“As raízes revelam o sabor dos frutos.” A metáfora foi cunhada pelo filósofo e poeta Jayme Paviani, e publicada no livro Redemoinho (2011, Ed. Modelo de Nuvem). Nessa época de colheita da uva, pode-se associar o verso às raízes da parreira, algumas centenárias, espalhadas pela região vitivinícola mais importante do Brasil.
No entanto, se pudéssemos nos embrenhar através das cepas, sobretudo as viníferas, cujos caules têm cascas mais densas, encontraríamos a raiz cultural, que se mistura ao DNA dos italianos, no que diz respeito à produção de vinhos. Então, ao relermos o verso de Paviani, fica mais claro perceber que estamos pisando em um terreno sensorial, afetivo e poético, que vai além do sentido econômico.
Todo o trabalho, esforço empreendido no cultivo da terra, na poda da parreira, e as novenas dentro das pequenas capelas, que estão espalhadas por todo o interior da região, erguidas para sustentar a fé e a esperança de que Deus derramaria a chuva e estabeleceria o sol necessário às boas colheitas, tudo isso, naturalmente, reverte-se em desenvolvimento econômico. Mas há quem defenda que o maior diferencial da região, a maior produtora de vinho do Brasil, não teria essa reputação não houvesse o equilíbrio entre a dedicação quase religiosa no zelo pelo vinhedo, aliada a uma filosofia vinífera que pode ser resumida em uma frase.
Está lá, visível para todos que entram na loja da Casa Valduga: “Antes de fazer duas garrafas de vinho, faça uma, mas bem feita”. A frase é atribuída a Luiz Valduga, fundador da vinícola, que fica no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. Por isso, quando alguém lhe disser que dentro de cada garrafa tem uma história, pode acreditar, porque não é papo de vendedor. Com toda a ressalva de consumo moderado, Paviani assim descreve o fruto da vinificação: “o copo de vinho, síntese de luz e suor”.
O verso abre o poema O vinho, publicado em Matrícula 2 (1998, Coleção Fábrica de Escritos), que se encerra dessa forma:
“Amigos e horizontes se unem
na integridade do vinho
síntese de sol, fluência dos dias
que nos faz aos poucos visivelmente amadurecer”.
Bem-vinda, vindima, bendita há tantos anos. Colhe-se, até março, mais do que a uva, e sim, o fruto do penoso trabalho, com a expectativa de uma safra em quantidade e qualidade muito similar à de 2020.
Equação complexa para estimar a colheita
Entre o germinar do broto do cacho da uva até a colheita, há um espaço de tempo que provoca tensão e um bocado de incertezas. Por mais alternativas que o viticultor tenha hoje em mãos, por conta da evolução nas práticas de manejo, ainda é preciso contar com o dedo de Deus.
– Temos todo janeiro e fevereiro pela frente ainda. Comparando com o ano passado, vai ser difícil bater a qualidade da safra. Mas, se permanecer desta forma, sem chover demais, vamos nos encaminhar para outra safra excelente – revela o engenheiro agrônomo da Emater/RS-Ascar, Enio Ângelo Todeschini.
A mesma relação de complexidade, na dependência do comportamento do clima, também se observa para a equação de quantidade da colheita.
– Antes do dia 15 ou 20 de janeiro, não temos como definir, nem mesmo estimar, um número de quilos que devemos colher. Ainda não sabemos como será a quantidade de chuvas em janeiro e fevereiro. E tem ainda o famoso granizo, que vamos falar baixinho, para que não venha. Nossa expectativa, sem falar em números absolutos, é de que vamos ter uma safra dentro da normalidade, nem muito acima nem muito abaixo da média dos últimos anos – desconversa Todeschini.
Além das condições climáticas, há um fator que tem sido relevante e determinante para uma melhor qualidade e quantidade nas últimas safras.
– Temos percebido que o viticultor está mais consciente com o uso dos novos manejos, seguindo as recomendações agronômicas, enfim, buscado o profissionalismo na sua atividade. Podemos verificar isso desde a introdução de cobertura para algumas variedades, poda adequada, adubação equilibrada e demais tratamentos que são necessários para um melhor desenvolvimento do cultivo – explica Todeschini.
A colheita na região da Serra começou ainda em meados de dezembro de 2020, com a cepa Vênus, que é a primeira no calendário da vindima, por ser uma espécie precoce. As demais variedades podem sofrer leve alteração em possíveis datas de colheita, mas a estimativa é de que seja finalizada até o final de março.
Todeschini revela ainda que, de modo geral, estão sendo colhidas, agora em janeiro, as uvas Niágara, Couderc, Chardonnay, Riesling, Pinot Noir, Violeta, Magna e Bordô. A partir de fevereiro, será a vez das Isabel, Merlot, Cabernet Sauvignon e as variedades de Moscato.
