzzi, explica que os pacientes têm atendimento em estruturas minimamente montadas para suporte emergencial à vida.
— Os pacientes aguardam em ventilação mecânica em leitos de UPA ou PS os quais garantem assistência mínima, no entanto, conforme protocolos clínicos e de assistência, eles preenchem critérios de cuidado intensivo. São pacientes com alto potencial de agravamento e requerem assistência de maior complexidade que em leitos de enfermaria não estão integralmente disponíveis. Por isso, deveriam estar em leitos de UTI _ ressalta Marguit.
A diretora confirma que nos 10 anos que trabalha na Secretaria de Saúde de Caxias do Sul, na área de regulação e auditoria, a equipe viveu situações críticas nos períodos de inverno, mas jamais na proporção atua.
— Sou enfermeira formada há 23 anos e trabalho na área da saúde há 25 anos. Trabalhava em hospital clínico em 2009, no ano da pandemia de H1N1. Nem de perto este momento se compara com o que se viveu naquele ano. O cenário atual é infinitamente mais grave, nunca tivemos tantas pessoas hospitalizadas ao mesmo tempo e tantos pacientes graves chegando em portas de entrada — conta.
A espera por um leito tem levado de 48 horas a 72 horas, segundo Marguit:
— A cada paciente que é regulado, encaminhado para um leito, no mínimo mais três são solicitados. Por mais que estruturas tenham sido abertas e implementadas, há momentos que não temos perspectivas de como administrar todas as solicitações. As equipes estão se empenhando no sentido de atender o mais rápido possível todas as solicitações.
A diretora afirma que o trabalho na Central de Leitos tem sido desgastante.
— Diariamente, revisamos incansavelmente os casos na tentativa de dar ao maior número de pessoas os cuidados que merecem e mesmo assim fica a sensação de impotência, a frustração que querer e não poder fazer algo mais. A equipe da regulação fica emocionalmente cansada. Nossa exaustão não é tão física, mas mental. Após um dia de plantão, a gente sabe de cor o nome dos pacientes cadastrados.
A dor de quem espera
Enquanto pacientes na fila da UTI lutam pela vida, as famílias vivem o drama da incerteza. Por trás de cada atendimento, de cada internação, há uma história de dor, de sofrimento.
A família da advogada Rochele Locatelli, 49 anos, viveu nos últimos dias a dor da espera. Ela mora em Brasília e se deslocou para Caxias do Sul para acompanhar a situação dos pais. O casal de 73 anos começou a ter sintomas como febre alta e dor de garganta no dia 2 de março. Como não estavam se sentindo bem, chamaram um serviço de atendimento médico em casa. De acordo com a filha, os médicos administraram medicamentos uma vez que os dois estavam com placas na garganta. Do dia 4 para 5 de março, a equipe foi acionada novamente porque o casal voltou a se sentir mal. Eles estavam com febre e sentiam muitas dores no corpo e na garganta. Eles foram medicados novamente, mas como o quadro não apresentou melhoras, foram orientados a buscar atendimento na UPA.
— No dia 6 pela manhã, meu pai foi até a UPA onde foi atendido na tenda. Lá, ele relatou o diagnóstico feito pela equipe e eles confirmaram o diagnóstico. Deram álcool para ele cheirar e disseram que, como ele sentiu o cheiro, não era sintomas de covid-19. Como ele apresentava placas na garganta era outro motivo para não ser covid-19, segundo a equipe. Como a minha mãe apresentava os mesmos sintomas, o diagnóstico era o mesmo, e eles falaram que não precisava levar ela para o atendimento na tenda da UPA . Então meu pai retornou para casa.
No dia 7 de março, o quadro piorou e a mãe dela foi conduzida de ambulância para a UPA Central, segundo a advogada.
— Ela foi entubada e colocada em coma induzido. Desde que chegou na UPA, o estado da mãe já era grave. Quando o meu irmão chegou na UPA, meu pai estava bem debilitado, sentado no chão, lá fora, fraco e meu irmão levou ele para casa e retornou para a UPA para saber da minha mãe.
Lá, saiu um boletim que informou que o estado dela era grave.
— Meu irmão questionou sobre o meu pai, e orientaram que ele voltasse à tenda e tivesse atendimento e relatasse que a mãe estava entubada. Ele foi atendido, mas a médica informou que não era covid-19 e ele saiu de lá com receita de um calmante e sem ter feito o exame, mas ele estava confuso com as datas, então o meu irmão falou com a médica, que então encaminhou ele para fazer o exame. Na minha mãe foi confirmado o diagnóstico de covid-19, mas o exame do pai ainda não saiu o resultado.
A família esperou a liberação de um leito de UTI entre o domingo, dia 7, e a terça-feira, dia 9. Nesse meio tempo, o quadro da mãe de Rochele piorou, afetando os rins. Hoje, ela está internada na UTI do Hospital Geral.
— A sensação é de muita angústia e impotência porque a gente vê a situação e a dificuldade e não consegue fazer nada. Não temos as respostas que precisamos na hora para poder entender melhor as condições de saúde dela. Vamos buscar o prontuário dela agora para saber com que saturação ela chegou, porque precisou ser entubada. Só temos notícias uma vez por dia. Nesta sexta-feira (12), vi ela por chamada de vídeo. O quadro da mãe é bastante grave.
Emocionada, a advogada ressalta a necessidade da prevenção:
— Eu peço a população que se cuide, use máscara e álcool gel. Não é uma gripezinha, não acreditem nisso, isso é uma coisa que me revolta.
A família questiona o protocolo de atendimento:
— Os atendimentos médicos foram bons, e sabemos que o sistema está sobrecarregado, e que as equipes estão exaustas, os médicos estão cansados, os enfermeiros estão cansados e vemos nas UPAs muitas pessoas aguardando noticias de familiares. É muito triste essa situação. Não tem equipamentos, e há demora no diagnóstico e no tratamento da doença. No primeiro atendimento viram que eles tinham placas na garganta por que não pediram teste de covid-19? Por que não entraram com medicação para ajudar a combater os sintomas?
O pai dela foi levado a um pneumologista e está em tratamento em casa.
— Houve alteração nas medicações. Graças a Deus, ele está em casa e estamos controlando o estado dele, e a saturação, não descartando uma possível internação.
Desabafo de médica
Uma médica de Caxias do Sul, que prefere não se identificar, afirmou à reportagem que o clima, principalmente, em frente às UPAs da cidade, é carregado de tristeza e um sentimento de impotência que abala a equipe.
— As famílias choram e nós também não conseguimos conter as lágrimas. Trabalhamos sob pressão. Teve momentos em que a cidade não tinha leitos, mas não dessa maneira. Estamos desesperados porque nossa missão é salvar vidas e estamos perdendo a batalha. Ouço questionamentos dos números e falarem o tempo todo que se morre mais de câncer, por exemplo. É preciso entender é que o câncer não é contagioso e os pacientes não precisam da rede hospitalar todos aos mesmo tempo. Não tem leitos para ninguém e estou cansada — desabafa a médica.