Quando a administradora Valdirene Rech levou o pai ao pronto-atendimento do Hospital Pompéia, em Caxias do Sul, ela deparou com uma situação frequentemente relatada por familiares de idosos que passam por internação. Era setembro do ano passado e o homem de 77 anos apresentava palpitações. Enquanto fazia os exames e tomava soro, a filha aguardava na recepção. Ao sinalizar que deixaria o hospital por alguns minutos, para passar em casa, Valdirene logo escutou da enfermeira:
— "Negativo. Ele é uma pessoa de idade, tem que ter acompanhante. Tu não pode sair daqui", disse a enfermeira. Puxou uma cadeira e eu fiquei ao lado dele — conta a administradora.
Hoje, o pai de Valdirene está bem de saúde mas, na época, precisou ser internado. A família se revezava para não deixá-lo sozinho no quarto. Mais do que fazer uso da lei, que garante o direito do idoso ao acompanhamento, eles achavam importante estar ao lado dele durante o processo de recuperação.
A mesma crença é compartilhada por Neusa Neves Gobbato, agente tributária municipal aposentada, que acompanhou a internação da mãe no Hospital da Unimed. Zaira, que completa 99 anos em janeiro, foi hospitalizada três vezes desde o ano passado, por infecção urinária, complicações pulmonares e trombose, respectivamente.
Ela teve a perna amputada nesta última vez e segue internada, recuperando-se de uma bactéria. E não sai debaixo dos olhares das filhas, que contrataram cuidadores para acompanhar dona Zaira. Neusa visita a mãe duas vezes por semana, ainda que a frequência seja menor do que gostaria, por conta dos cuidados com a covid-19 seguidos pelo hospital.
— Na minha opinião, não deveria ser uma obrigação. É questão de amor. Quando as pessoas estão no hospital, elas ficam mais fragilizadas. Quando chego lá, ela abre um sorriso. Isso é o que vale pra nós — diz Neusa.
Quando a agente tributária aposentada explicou à mãe que ela teria a perna amputada, dona Zaira aceitou pacificamente, como relembra Neusa:
— ‘Mãezinha, a senhora entendeu o que eu falei?’ ‘Sim, eu entendi’. Como tu vai deixar uma criaturinha dessas no hospital, sem o amor e o carinho da família? A vida é uma só — reflete.
Embora Neusa afirme que a instituição não exigiu permanência dos familiares em tempo integral, ela acredita que o acompanhamento seja fundamental. Contudo, reconhece que nem todas as famílias dispõem de condições para isso.
— É complicado dizer "tem que existir lei". Não é bem assim. Nem todo mundo pode ter cuidador porque custa caro. Às vezes, as famílias não têm muitos filhos, têm os desempregados, os que precisam trabalhar, os que têm filhos pequenos. Não dá pra generalizar.
A lei a que Neusa se refere é o Estatuto do Idoso que, em seu artigo 16, assegura ao idoso internado ou em observação “o direito a acompanhante, devendo o órgão de saúde proporcionar as condições adequadas para a sua permanência em tempo integral, segundo o critério médico”. O trecho ainda estabelece, em parágrafo único, que “caberá ao profissional de saúde responsável pelo tratamento conceder autorização para o acompanhamento do idoso ou, no caso de impossibilidade, justificá-la por escrito”.
Mas isso significa que os hospitais que exigem o acompanhamento 24 horas por dia estão certos? A lei, afinal, trata de um direito ou de uma obrigação? Para a Coordenadoria do Idoso de Caxias do Sul, que trabalha para a defesa dos direitos da população acima com 60 anos ou mais no município, as instituições estão certas em exigir, principalmente no caso de idosos dependentes de cuidados.
Aqui cabe uma ressalva: todas as pessoas consultadas nesta reportagem, de atuação tanto pública quanto privada, entendem que o acompanhamento serve para dar apoio ao paciente e para realizar ações simples, como ajudá-lo a ir ao banheiro e acionar enfermeiros em caso de necessidade. Tarefas como dar banho, trocar fraldas e curativos e administrar medicamentos cabem à equipe médica. Além disso, parte dessas condições de acompanhamento, como o número de pessoas e os horários, estão sofrendo mudanças em razão dos protocolos sanitários de combate ao coronavírus.
Normalmente, no entanto, o Conselho Municipal do Idoso, que trabalha junto à coordenadoria em Caxias, informa que a permanência integral dos acompanhantes não pode ser uma imposição:
— O Estatuto do Idoso garante o direito a um acompanhante em consultas, internações e no pronto-atendimento para pessoas a partir dos 60 anos. Mas hoje a gente sabe que tem pessoas superativas nessa idade, que preservam sua independência. Se a família não pode pagar um cuidador, nem ficar em tempo integral, é importante que converse com a equipe médica. Sempre prezamos um olhar do familiar, porque não se sentir sozinho é fundamental na recuperação do paciente — esclarece Vanisse Zancan, titular do Conselho do Idoso.
