A poetisa goiana Cora Coralina certa vez escreveu: "O que vale na vida não é o ponto de partida e, sim, a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher". É assim, semeando gentileza, paciência e amor ao próximo que a enfermeira Marli dos Santos Baierle, 63 anos, segue a caminhada de mais de 30 anos de trabalho no Hospital Pompéia.
>> Confira todo o conteúdo especial produzido para os 100 anos do Hospital Pompéia
Com voz suave e olhar manso, Marli dedicou o início e grande parte de sua carreira na instituição - pelo menos 12 anos - ao setor de obstetrícia, onde viu milhares de caxienses virem ao mundo.
- Na época, fazia-se cerca de 14 partos por dia. Foi um período muito gratificante para mim. Havia menos informação, e a gente, além de enfermeira, também fazia as vezes de conselheiro, orientador e psicólogo. Algumas vezes, até aula a gente tinha de dar, para explicar alguns tabus às mulheres. Tinha algumas que não queriam tomar banho depois do parto pois achavam que o sangue iria subir para a cabeça. Então, eu pegava um quadrinho, desenhava o sistema reprodutor, ensinava como a criança nascia e elas entendiam - recorda Marli.
Entre as tantas histórias que presenciou, Marli recorda de algumas em especial:
- Teve uma vez que uma mãezinha chegou ao hospital e perguntou se podia ir ao banheiro. Disse-lhe que antes eu precisava examiná-la, para ver como estava o bebê. Ela disse que seria rápido, que não precisava, e eu insisti no exame. Como ela teimou, acompanhei-a ao banheiro. Pois não é que acabei segurando a cabecinha do bebê lá mesmo? Lembro também de uma mulher que teve o oitavo filho ainda na sala de exames. O bebê nasceu em pé, com 3,3 quilos. Foi um parto difícil, mas deu tudo certo, graças a Deus.
O amor à profissão era tão intenso que Marli chegou a trabalhar quando sentia contrações do próprio parto.
- Não conseguia ficar em casa, esperando. Parece que lá no hospital eu esquecia da minha própria dor ajudando as outras mães - revela a enfermeira, mãe de Fabiano, 33, e de Juliano, 24.
O carinho dispensado em momentos de tanta fragilidade foi retribuindo por muitas mamães. Hoje, existem várias Marlis circulando por aí, batizadas em sua homenagem. Seguidamente, ela recebia fotos e notícias dos afilhados que deu banho e acarinhou na maternidade do Pompéia. Quem ouve Marli contar suas histórias sobre o hospital, porém, não imagina que ela nem pensava em se tornar enfermeira quando jovem. Pelo contrário. Ela confessa que tinha medo de mortos e passava longe de qualquer lugar que lembrasse o assunto. O trauma, acredita, veio com a morte da avó, que acompanhou aos três anos, quando morava em Forqueta.
- Sempre que ficava sabendo que algum vizinho tinha morrido, eu queria fugir, pedia para a minha mãe me mandar para a casa do meu avô. Naquela época, era costume fazer as crianças também se despedirem dos mortos. Eu tinha muito medo, achava que eles iam virar assombração - revela Marli.
Mas como é que alguém que tinha medo dos mortos acabou se tornando enfermeira? Coisa do destino, acredita Marli. Prestes a se formar no Colégio São Carlos, onde estudou, ela e uma colega era uma das poucas que ainda não tinha decidido qual curso prestar vestibular.
- Começamos a fazer trabalho voluntário em vários lugares, para descobrir qual área nos gostaríamos de atuar. Um dia, a minha colega perguntou se eu não queria ir trabalhar no hospital. Lembro que na hora respondi: "nem pensar". Mesmo assim, acompanhei ela até o Hospital Saúde. Nos primeiros dias, ficava sentada na recepção, do lado de fora. Não queria nem olhar lá para dentro. Então a irmã Marta, que trabalhava lá, começou a me convidar para entrar, para ver como era. Só fui aceitar no terceiro dia. Eu entrei na UTI pediátrica e levei um choque. Vi aqueles bebezinhos todos frágeis, lutando para sobreviver. Nunca imaginei que havia esse lado triste também - conta.
