Na escola, ele era o último a ser chamado para jogar futebol ou participar de gincanas que exigissem velocidade, agilidade. Quando o termo bullying ainda nem era conhecido por aqui, o estudante Luciano Neto Santos sofria na pele a discriminação por ser gordinho. Aos cinco, seis anos, pesava 37 quilos (a média para crianças nessa faixa etária gira em torno dos 18kg).
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Poucos sabem, no entanto, que esse rechaço ajudou a forjar um cirurgião especializado em aparelho digestivo e cirurgia bariátrica, aquela feita por pacientes que sofrem de obesidade mórbida. Santos, 43 anos, foi o primeiro médico a realizar o procedimento no Hospital Pompéia e um dos pioneiros a fazer a cirurgia em Caxias do Sul.
- Eu sempre era o último a ser escolhido. Essa discriminação que sofri talvez tenha sido o grande impulso para que em 1998 eu iniciasse a abordagem na área de cirurgia bariátrica. Eu me vejo em cada rosto que atendo e me realizo com os meus pacientes. Muitos vem me agradecer, mas eles não sabem que a gratidão é toda minha. São pessoas que estão doentes, que têm uma enciclopédia de doenças associadas à obesidade, e que mesmo assim te entregam a vida, sem ter certeza de que vai tê-la de volta, confiando na tua capacidade de transformar o futuro dela. De quem tu acha que é a gratidão? É minha. Hoje conseguimos trazer a média de complicações para menos de 1%. No passado, já foi até de 30%. Está muito seguro hoje trabalhar com essas cirurgias - diz o médico, que tem peso normal para sua altura e ao contrário do que possa parecer, não recorreu à cirurgia para emagrecer.
Santos conta que foi perdendo peso ao longo dos anos, principalmente a partir da adolescência, culminando com o período do serviço militar, logo após concluir a faculdade de Medicina na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em dezembro de 1993.
Hoje, o cirurgião natural de Osório contabiliza mais de 1,6 mil pacientes operados apenas na região. Além da Serra, faz cirurgias em várias regiões do Rio Grande do Sul: Novo Hamburgo, Lajeado, Erechim, Santo Ângelo, Ijuí, Santa Rosa, Santana do Livramento, Passo Fundo...
A longa estrada até a especialização, no entanto, se iniciou pelo Hospital Pompéia. Luciano Santos foi o primeiro a ser aprovado na prova de residência em cirurgia da instituição, mas precisou adiar a formação por um ano e dois meses em função do serviço militar obrigatório, prestado na distante Bagé, na Fronteira Oeste.
O médico assumiu a vaga na residência em 2 de janeiro de 1995, dia de seu aniversário.
- O Pompéia não foi a minha primeira opção, eu pretendia fazer residência na Santa Casa, em Porto Alegre, onde eu realizei o estágio do 6º ano. Fiquei como suplente e até fui chamado depois lá, mas preferi ficar no Pompéia porque o hospital garantiu a minha vaga, mesmo eu tendo de prestar o serviço militar. E não me arrependi de ter ficado aqui. Me considero e sempre me considerei um rato de hospital. E eu sou um rato do Pompéia porque a minha vida, pelo menos nos dois anos de formação, foi o hospital. Fui realmente um médico residente porque trabalhei e residi lá dentro - recorda.
A opção pela cirurgia, revela Santos, foi surgir apenas no sexto ano de faculdade, quando acadêmico passou por todas as especialidades como doutorando.
- Eu percebi que, por meio da cirurgia, nós poderíamos, com as mãos, salvar alguém. O ato de invadir um paciente, seja um politraumatizado ou um ferido por arma de fogo, por exemplo, é o que vai lhe salvar a vida. Não há sabor maior do que tu teres uma vida de uma pessoa na mão e poder devolver a ela a saúde. Ninguém nós procura são: todos te procuram com alguma doença, e muitas levam ao limite da vida. Foi o que me trouxe a vontade de fazer cirurgia - explica Santos, que integra a preceptoria em cirurgia bariátrica e é coordenador do programa de residência médica em cirurgia geral do Pompéia.
A primeira experiência no bloco cirúrgico ao lado do mestre marcou o médico para sempre:
- Foi a minha grande realização como futuro cirurgião. Naquele dia, eu senti que tinha uma importância social, me senti importante. Recordo que o paciente era um politraumatizado grave, uma mulher, vítima de um acidente de trânsito. Era fevereiro de 1995 e eu estava há apenas um mês na residência. Levamos para o bloco e me escovei para entrar na sala. Existe uma convenção de que o cirurgião fica no lado direito do paciente e no lado esquerdo, o auxiliar. Naquele dia, me posicionei no lado esquerdo e, imediatamente, o meu preceptor disse: "passa pra cá". Quando ele falou isso, a minha perna tremeu. Quando ele me entregou o bisturi, eu perguntei: "eu vou operar?" e ele disse "se tu não quiseres, eu opero. Mas o cirurgião és tu". Foi o grande marco para mim como residente, quando peguei o bisturi pela primeira vez e tive a possibilidade e a responsabilidade de fazer o bem - afirma.
Além de manipular o bisturi com excelência, Santos também entende de assuntos bastante inusitados para um médico: sabe ordenhar vacas, tratar porcos e galinhas, cuidar da horta e da lavoura. A ligação com o campo vem da época em que Santos formou-se como técnico em Agropecuária em Osório, dos 12 aos 15 anos.
- Com 16, fiz estágio na Emater e trabalhei em uma cooperativa em Marcelino Ramos. Também fazia um bico em uma rádio, apresentando o programa Hora do Agricultor. Foi período muito bom, aprendi muito, mas nunca fugi do plano de ser médico.
Dessa época de adolescência, Santos guarda hábitos que mantém até hoje: ele mora em uma chácara na Linha 30, cria cavalo, cachorro e até pouco tempo atrás, uma ovelha preta, a Chiquinha, que acabou doando a um vizinho para evitar que virasse churrasco. Tem um córrego nos fundos de casa, cultiva horta e pomar, de onde tira todas as hortaliças, frutas e ervas que alimentam o filho Pedro, 15, e a mulher, Verônica.
-Eu convivo muito bem com a natureza. Não consigo viver em um lugar onde não possa tocar um violão, falar mais alto... Consigo desligar, tirar esse peso árduo do dia quando começo a chegar perto da minha casa.
Para Santos, o verde do mato é pura energia para encarar as muitas horas dentro do bloco cirúrgico do Pompéia e de tantos outros hospitais, onde suas mãos invadem, para o bem, tantos e tantos pacientes.
Formação
"Não há sabor maior do que tu teres uma vida de uma pessoa na mão e poder devolver a ela a saúde", diz o médico Luciano Neto Santos
Ele foi o primeiro especialista a realizar cirurgia bariátrica no Hospital Pompéia e um dos pioneiros a fazer a cirurgia em Caxias do Sul
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