Há livros de todas as cores. Alguns vertem poesia e tornam menos árido viver. Outros despem personagens que pensávamos ser cândidos e morais. Páginas e páginas de matizes distintas, ora escritas a partir de argumentos sádicos, ora lunáticos, por vezes pragmáticos e até vis. Ou ainda, obras que parecem nos prender em correntes atávicas, para que jamais pudéssemos ser livres. Bibliotecas guardam mais do que livros, servem pensamento. Em tempos de ensinos virtuais, da pedagogia efêmera dos stories dos digital influencers, e de tanta verborragia ideológica travestida de militância distópica, os livros continuam, impávidos, a devolver a ordem ao caos.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, a Biblioteca Central da Universidade de Caxias do Sul (BICE UCS) completou 50 anos. No dia 4 de maio, data em que se comemorou a inauguração da biblioteca, o Brasil contabilizava 7.321 mortes e 107.780 pessoas contaminadas por covid-19. Entre os mais de 7 mil dessa triste estatística oficial, haviam uns tantos severinos, cujas vidas e mortes já haviam sido anunciadas pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, cujo livro está disponível na estante de literatura brasileira da Biblioteca da UCS.
Vidas áridas e esquecidas, como se fossem números, como aquela gente da outra ponta do Brasil, retratada pelo escritor Paulo Ribeiro, em Vitrola dos Ausentes. A obra revela vida e morte da gente de São José dos Ausentes, que na verdade é Bom Jesus, segundo confidencia Ribeiro na tese de mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade, da UCS, defendida por Marcell Bocchese. Severinos em suas vidas e ausentes em suas mortes, como nessa pandemia, que impede até a família de velar seus mortos.
Vidas ceifadas nesse século 21, que começa com o pé esquerdo, como se tivesse sido atropelado na contramão, cujos fatos os livros de história sempre retrataram. Porque mudam as eras, os nomes das pestes, e dos atores, mas os fatos se repetem como se vivêssemos o mesmo Admirável Mundo Novo, romance do escritor Aldous Huxley, em cada nova era que se inicia. Nesse vasto acervo de mais de 830 mil obras, uma pequena parte é encontrada pela internet, ou até à venda nas livrarias. Outro vasto mundo de títulos, só pode ser garimpado em espaços como esse, que a UCS celebra neste estranho maio de 2020, o cinquentenário de sua biblioteca.
Berço do pensamento
De tempos em tempos, pode pesquisar nos livros de história que ocupam prateleiras e prateleiras na cinquentenária Biblioteca da UCS, povos bárbaros procuram cercear o pensamento dos opositores. E uma das ações é trancafiar livros ou até queimá-los. Ou por que raios Martinho Lutero, cravou as 95 teses contra a doutrinação da Igreja Católica, que ele entendia ser corrupta e obtusa? Porque Lutero debruçou-se em livros, para além da Bíblia. E assim abriu alas, em 1517, para uma nova corrente de pensamento filosófico-religioso dentro do cristianismo, o protestantismo.
Confrontando o pensamento vigente, Lutero foi perseguido, da mesma forma que mulheres foram queimadas vivas porque a sabedoria popular muitas vezes era assimilada como bruxaria, e chás medicinais eram vistos como receita do demônio. Há uma metáfora dentro dessa história. Porque todos sabem que a Bíblia, para além de ser uma obra de doutrinação religiosa, é uma coleção de livros. Ou seja, a Bíblia é uma pequena biblioteca, porque armazena diferentes livros, mesmo que sob um único prisma.
No entanto, a Bíblia ganhou relevância a partir de Lutero, que a traduziu do latin para a língua do povo. Mas muito antes da popularidade desse livro, civilizações antigas já possuíam suas bibliotecas, como é o caso da Biblioteca Real de Alexandria, no Egito, criada no século 2 a.C., durante o reinado de Ptolomeu II. Naquela época, o acervo chegava a 700 mil volumes — pouco menos do que a UCS conserva hoje em seus corredores. A raridade e a quantidade de obras em Alexandria, renderam-lhe o prestígio de ser a maior biblioteca da antiguidade.