E aos poucos, Marli foi entrando no hospital e conhecendo a batalha que todos - enfermeiros, médicos e pacientes - travavam pela vida.
Mesmo assim, o medo dos mortos permanecia e ela seguia firme na decisão de jamais escolher a área de saúde para trabalhar. Até que um dia, quando estava na sala da irmã Marta, sozinha, o telefone tocou.
- Oi, por favor, preciso de ajuda com o meu pai. Ele está morrendo. Não quero ficar sozinho agora - dizia o filho de um paciente internado em estado terminal.
- A irmã já está voltando. O senhor espere, por favor - respondeu a jovem Marli, apavorada.
A culpa por ter abandonado o pobre homem com o pai no leito de morte empurrou a estudante até o quarto. Até hoje Marli não lembra exatamente o que houve naquele dia.
- Eu abri a porta do quarto tremendo. Ele então me disse: "Tenha calma, está tudo bem. Todos nós morremos, não tenha medo" - recorda.
Só depois é que ficou sabendo que, com as noções de enfermagem que havia aprendido com a irmã Marta, ajudou a amparar o doente, que morreu praticamente em seus braços. Eis que estava traçado o destino de Marli na área de enfermagem.
- Era para ser mesmo. Acabei não indo fazer vestibular para Psicologia em Porto Alegre (na UFRGS) porque tive catapora - conta Marli, que integrou a primeira turma de Enfermagem da Universidade de Caxias do Sul (UCS) em 1975.
Depois de formada, Marli foi trabalhar no Hospital Conceição, na Capital, onde ficou por dois anos. Largou tudo e voltou a Caxias para cuidar do pai, vítima de um segundo infarto e que necessitava de cuidados intensivos.
- A minha prioridade era a minha família. Na época, nem quis saber de voltar para o hospital. Porém, após algum tempo, fiquei sabendo que o Pompéia, onde fiz estágio na ala materno-infantil na faculdade, estava precisando de enfermeiro para o bloco cirúrgico. Eles disseram: "Pode ser temporário." E de temporário, acabei ficando. Sinto um enorme orgulho de trabalhar aqui. Somos uma família, me sinto em casa - diz Marli, lembrando que na época que começou, em novembro de 1983, havia oito salas de cirurgia na instituição e era realizadas cerca de 1,2 mil cirurgias por mês.
Seis meses depois, a enfermeira seguia para ao setor que mais amava, a obstetrícia. Em 1995, passou à gerência de enfermagem, mesmo ano em que se aposentou. Cheia de energia, seguiu na ativa, embora com horários e rotina menos pesados. Hoje, ela trabalha como diretora de planejamento, onde é responsável por toda a negociação com o Sistema Único de Saúde, atuando ainda junto ao Ministério da Saúde em relação a verbas parlamentares e acompanhando as portarias ministeriais com legislação sobre área da saúde.
- Foi uma época de muito trabalho e às vezes tenho uma saudade boa da época em que tinha contato mais próximo com os pacientes. Vivi muito intensamente lá. Quando perdíamos um bebê, lá ia eu para o banheiro chorar. Nunca consegui ficar alheia ao sofrimento das pessoas. Eu me apego fácil - confessa a enfermeira.
Em uma caminhada de 30 anos, ficam evidentes as belas sementes que Marli plantou e que fizeram germinar nela o orgulho de ajudar ao próximo e de ver sua própria história fazer parte das páginas centenárias do Hospital Pompéia.
Mais de 30 anos de trabalho
100 anos do Hospital Pompéia: conheça a história da enfermeira Marli dos Santos Baierle
Gentileza, paciência e amor são as características da profissional
GZH faz parte do The Trust Project