Não se pode exigir, mas se deve fazer valer o direito
Quando não há qualquer contato da família com o paciente, surge outro tipo de preocupação: o abandono de idosos nos hospitais que, segundo o artigo 98 do mesmo estatuto, é crime. Outra variável é o estado de saúde do paciente, que deve ser avaliado com sensibilidade, tanto pelos médicos quanto pelos familiares, como explica Vanisse.
— Se a imposição está sendo feita aos familiares, deve-se conversar com o administrador do hospital e expor as razões de impossibilidade de permanência de um acompanhante em tempo integral. Depois, se necessário, é possível denunciar a prática ilegal ou abusiva ao Ministério Público — complementa Marlova Mendes, professora de Direito.
Marlova também lembra que, segundo o estatuto, cabe ao órgão de saúde proporcionar condições para a estadia do acompanhante, incluindo um espaço adequado e três refeições por dia e pernoite.
Conforme Adriana Chesani, promotora de Justiça no Ministério Público, a não permanência de algum acompanhante em tempo integral durante a internação não configura crime e não pode ser exigida pelo hospital. Mas ela faz um alerta:
— Mesmo que a lei não estabeleça obrigatoriedade, a família não pode simplesmente deixar a pessoa idosa no serviço de saúde e não responder mais aos chamados dos profissionais de saúde para prestar esclarecimentos, receber orientações e, principalmente, adotar as providências necessárias para sua alta.
Contatados pela reportagem, os hospitais Geral, Virvi Ramos, Pompéia, do Círculo e da Unimed reconhecem que a lei estabelece a companhia como um direito e que, portanto, não têm autorização para exigir a permanência integral. Ressaltam, entretanto, que a presença da família, dentro das possibilidades de cada uma, é essencial para o processo de cura do idoso. A preocupação também se dá uma vez que as equipes de enfermagem não conseguem estar nos quartos de todos os pacientes a todo momento.
— No pronto-atendimento, o paciente ainda está em observação. Muitas vezes, o plantonista que avalia o caso chama o familiar para auxiliar com informações, saber qual o tipo de medicação que o paciente usa... Se o familiar se ausenta, demora ainda mais o processo. No primeiro atendimento, é imprescindível que fique um acompanhante — explica Simone Arcaro, assistente social do Hospital Pompéia.
— O acompanhamento também serve para conscientizar as famílias do estado de saúde desse paciente e das intervenções que serão necessárias. Não é eximir os profissionais de saúde da responsabilidade deles. O objetivo é zelar pela condição frágil de saúde e pelo bem-estar do paciente. O idoso precisa ter alguém do lado dele — acrescenta Lidiane Basso Bortolini, gerente executivo-assistencial do Hospital do Círculo.
O Hospital Saúde enviou nota sobre o assunto:
Solicitamos a presença de um acompanhante no leito para idosos tanto por uma questão de segurança do paciente, quanto por entendermos ser benéfico a qualquer paciente estar sempre acompanhando durante um processo de internação. Especialmente se há solicitação médica e da enfermagem para que o paciente tenha este suporte durante a assistência. Esse suporte é benéfico não apenas quanto a questão emocional mas mental e no que diz respeito ao entendimento na hora de receber orientações sobre o quadro clínico e cuidados. Tanto paciente quanto acompanhantes, geralmente familiares, ficam mais seguros ao receberem as orientações em conjunto. Não temos problemas quanto a falta de interesse da pessoas em acompanhar os pacientes, especialmente quanto aos idosos, raramente alguém não está acompanhando durante todo o processo de internação.
A companhia de um familiar ou cuidador, ainda que somente em um turno, ajuda a acionar a equipe médica e a evitar riscos como quedas, especialmente quando o paciente inspira mais cuidados. Se a permanência do acompanhante está impossibilitada, é preciso dialogar com a instituição que pode, por exemplo, mover o paciente para mais perto do posto de enfermagem, redobrando os cuidados.
Quando o paciente não possui mais qualquer contato com a família, realidade vivida por muitos que residem em lares de idosos, a responsabilidade passa por outras instâncias. É o caso do Projeto Cuidar, desenvolvido pelo Conselho Municipal do Idoso. Em vigência desde o ano passado, podendo estender-se por até 10 anos, o projeto é lançado em edital da prefeitura. O Lar da Velhice São Francisco de Assis foi a única instituição contemplada, no período de 1º de julho de 2020 a 30 de junho de 2021, e recebe verbas, via Fundo Municipal do Idoso, para a contratação de cuidadores. São quatro profissionais que acompanham 25 idosos por mês. Segundo dados do Conselho, o valor do pagamento é de R$ 79.766,00 por ano.
No artigo 3 do Estatuto do Idoso, o direito à vida e à saúde, entre outros, é entendido como obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público — nessa ordem. Quando a família não se faz presente, resta a sensibilidade dos que se encontram ao redor do paciente em vulnerabilidade. Ações do poder público, como o Projeto Cuidar, e da comunidade mostram caminhos para fazer valer o direito dessa parcela da população, que, com o aumento da expectativa de vida e a diminuição do número médio de filhos, pode se deparar com esse tipo de situação cada vez mais.