No centro de uma sociedade
Jayme Paviani é um dos intelectuais mais importantes do Brasil. Pois é, ele não aparece nos cafés filosóficos da vida, mas suas obras estão espalhadas em diversas bibliotecas mundo afora, inclusive na Biblioteca Central da UCS. Nascido em Flores da Cunha, escreve com rigor, poesia e crônica, com a mesma habilidade com que inter-relaciona estetas, filósofos, em seus percursos através da história da vida e da arte. Em 2001, em uma dobradinha das editoras da Universidade de Caxias do Sul (EDUCS) e Pontifícia Universidade Católica (EDIPUCRS), com organização de Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Urbano Zilles, foi lançado um livro em homenagem à obra acadêmica de Paviani, chamado Filosofia: Diálogo de Horizontes.
A obra conta com textos de 54 colaboradores que analisam e avalizam a obra de Paviani, como é o caso de outro intelectual importante, Antonio Hohlfeldt, que cunhou o artigo "Procedimentos técnicos que fazem da poesia de Jayme Paviani uma obra de arte". No texto, Hohlfeldt discorre sobre a poética de Paviani, a partir do olhar dos estudos filosóficos de pensadores vitais para toda a sociedade.
"São eles, Platão e Aristóteles, entre os clássicos gregos; Hegel, na transição para a filosofia contemporânea; Theodor Adorno e Walter Benjamin, no que toca à estética crítica; Edmund Husserl e Maurice Merleau-Ponty, quanto à fenomenologia da obra de arte e, por fim, Martin Heidegger, que se torna seu principal orientador", escreve Hohlfeldt, a respeito do primeiro livro acadêmico, de Paviani, Estética e Filosofia da Arte, de 1973.
Todas essas obras de Paviani, ou mesmo dos filósofos citados por Hohlfeldt, fazem parte do acervo da Biblioteca Central da UCS, porque o conhecimento se constrói, a partir do sedimento dos pensadores do passado rumo ao futuro. É como construir um prédio, tijolo sobre tijolo. Porque antes da Biblioteca da UCS ocupar o espaço onde hoje está, no Campus Central, os livros estavam no Bloco A, reunindo acervos do Instituto de Belas Artes, Departamento de Ciências Jurídicas, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem e Departamento de Economia. E só em 1985, é que ocorreu a inauguração do novo prédio da Biblioteca Central com área física de 2.507 metros quadrados.
— Uma biblioteca é o centro de uma universidade, porque não é possível haver universidade sem uma biblioteca — afirma Jayme Paviani, 79 anos.
A sentença é simples. Mas o intelectual ainda vai mais longe, ao comparar a universidade ao espectro sociológico.
— As bibliotecas têm valor para as sociedades desde os tempos antigos, como os gregos. Já foram naquele tempo o centro para a sociedade e não apenas para uma universidade — observa Paviani.
O livro não morre
Incontáveis obras foram destruídas, queimadas e amaldiçoadas. Profetas pós-modernos e tecnológicos afirmam que em breve não serão mais impressos livros, todos lerão em tablets e os arquivos digitais nem precisarão de uma biblioteca, porque serão armazenados na nuvem. Mas bastou uma pandemia soprar sobre a humanidade para que os livros fossem reconhecidos como objetos de valor inestimável.
— Hoje em dia, você tem no computador quase tudo e faz pesquisas pela internet. Apesar da evolução tecnológica, no entanto, a biblioteca vai ser sempre um grande recurso. Uma coisa, é você pesquisar no computador, a outra, é ter o livro para fazer sua pesquisa. Não é questão de estilo, mas de valor — argumenta Paviani.
