Na cidade que conta com uma frota de mais de 300 mil veículos, foram as bicicletas que ganharam maior visibilidade nas ruas praticamente vazias de Caxias ao longo dos nove dias de greve dos caminhoneiro no final de maio.
Para quem já estava acostumado a se deslocar utilizando o meio alternativo, o cenário favoreceu o trânsito livre sem os tradicionais congestionamentos. Porém, aos que retomaram ou aderiram à prática, a falta de condições cicloviárias, reclamada há anos por ciclistas, tornou-se mais evidente.
Em decorrência da falta de combustíveis, a estudante Luana Giazzon deixou de usar o carro por alguns dias. No entanto, já na primeira tentativa em alternar o meio de transporte, ela disse que se frustrou com a falta de estrutura na cidade. Ao se deslocar com o namorado até o Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), em São Pelegrino, ela relata que ambos foram impedidos de ingressar no acesso à universidade para estacionar as bicicletas.
— Já na portaria o segurança nos bloqueou dizendo que não podíamos levar nossas bicicletas daquele ponto em diante. Achei um absurdo. Havia poucas pessoas por lá, não pretendíamos andar de bicicleta lá dentro e não há nenhum bicicletário na frente da universidade — aponta.
Embora pratique ciclismo esportivo há cerca de dois anos, o estudante Jonnathan Tibes utilizou a bicicleta para se deslocar da casa ao trabalho durante alguns dias da paralisação. Apesar de o trajeto entre o Cidade Nova e o Centro estar mais mais tranquilo do que o tradicional, ele afirma que a falta de infraestrutura é um dos únicos empecilhos para que não utilize com maior frequência a bicicleta para deslocamento.
— Não tem estrutura, naqueles dias (de greve) estava mais fácil, mas nos demais é complicado. Se pelo menos tivesse ciclovia nas principais ruas isso já seria uma forma de incentivo — comenta o estudante.
A constatação não é novidade e representa descaso acumulado para quem por anos cobrou melhorias ao sistema cicloviário do município. Integrante do hoje diluído movimento Massa Crítica, Luciano Pacheco mudou-se para Bento Gonçalves há cerca de dois anos. Lá, ele afirma ter vivenciado uma situação completamente diferente. Conforme Pacheco, que promove passeios ciclísticos com turistas pela região, a atenção dada às demandas de usuários de bicicleta em Bento é bastante superior à forma que o poder público de Caxias trata a questão. A própria convivência com motoristas de carros também se mostra mais harmônica, segundo ele:
— Muito mais tranquilo se deslocar de bicicleta por aqui (em Bento). A questão urbana não tem tanta necessidade em Bento como tinha em Caxias. Se eu chegar num cruzamento, o carro para.
Apesar de o movimento do qual Pacheco fazia parte ter reivindicado por vários anos a implantação de ciclovias, ciclofaixas e bicicletários, a prefeitura de Caxias nunca avançou no atendimento às demandas.
— A nova gestão, pelo que observo e me informam, é totalmente nula com relação ao tema. As outras (administrações) prometeram bastante, principalmente em períodos eleitorais, mas nada saiu do papel — compara.
Nos próximos dias, um grupo de líderes de movimentos de ciclistas deve entregar ao secretário Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade, Cristiano de Abreu Soares, abaixo-assinado contendo mais de cinco mil assinaturas pedindo a instalação de ciclofaixa junto aos corredores de ônibus de Caxias.
— Quando vamos no exterior, percebemos que as coisas funcionam e como podem funcionar. Temos que dar os primeiros passos importantes para começar a repensar nosso transporte. Em breve nossa infraestrutura não vai comportar nem os carros. Há muitos veículos na rua e é o nosso único meio de transporte. Precisamos pensar no futuro de Caxias — comenta Carlos Zignani um dos organizadores do abaixo-assinado.
NOTA
Em nota, o Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG) classificou como episódio isolado o impedimento da entrada dos dois estudantes no campus. A instituição lamentou o ocorrido e alegou que na ocasião o vigilante não soube passar a informação correta. Segundo a nota, a FSG oferece dois bicicletários no campus da Rua Os Dezoito do Forte.
