"Sou um milagre, estou aqui". Com este trecho da música gospel, Alan Ruschel foi recebido por familiares e amigos em Nova Hartz, após deixar o hospital depois do acidente aéreo que vitimou 71 pessoas em 2016, na Colômbia. Alan era um dos seis sobreviventes do voo que conduzia a delegação da Chapecoense para a disputa da final da Copa Sul-Americana contra o Atlético Nacional.
O atleta voltou aos gramados quase nove meses depois, num amistoso diante do Barcelona. Desde então, os desafios não têm limites na vida de Alan. O lateral-esquerdo do Juventude tem provado a todos os motivos que o fizeram não abandonar o esporte.
— Desde o acidente falei que não queria ser tratado como uma vítima e estar jogando só porque todo mundo tem dó. Quero ser tratado como atleta profissional como os outros. Sendo cobrado, indo pro banco se tiver um atleta em melhor momento. A gente não chega nos lugares por acaso. Hoje sou titular no Juventude não por ser queridinho de alguns. Estou trabalhando pra isso e fiz por merecer.
As barreiras no caminho de Alan parecem não ter fim. De volta ao Verdão depois de dez anos, o atleta teve que superar a má fase que quase o fez sair do clube pela porta dos fundos. Mas o jogador não baixou a cabeça, e deu a volta por cima. No time do técnico Thiago Carpini, Ruschel tem sido um dos destaques na campanha de retomada na Série B, com cinco vitórias consecutivas e só uma derrota.
— Estou muito feliz com este momento que estou vivendo. No começo da temporada estava desacreditado por muitos. Com a chegada do Thiago Carpini, parece que se criou outra identidade. Ele conseguiu passar confiança pra todo mundo. Fez com que todos retomassem o bom futebol, conseguíssemos essas cinco vitórias. Por excesso de vontade, a gente acabou tropeçando no último jogo, com o Tombense, mas acontece. Estamos focados para continuar brigando lá em cima, que é o lugar do Juventude.
Alan Ruschel concedeu entrevista ao programa Show dos Esportes, da Rádio Gaúcha Serra. O lateral-esquerdo falou abertamente sobre a reconquista do espaço no elenco alviverde, as experiências mais marcantes em seus 33 anos e a nova vida que teve início em 2016. Confira os principais trechos da entrevista:
A volta para o Juventude
Um cara chegou pra mim e perguntou: "Por que você escolheu o Juventude? Pra estar na tua zona de conforto?". Eu falei: não. Se tivesse na minha zona de conforto, teria encerrado minha carreira em Chapecó. Lá sim eu era titular, ganheis os melhores títulos que o clube poderia ter, o Estadual, o Brasileiro e a Sul-Americana. Um clube do interior de Santa Catarina, quando vai conseguir isso? Vim pra Caxias porque é minha casa, minha família está aqui, mas a cobrança vai ser maior. Porque amigo que é amigo te cobra de verdade. E vim para o Juventude para fazer história, e quem sabem buscar o acesso pra Série A e jogando um Brasileirão pelo clube.
Quem mudou mais
Os dois mudaram muito. O tempo vai passando. Mas a vitalidade é a mesma daquele menino de 18 anos que chegou aqui emprestado pelo Esportivo, em 2007. O Juventude também. Internamente, a estrutura para trabalhar melhorou muito. Totalmente diferente de quando cheguei. Um clube bem mais profissional. Merece coisas melhores do que uma Série B. Conquistei a Copa FGF de 2012, num time que tinha Alex Telles, Ramiro e Bressan. Voltei para o clube 10 anos depois para retomar meu bom futebol. Jogar em Grêmio, Inter ou Juventude sempre foi sonho de criança. Depois de sair e atuar em grandes clubes do futebol brasileiro, voltar para o Juventude era um novo sonho.
Se tivesse na minha zona de conforto teria encerrado minha carreira em Chapecó.
ALAN RUSCHEL
Começo ruim
Há dois tipos de jogadores: com confiança e sem. Não é que estava sem confiança, mas não tinha ritmo de jogo e o futebol brasileiro exige uma resposta muito rápida. Cheguei no Juventude depois de 45 dias parado desde que deixei o Londrina. Fiz a pré-temporada, mas o essencial mesmo é o ritmo de jogo e estava um pouco atrás. Com o Celso Roth era segunda opção. Respeitei. Depois, com a chegada do Pintado, ele optou em não contar comigo.
Afastado do grupo
Às vezes, a gente não entende, mas respeito a hierarquia. Continuei trabalhando porque sabia do meu potencial e que poderia ajudar. Foi um momento bem difícil. Com 33 anos, nunca tinha sido afastado do trabalho num clube. Mas não vão ouvir dizer que o Alan não treinou ou cometeu um ato de indisciplina. Quanto mais eu estava escanteado, mais eu treinava porque eu sabia que poderia dar a volta por cima. Sou grato também ao Adaílton (Bolzan), que foi um cara que sempre me ajudou. Estava ali comigo nos treinos dos não-relacionados, me dava muita força e dizia que contava comigo. Sabia que uma hora precisariam de mim. O Carpini chegou, o Kelvyn teve uma lesão, e eu dei conta do recado porque estava preparado.