Acompanhar a trilha do pensamento filosófico de Paviani é como ser envolvido pelo perfume daquele bolo que só a avó sabe fazer. Afora o romantismo do contato com o livro, que muitos compram pelo cheiro, sentido a gramatura da folha e deslizando os dedos sobre a capa, que pode revelar, até pelo design a banalidade ou preciosidade da obra, o objeto é ainda alvo de garimpeiros. Para reforçar o argumento de Paviani, o bibliotecário Diego Fabrizio Kroth, há 15 anos trabalhando na Biblioteca da UCS, revela a epopeia de um pesquisador que veio de longe por causa de um livro.
— Já faz um bom tempo que isso aconteceu. Uma pessoa ficou aqui uma semana, pesquisando uma obra de Direito Militar, da época de Dom Pedro. Esse livro não estava disponível em lugar nenhum, só aqui na Biblioteca da UCS. Ele teve de ficar por aqui esse tempo todo, porque, por se tratar de uma obra rara, não pode fotografar, nem fazer fotocópia — explica Diego Fabrizio Kroth, 40.
O tal do livro de direito militar da época de Dom Pedro não se encontra com facilidade pelo site da Amazon ou na Livraria do Arco da Velha, porque obedece a lei da oferta e procura. Para saber mais sobre a economia global, e sobre as visões de pensadores como Karl Marx ou de Ludwig Heinrich Edler von Mises, podes recorrer à Biblioteca da UCS.
— Sem demanda, o livro não tem valor para ser reeditado — resigna-se Kroth.
Para Paviani, o valor está justamente no interior da obra, porque a preciosidade está no texto que gera reflexão. E nesse sentido, as bibliotecas, como a da UCS, provam que livros não morrem, e tendem a ser mais valorizados com o tempo, como os bons vinhos. Para todos esses assuntos, da economia, passando por sociologia, ou enologia, a biblioteca está funcionando, apesar da pandemia.
Nova rotina na pandemia
Atendendo à solicitação dos alunos da UCS, a biblioteca precisou organizar um sistema que atendesse a duas necessidades. Uma delas, oportunizar aos alunos que seguissem com suas rotinas de estudo e pesquisa, nos diferentes níveis, da graduação à pós-graduação, além de ajustar-se às normas de prevenção à propagação da covid-19. Atualmente, os alunos estão impossibilitados de circular pelos corredores, à procura das obras que desejam consultar, mas podem fazer a solicitação dos livros, a partir dos canais de comunicação da universidade, explica a coordenadora do Sistema de Bibliotecas da UCS, Michele Marques Baptista.
— Fizemos um planejamento com a Pró-Reitoria e organizamos uma escala de plantão, que atende aos pedidos dos alunos. Trabalhamos de segunda a sexta, das 9h às 19h. Os alunos fazem as suas solicitações por e-mail, e retiram os livros, acondicionados em uma sacola, lá na porta da biblioteca — detalha Michele, 39, formada em biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), em 2004.
Durante a pandemia, acrescenta Michele, os alunos realmente seguiram à risca o foco nos estudos.
— Reabrimos para empréstimo, somente por solicitações por e-mail, na metade de abril. Em cerca de 15 dias nós tivemos mais de 400 exemplares emprestados. Para nós isso é um bom número.
Michele gosta do ambiente da biblioteca, onde acaba por ser uma extensão da sua casa. Sempre foi assim, porque enquanto cursava biblioteconomia, passava o dia na faculdade.
— Eu estudava à tarde, e fazia estágio manhã e noite, na biblioteca. Sempre trabalhei nesse ambiente, e gosto mais do perfil de biblioteca universitária, do que a escolar, porque o público é bastante diversificado — revela.
A bibliotecária Márcia Servi Gonçalves, trabalha na Biblioteca da UCS há 18 anos, revela que, diferentemente do que as pessoas pensam, eles não conseguem ler o tempo todo. Dedicam-se a fazer uma leitura técnica, a fim de poderem orientar melhor os alunos na procura do que precisam.