Sem mobilização de ciclistas, sem pressão ao governo
De 2011 a 2016, ciclistas caxienses, por meio do movimento Massa Crítica, cobraram constantemente providências do governo municipal para melhorias cicloviárias na cidade. Nesse período, o grupo realizou passeios ciclísticos mensais chegando a reunir mais de 200 participantes, apresentou projeto para criação do sistema cicloviário municipal, no qual estava inclusa relação de 17 pontos que se interligavam e permitiriam o acesso a qualquer região da cidade utilizando uma bicicleta.
Das demandas, nada foi realizado e mesmo as poucas medidas adotadas pelos governos de José Ivo Sartori (PMDB) e Alceu Barbosa Velho (PDT) foram questionadas pelos ciclistas.
— Foi criada a ciclovia em Forqueta, em um local totalmente avulso e a abertura da também equivocada ciclofaixa da Perimetral Norte, que logo depois das eleições foi extinta. O governo nunca se esforçou de fato e só tivemos retrocessos — critica Luciano Pacheco, ciclista e ex-integrante do movimento Massa Crítica.
Segundo ele, as alegações de que Caxias não possui condições de adequar o transporte ciclístico são infundadas.
— Tem regiões que nem precisaria muito esforço, questão de desenhar a bicicleta na pista — comenta.
Pacheco cita a Avenida Rio Branco, na região do bairro São Pelegrino e a Rua Borges de Medeiros, no Centro, como dois exemplos claros da possibilidade de instalação de ciclovias, onde haveria espaço de cerca de um metro entre a pista e o estacionamento de veículos.
— Eu não sei como os ciclistas de Caxias não se articulam e cobram isso. É bem visível ali que passam quase duas bicicletas. Bastaria a prefeitura colocar a sinalização — afirma.
Na opinião de Pacheco, a desmobilização do Massa Crítica foi um dos agravantes para o descaso.
— No início, éramos um coletivo com uma causa. Houve desentendimentos e políticos que nos apoiavam sumiram. O grupo praticamente terminou. Mesmo que antes não obtivéssemos sucesso nas nossas demandas, ao menos cobrávamos do governo — complementa.
Outro integrante do Massa Crítica, Gregório Granada, também acredita que a falta de mobilização e consequente diminuição da pressão ao governo dificulta ainda mais a conquista das reivindicações:
— Sinto que foi muito em parte pelo desânimo. Conseguimos aproximação com a prefeitura que já era difícil, mas aí o prefeito finge te ouvir, promete, marca reunião e nada sai do lugar. Ainda tem gente que participa, mas a maioria do pessoal acabou desanimando e o movimento dissipou.
Riscos que não compensam
Por cerca de dois anos, o biólogo Gregório Granada utilizou a bicicleta como único meio de transporte. Embora tenha optado pelo equipamento devido aos benefícios à saúde, economia e agilidade em horários de pico, a partir de 2016 ele gradativamente foi diminuindo a frequência e hoje faz uso esporadicamente. Um dos motivos foi a mudança na rotina de trabalho e o término da faculdade. Entretanto, outro fator importante foi o estresse mental e os riscos constantes em razão da falta de infraestrutura.
— Quando eu trabalhava perto do (Estádio Alfredo) Jaconi percorria 4,5 quilômetros em 15 minutos da minha casa (no bairro Cinquentenário) até lá . De carro leva isso ou muito mais e de ônibus nem se fala. Mas começou a ficar muito perigoso porque é muito carro e pouco espaço. O estresse e tornou diário e insuportável, passa gente buzinando e grita que lugar de bicicleta é na calçada — relata Granada.
Conforme ele, para a situação melhorar não bastaria apenas a instalação de ciclovias na cidade, mas também mudança completa no comportamento e na relação entre motoristas e ciclistas.
— A culpa nem é dos motoristas. Não se pode esperar que os condutores de veículos respeitem regras que nem existem. Mas, digamos que se criem ciclofaixas junto aos corredores de ônibus... Neste caso, a prefeitura teria que pensar em se articular para orientar motoristas de ônibus. E há toda uma mudança de mentalidade que a população precisa passar para entender que não existe disputa. A mobilidade é urbana, o conjunto é um ecossistema — ressalta.