Chegada de Thiago Carpini
É ruim questionar o trabalho de pessoas que aqui não mais estão, mas a metodologia de trabalho do Thiago fez com que o material humano que está aqui rendesse muito mais. O estilo de jogo favoreceu meu futebol, do próprio Nenê, por termos agora um jogo mais apoiado, com a bola passando mais nos pés dele. Antes, a gente não conseguia fazer a transição de pé em pé, e hoje a gente faz.
O Carpini foi atleta e entende o que se passa na cabeça do jogador. Passou confiança, conhecia cada um de nós e disse que assumia a responsabilidade se as coisas não dessem certo. "Errem tentando, não por omissão". É o que ele fala.
Inspirações e conversa com os jovens
Converso bastante com eles. O Ruanzinho me chama de "Tio Alan"(risos). Falei, cara quando eu cheguei no Juventude você tinha dois anos Ruan. Quando cheguei aqui em 2007, quem me orientava era o Laurinho Guerreiro. Concentrava com o Lauro aqui, foi um cara que me espelho bastante até hoje. Quem também me abraçou foi o Renan (volante), que jogou comigo no Esportivo, era um pouco mais velho, cuidou bastante de mim aqui quando cheguei com 18 anos.
Quanto mais eu estava escanteado, mais eu treinava porque eu sabia que poderia dar a volta por cima.
Puxão de orelha
A gente estava voltando de viagem num jogo da Série B de 2008. Brigamos para subir para a Série A até o final. E acabamos perdendo aquele jogo, não lembro onde foi. Chegamos no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e vi uns caras irem comer um McDonald's. Fui atrás e acabei atrasando a volta do ônibus pra Caxias. Aí estou eu sentado no lado do Lauro e ele me diz: "Juvenil, deixa eu te falar uma coisa. Tu estás começando agora. Tu tens que ser o primeiro a chegar dentro do ônibus e esperar todo mundo. Não pode ser o último e ficar atrasando os outros. Por ser o mais jovem, tem que ser o primeiro a estar aqui". Foi algo simples, porque fui só pra comer um McDonald's, mas guardo até hoje.
Recado passado adiante
E até passei pro Rafinha esses dias. Teve um treinamento em que ele ficou fora do grupo de 22 atletas. E eu vi que ele estava chateado. Dei uma carona pra ele e disse que isso acontece. O que não pode é desanimar e deixar de trabalhar. Sou exemplo disso, quando o Rafinha treinava eu estava treinando afastado atrás do gol, porque estava sem espaço também. Hoje estou jogando. Então amanhã pode ser você, não desanima. O ruim é a oportunidade chegar e você não estar preparado. Continua treinando, falei pro Rafinha.
Próximo jogo e objetivo na Série B
A Série B é um campeonato muito difícil. Já conquistei acesso e o título da competição. Sei o quanto precisamos de reforços para dar sequência num bom trabalho. São muitos jogos, às vezes temos desfalques por lesão, por cartão e também pelo cansaço. Acredito que estamos no caminho certo. Importante aproveitar essa parada de 11 dias. O Carpini nunca teve tanto tempo pra deixar a gente na ponta dos cascos pro jogo contra o Sport, na quinta-feira (22).
Renascimento
Daquele momento, desde quando acordei do coma, só agradeço a Deus por cada momento que vivo. Pelas dificuldades que passo. Pelas conquistas que tenho. Acho que a gente não é nada nessa vida sem o amor de Deus no coração. Por tudo que aconteceu na minha vida, até antes do acidente, se tem uma palavra que posso falar hoje é gratidão. Por ter colocado pedras no meu caminho, nos fortalece, deixa a gente mais forte. Tudo passa, o que a gente não pode deixar de fazer é o bem. Não querer o mal de outra pessoa ou passar por cima de alguém.
A gente tem essa mania de dizer : "Pô, amanhã é segunda-feira, c... tem que trabalhar!". Que bom que você vai acordar na segunda e poder trabalhar. Chega num hospital e pergunta pra alguém se não quer e trabalhar numa segunda-feira.
Valor nas coisas mais simples da vida
Prezo sempre pelo bem e aprendi a dar valor para as coisas simples da vida. Só damos valor quando a gente perde alguma coisa. Agora, acabo aproveitando muito mais as pessoas que gosto. Fazer coisas simples, levantar cedo, não reclamar da vida. A gente tem essa mania de dizer : "Pô, amanhã é segunda-feira, c..., tem que trabalhar!". Que bom que você vai acordar na segunda e poder trabalhar. Chega num hospital e pergunta pra alguém se não quer e trabalhar numa segunda-feira. Pessoas que não podem andar ou se levantar da cama de um hospital. Eu passei por isso e sei como é. Ah, estou num momento ruim, treinando em separado. Mas que bom que eu tô aqui podendo dar a volta por cima. A única volta que a gente não pode dar é na morte.