Da vinha ao supermercado
Na comunidade Caravaggio da Terceira Légua, no interior de Caxias do Sul, a família Dallegrave está na colheita da uva Niágara, rosada e branca, há mais de 20 dias. Ao todo, são nove hectares de terra com videiras, incluindo uma área pequena com Isabel. A maior parte da produção abastece as prateleiras dos supermercados Andreazza, e o restante é vendido para a Vinícola Casa Motter. Na manhã da quarta-feira (5/01), Volnei Dallegrave, 49 anos, e o filho Mateus, 15, estavam debaixo da parreira colhendo os cachos mais maduros.
– Essa é a parte mais gratificante do ano – orgulha-se Volnei.
Além do dinheiro no bolso, a satisfação está em tirar da parreira um cacho bonito, com bagas grandes e reluzentes, que dão água na boca antes mesmo que se possa sentir a explosão de sabor adocicado entre os lábios.
– No ano passado, colhemos tudo até o dia 10 de fevereiro. Acredito que, neste ano, ainda em janeiro vamos colher toda a uva in natura, que vai para o supermercado – explica.
Com relação à quantidade, Volnei diz que, devido à estiagem, sobretudo nos últimos quatro meses de 2020, a safra deste ano deverá ter uma pequena perda no volume.
– Geralmente, colhemos entre 40 a 50 mil quilos para vender in natura e mais uns 100 mil quilos para a vinícola. Mas, neste ano, imagino que vamos chegar a 130 mil, no total – compara.
– Eu não posso me queixar, viu, a uva está doce e bonita. Às vezes a gente reclama de “barriga cheia”. De um modo geral, estamos muito felizes com a safra – corrige-se Volnei.
Os Dallegrave são associados da Cooperativa de Agricultores e Agroindústrias Familiares de Caxias do Sul (CAAF).
– O mundo deveria ser cooperativado. Esse é um dinheiro certo e sagrado, onde todo mundo que trabalha acaba se beneficiando. Se tiver uma liderança séria, vai andar bem e todos ganham – argumenta.
Quase 15% da safra gaúcha vem da Aurora
Os primeiros caminhões com caixas repletas de uva começaram a chegar na Vinícola Aurora, que fica no centro de Bento Gonçalves, na manhã da terça-feira (4/01). Em 2020, os associados da Aurora colheram 61,9 milhões de quilos de uva processada, representando 12,25% da safra no Rio Grande do Sul. A expectativa deste ano, é de crescer 15% em relação ao ano passado, chegando a, aproximadamente, 70 milhões de quilos de uvas. Aliás, mais próximo do melhor índice da última década, quando a cooperativa alcançou a marca de 71,5 milhões de quilos de uva, em 2017.
A área de cultivo da Aurora já se entende por 2,8 mil hectares, distribuídos em 11 municípios da Serra Gaúcha: Bento Gonçalves, Veranópolis, São Valentim do Sul, Guaporé, Cotiporã, Monte Belo do Sul, Santa Tereza, Pinto Bandeira, Vila Flores, Farroupilha e Garibaldi. Ao todo, são mais de 60 variedades de uvas, cultivadas entre os 600 grupos familiares, que contam com 1.100 associados. Entre as principais variedades estão Merlot, Cabernet Sauvignon, Chardonnay e Pinot Noir, que são viníferas, e Isabel, Concord, Seibel e Bordô, americanas e híbridas.
– Ainda é cedo para falarmos da qualidade da safra. Porque temos variedades mais tardias e, se chover demais, poderá baixar a qualidade. Mas, se o clima continuar assim, sem chuvas em excesso e nem granizo, podemos ter uma safra em qualidade igual ou superior à do ano passado. As primeiras variedades que estamos recebendo aqui na Aurora são a Chardonnay e Pinot Noir e estão entrando com excelente qualidade – revela Maurício Bonafé, 31, engenheiro agrônomo e coordenador da Área Agrícola da Aurora.
Bonafé diz que a colheita de um bom fruto, aliada a um melhor manejo, cada dia mais mecanizado, além de um aprimoramento das técnicas vitiviníferas, têm sido o diferencial na elaboração dos sucos, vinhos e espumantes.
– Esse desenvolvimento vem ocorrendo ano a ano, com a realização de uma poda correta, que acarreta em uma melhor produção. Na parte técnica, precisamos estar em constante aprendizado. Nunca podemos dizer que chegamos em um processo e achar que valerá para o resto da vida. Podemos dizer que teremos uma boa safra, se além de um bom fruto colhido, vamos também aplicar conhecimento na vinícola, fazendo com que a produção de vinhos seja ainda melhor – ensina.