Para Jonnathan Tibes, além da falta de sinalização e condições viárias para tráfego em alguns pontos, a inexistência de espaços para deixar a bicicleta também se torna um elemento desmotivador:
— É complicado chegar aos lugares e não ter onde deixar a bicicleta ou precisar estacionar em local inseguro — salienta o estudante.
Arriscado, mas compensa
Devido à carência de infraestrutura, pouco se pensa no aproveitamento da bicicleta como meio de locomoção, tampouco de carga. Porém, apesar de raros, há profissionais que fazem entregas utilizando bicicletas.
Inspirado por uma reportagem que mostrava a popularidade dos chamados bikeboys nos Estados Unidos, Marcelo Zanette Lemos decidiu tentar replicar o sistema em Caxias. Deu certo. Há cerca de três anos, ele faz entregas em vários pontos da cidade, trafegando principalmente entre a Perimetral Norte e o Centro. Cobrando de R$ 6 a R$ 10 por viagem, ele não informa quanto acumula a cada mês, porém, ressalta que apesar do baixo custo do serviço, o rendimento acaba sendo maior por não precisar gastar com combustível.
— Trabalho bastante para advogados e empresas que entregam peças de bicicletas. Normalmente, são serviços rápidos quando há maior pressa do cliente — relata.
Questionado sobre o diferencial do serviço que presta em comparação aos tradicionais motoboys, ele ressalta:
— Me põe do lado de qualquer motoboy no centro de Caxias para ver se eu não chego mais rápido no ponto de entrega.
Marcelo relata que há cerca de cinco anos foi que começou a perceber os benefícios da bicicleta. Além de economizar com o transporte, ele comenta que a praticidade que o meio lhe proporciona é o que torna hoje a principal forma de locomoção dele.
— Além da passagem de ônibus estar cara, o fato de ter de esperar na parada também me incomodava. A bicicleta facilita tudo. Muitos reclamam de morros em Caxias. Mas é questão de se acostumar. Também não acho a infraestrutura tão ruim, embora é claro que se tivesse ciclovias seria bem melhor.
Para ele, o principal problema ainda é com a desatenção de usuários de veículos.
— Têm aqueles que nem olham para o retrovisor quando estão estacionados e vão abrir a porta e muitas vezes estamos passando ao lado. Isso é o mais perigoso no dia a dia, porque o espaço na lateral é tão curto que às vezes não temos por onde desviar — explica Lemos.
Para o metalúrgico Isaac Jasper, os principais benefícios são financeiros. Ele relata que frequentemente utiliza a bicicleta para se deslocar da casa, no Centro, até a empresa onde trabalha, no bairro Cruzeiro. No verão, chega a economizar cerca de R$ 300. Apesar de não considerar tão problemática a infraestrutura da cidade, ele acredita que melhores condições certamente o estimulariam a utilizar ainda mais o meio para deslocamento.
— Ciclovia ajudaria bastante porque tem regiões que não têm muito espaço e alguns motoristas não sabem conviver com ciclistas e nos mandam andar na calçada. Acho que a principal questão seria conscientizar que ciclista também faz parte do trânsito — comenta.
O QUE NÃO FOI FEITO:
Ciclovias:
:: Ex-prefeito Alceu Barbosa Velho prometeu durante campanha a implantação de 20 quilômetros de ciclovia. Foram instalados apenas 700 metros.
:: Nos últimos meses da gestão, Alceu também anunciou a implantação de ciclovias na área central (entre as ruas Bento Gonçalves, Os Dezoito do Forte, Vereador Mário Pezzi e Marechal Floriano), o que não ocorreu.
:: O Movimento Massa Crítica remeteu à Câmara de Vereadores e ao Executivo a proposta de ligação entre 17 pontos da cidade por ciclovia. Com isso, todas as regiões da cidade seriam interligadas por malha cicloviária. O projeto nunca avançou.