— Conheci muita gente, ouvi muitas histórias, atendi pedidos variados, de alunos iniciantes, que muitas vezes não sabem onde começar a procurar. Minha maior satisfação é ajudar ao usuário da biblioteca a encontrar o que precisa do nosso acervo — revela Márcia, 46.
Há tantas vidas que se cruzam em meio aos corredores desse vasto mundo das bibliotecas. Por vezes, personagens da vida real confundem-se aos personagens dos livros de história ou de ficção. Ávidos por conhecimento, sedentos por reflexão, persistem na eterna procura de suas respostas. Os livros, estarão ali, sempre prontos para revelar seus apontamentos e pontos de vista, apesar do tempo castigar suas folhas.
Do passado ao presente
Dos 23,5 mil volumes iniciais quando foi criada no Campus-Sede, em 1970, a Biblioteca Central da UCSA deu origem, em 1993, ao Sistema de Bibliotecas da UCS, que hoje reúne mais de 830 mil livros, 13 mil e-books, 10 mil periódicos e 2.700 teses e dissertações. O Sistema regionaliza o acesso à pesquisa informacional integrando as 11 bibliotecas da Instituição sediadas nos campi — em Caxias do Sul no Campus-Sede, no Campus 8, no Programa UCS Línguas Estrangeiras e no Hospital Geral; e nas cidades de Bento Gonçalves, Vacaria, Canela, Farroupilha, Guaporé, Nova Prata e São Sebastião do Caí.
Linha do tempo
1970
Criação da Biblioteca Central da Universidade de Caxias do Sul (BICE/UCS), em 4 de maio de 1970 com o acervo das bibliotecas do Instituto de Belas Artes, Departamento de Ciências Jurídicas, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem e Departamento de Economia.
1978
Transferência da biblioteca localizada no Bloco A do Campus-Sede para sala no térreo do Bloco F.
1983
Início das obras do prédio da Biblioteca Central.
1985
Inauguração do novo prédio da Biblioteca Central com área física de 2.507 metros quadrados.
1993
Criação do Sistema de Bibliotecas da Universidade de Caxias do Sul (SiBUCS) após a instalação de bibliotecas setoriais nos Campi e Núcleos da universidade.
1998
Início do processo de informatização da Biblioteca.
2000
Criação do espaço da Seção de Coleções Especiais e aquisição de quatro coleções: Laudelino Teixeira de Medeiros, Oswaldo Fernandes Vergara, Luis Carlos Meneghini e Fernando O. Assunção.
2002
Início da Biblioteca de Teses e Dissertações (BDTD) da UCS em parceria com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).
2003
Implementação do novo cartão UCS para o acesso da comunidade acadêmica nas bibliotecas.
2004
Criação da Sala para Portadores de Necessidades Especiais, com softwares específicos, lupa eletrônica, obras em Braille e audiolivros.
2008
Instalação de dois elevadores na Biblioteca Central para garantir a acessibilidade dos usuários a todas as dependências.
2009
Novo espaço para o estudo e a pesquisa individual na Biblioteca com 50 cabines individuais.
2010
Criação do Blog do Sistema de Bibliotecas da UCS e do blog do Processo Técnico da UCS.
2011
A UCS passou a ter acesso ao Portal de Periódicos da Capes.
2012
A biblioteca do Hospital Geral torna-se uma Biblioteca Setorial do Sistema de Bibliotecas da UCS.
2016
A biblioteca do UCS Línguas Estrangeiras torna-se uma Biblioteca Setorial do Sistema de Bibliotecas da UCS.
2017
A Seção de Coleções Especiais recebe o acervo da família Bornheim com mais de 4 mil livros.
2018
A Seção de Coleções Especiais recebe o acervo de Heitor Curra.
2019
Criação do projeto dos egresso da UCS para que estes continuem usufruindo dos serviços das bibliotecas. As Bibliotecas UCS começam a atender via WhatsApp