De volta para a colônia
Aos 18 anos, o bento-gonçalvense André Carraro resolveu dar as costas para a colônia. Aquela velha rotina que se arrastava por gerações, de acordar e viver para o ofício de zelar pela parreira parecia lhe entediar a ponto de negar sua origem e tomar o rumo da cidade. Por cerca de dois anos, ele transitou entre uma concessionária de veículos e uma empresa de importação e exportação.
– Foi a pior besteira que fiz (risos) – reconhece Carraro, aos 42 anos.
Quando apareceram os primeiros modelos de trator Yanmar, modelo F-28, à venda na região, inclusive com pulverizador acoplado, Carraro conta que se sentiu atraído para voltar ao campo para ajudar o pai, Luiz Carraro.
– Pai, eu vou voltar, mas tem de ser do meu jeito – recordou, às gargalhadas.
Enquanto Carraro contava sua história, entrelaçando cenas tragicômicas, explicava qual a amplitude da propriedade da família, que hoje compreende oito hectares dele, mais oito que ele arrenda, mas que pertencem à sua tia, que não tem como cuidar, pois perdeu marido e filho.
– Meu pai sempre foi um cara de visão a longo alcance. Quando voltei, ele confiou em mim e me deu a responsabilidade para fazer do meu jeito. O tempo em que estive fora de casa me ensinou a dar mais valor à propriedade – revela.
Carraro vende a maior parte da sua produção para a Famiglia Valduga, cuja sede fica ao lado da sua propriedade. Neste ano, após a safra, Carraro pretende renovar os vinhedos, ceifando a variedade Isabel, cujas parreiras são as mais antigas do terreno, com mais de 70 anos. No lugar, prende plantar Alicante. E com isso, manter as seguintes variedades: Chardonnay, Pinot Noir e Lorena. Sua expectativa para a safra de 2022 será de vender 90% da sua produção para a vinícola Valduga.
Aliás, nada mais familiar para ele estabelecer essa relação comercial com a Valduga, porque, além das relações de parentesco, em que as linhagens das suas famílias se bifurcam, Carraro revela que trabalhou na vinícola quando ainda era pré-adolescente.
– Trabalhei cinco meses na Casa Valduga, quando eu tinha 13 anos. Me lembro como se fosse hoje, onde tem o restaurante, ali era a cantina. Eu lavava garrafões e rotulava eles a mão – recorda.
Cultivo de vinhedos e a relação com o jogo de pôquer
Enquanto André Carraro (foto acima) explicava como sua relação com os vinhedos amadureceu com o tempo, Rudinei Bao observava a conversa, escorado em uma Fiat Strada. Rudinei é técnico em agropecuária e, mesmo jovem, aos 35 anos, é o gerente agrícola da Famiglia Valduga, no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves.
Conversávamos sobre o momento ideal para a colheita dos cachos de uva, e como saber o momento certo da maturação, quando Rudinei silenciou por um instante, como se buscasse refinar o seu pensamento. Então, depois de coçar o queixo, ele sentenciou:
– A colheita da uva, na safra, é como um jogo de pôquer. Tens de ser estratégico, é preciso saber a hora de apostar e a hora de parar. A questão é, se a gente não aposta e não tem ousadia, podemos perder o tempo certo para extrair a melhor qualidade. E a colheita é uma vez só por ano.
O elemento complicador desse jogo a que se refere Rudnei, é que as cartas são dadas por Deus. Ou seja, o clima é crucial para a qualidade da uva, mas, apesar da inconstância, é preciso dosar a dita ousadia com boas doses de paciência.
– Eu sempre falo para os produtores e os nossos colaboradores que a gente passa o ano todo trabalhando com o vinhedo, preparando a colheita. Então, não adianta agora a gente ter pressa, colher de qualquer maneira, colocando uva estragada dentro da caixa. Se fizermos isso, estaremos desvalorizando nosso trabalho – justifica.
Rudinei diz que é cedo para determinar a quantidade e qualidade desta safra. Ao todo, 200 produtores, como André Carraro, comercializam suas uvas com a Famiglia Valduga. Em média, a vinícola recebe entre 6 milhões a 6,5 milhões de quilos, que se dividem para abastecer as empresas do grupo, Casa Valduga, Casa Madeira e .Nero. Para finalizar, Rudinei fecha sua aula com a seguinte defesa:
– Depois de ano em que tivemos pandemia, crise econômica e discussões políticas no país, chegarmos com saúde podendo ver no vinhedo a uva de excelente qualidade, é porque temos de dar os merecidos parabéns aos produtores.
Façam suas apostas por uma boa safra. E que Deus derrame a chuva em boa medida para que o fruto do penoso trabalho seja doce.