ESTRUTURA DISPONÍVEL
Bicicletários: poucos locais contam com bicicletários na cidade. Confira onde estão:
:: Centro Administrativo da prefeitura (bairro Exposição)
:: Secretaria de Trânsito (Rua Moreira César, no bairro Pio X)
:: Pavilhões da Festa da Uva
:: Secretaria da Cultura (Largo da Estação Férrea, em São Pelegrino)
:: Estação Principal de Integração (EPI) Imigrante
:: Estação Principal de Integração (EPI) Floresta
:: FSG (Rua Os Dezoito do Forte, em São Pelegrino)
:: Hipermercado Big (Rua Marquês do Herval, no Centro)
:: Supermercado Zaffari (Rua Marquês do Herval, no Centro
:: Ponto Ecológico (Marquês do Herval com Hércules Galló, no Centro)
Ciclofaixa (para passeio):
:: Pavilhões da Festa da Uva
Ciclovias (para transporte):
:: Rua Atílio Andreazza, no bairro Nossa Senhora do Rosário, tem três quilômetros de extensão. O local está praticamente abandonado por ser considerado inadequado e estruturalmente precário.
:: Na Avenida Arthur Perottoni, na entrada de Forqueta.
OPINIÃO
Ciclista: insista
É fato que não há estrutura para andar de bicicleta em Caxias. Faltam ciclovias, bicicletários, não há qualquer apoio do poder público e é preciso disputar espaços com veículos maiores sem qualquer proteção. Mas, por outro lado, pense: você, motorista, gosta de dirigir pelo centro da cidade no fim da tarde? E pegar um ônibus lotado de manhã cedo é fácil?
A verdade é que transitar por Caxias, de maneira geral, é ruim. A falta de planejamento urbano e o crescimento desordenado faz com que seja impossível, hoje, se deslocar com facilidade nos horários de pico por qualquer cidade média ou grande do Brasil.
Quando comecei a usar a bicicleta, dois anos atrás, queria fugir desse trânsito. Mesmo tendo na mente as clássicas preocupações sobre a falta de estrutura e o desrespeito por parte dos motoristas, segui em frente. Na época, meu trajeto diário começava no Parque Cinquentenário e ia até a UCS, pela Sinimbu e depois pela BR-116, dois dos pontos mais movimentados da cidade.
No início, enfrentei alguns xingamentos, algumas buzinas e cometi algumas barbeiragens, confesso. Mas tudo isso vai escasseando a partir do momento em que você encontra seu lugar na rua, passa a antecipar por quais espaços é possível passar, os momentos em que dá para ultrapassar... Com a prática, o receio some na mesma proporção em que o condicionamento físico melhora.
Desde então, não tenho reclamações: o caminho fica, de longe, menos monótono do que com os outros modais. E, como passa pelo Centro, até mais rápido. Atualmente, vou do bairro Lourdes até o Santa Lúcia em 15 minutos, em horário de pico. Alguém pode dizer o mesmo?
Quanto ao perigo de andar pelo trânsito, preocupação de 10 entre 10 pessoas que pensam em adotar a bicicleta como meio de transporte, garanto que é superestimado: nestes dois anos e três meses de voltas diárias, sofri dois acidentes, e só em um deles saí com alguns arranhões. Nos dois casos, colidi com carros que mudaram de direção sem sinalizar e sem olhar no retrovisor. Mas, ao contrário do esperado, foram exceções. De modo geral, as buzinas se tornaram cada vez mais raras (andar com fones de ouvido, apesar de não recomendável, ajuda) e não lembro de nenhuma situação em que fui desrespeitado.
Mas é claro, cabe ao ciclista o mínimo de civilidade: não andar na contramão e nem na calçada, para começar. Nada muito complicado. Por isso, ciclista, insista. Garanto que, passado o estranhamento inicial, não será difícil enfrentar a cidade. O que, claro, não significa que o poder público não tenha o dever de investir no modal. É um passo lógico para uma mobilidade urbana mais sustentável e deixaria as pessoas muito mais propensas a aderir à bicicleta. De quebra, aliviaria o trânsito. Enquanto tais mudanças não vêm, porém, os motoristas podem colaborar: é só olhar para trás antes de abrir as portas, antes de entrar em cruzamentos e respeitar a distância mínima de um metro e meio ao ultrapassar o ciclista. Com garantia de segurança, vencer os morros de Caxias vira detalhe. (repórter Lucas Demeda)