A safra da uva deste ano tem tudo para ser histórica. Não pela quantidade, pois se colheu menos do que o normal, mas pela qualidade. Há muitos anos as videiras gaúchas não produziam uvas tão equilibradas em acidez e concentradas em açúcares, taninos (substâncias presentes na casca da uva e que dão estrutura e corpo ao vinho) e pigmentos. A fruta que é um dos símbolos da Serra deverá estar entre as melhores das últimas décadas.
— Tudo indica que essa será a melhor safra da história. Já tivemos safras muito boas no início da colheita ou no final, mas nunca começou e terminou tão bem. Teremos um produto final com qualidade: com mais cor, mais açúcar, um produto completo — comemora Alceu Dalle Molle, presidente da Cooperativa Nova Aliança, vinícola com 730 associados e que deverá processar 34 milhões de quilos de uva neste ano.
A seca, que tanto castigou e ainda castiga outras culturas, é a responsável pela excelente qualidade da uva deste ano. Depois de um inverno ameno seguido de estiagem em agosto e setembro e chuva excessiva entre outubro e novembro — fatores responsáveis pela quebra da safra — os vinhedos encontraram as condições ideais de dezembro até agora. O tempo seco predominou, com chuvas fracas, esporádicas e localizadas, o que fez com que a maturação fosse completa.
— Temos uma uva com alto teor de açúcar, sem podridão e mais pigmento. A acidez é de média a baixa, tem mais cor. É a melhor safra dos últimos 20 anos — comenta Mauro Zanus, engenheiro agrônomo da Embrapa Uva e Vinho.
A graduação de açúcar é um dos pontos que mais impressiona: está de três a quatro graus maior que a da safra passada. Produtor de Nova Pádua, Fabiano Luza conta que em sua propriedade, no Travessão Curuzu, as uvas colhidas têm apresentado grau 16. Na safra passada, não passou de 13. Em São Luiz da 3ª Légua, em Caxias, a família Brustolin também colheu uva com graduação 16.
— A qualidade é muito melhor. É uma uva com mais cor, mais doce. Já teve uva boa assim, mas há uns 10 anos — conta Olmar Brustolin.
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Rudimar Menegotto, relata que, em alguns parreirais, a graduação ficou entre 17 e 18. Um vizinho colheu com grau 19.
— As uvas colhidas agora são doces até demais — brinca.
BOA SAFRA DE VINHOS VEM AÍ
Com uvas de tamanha qualidade, a expectativa é de uma safra de derivados para também entrar na história. De acordo com o presidente da Comissão Interestadual da Uva, Cedenir Postal, a uva mais madura, sem podridão nos cachos, mais doce e sem acidez é perfeita para as vinícolas.
— Para a indústria, é excelente, porque vão fazer bons vinhos, sucos e espumantes — garante.
Especialistas falam em vinhos de longa guarda, ou seja, que poderão ser consumidos em 10, 20 anos ou mais. Empolgado, o presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), Daniel Salvador, já imagina as bebidas que serão produzidas a partir dessa vindima:
— Há muito tempo o setor vem numa constante de se aperfeiçoar e essa constante culminou com a condição meteorológica. As chuvas de verão nutriram a planta, não danificaram. É uma safra ícone. São uvas mais maduras, com açúcar suficiente para vinhos premium, especialmente para vinhos de longa guarda. Essa safra foi espetacular, o ápice da vitinicultura.
Conforme Salvador, os anos de 1991, 1999, 2005 e 2012 registraram boas safras, com uvas e vinhos de qualidade e notoriedade. Mas amigos enólogos dele já comentam que a deste ano deve ser muito superior.
— A gente vai premiar os consumidores com um bom vinho. A gente não recebeu uvas, recebeu uma preciosidade. Quem foi aos vinhedos e teve a oportunidade de colher uvas, viu que estávamos diante de algo especial — comemora.
QUEBRA ESTIMADA EM 20%
A colheita na Serra deve terminar entre essa semana e a próxima. Nos Campos de Cima da Serra, pode levar mais dias. Embora ainda não tenha finalizado, a Emater regional já estima uma quebra de cerca de 20%, provocada principalmente pela chuva em excesso entre outubro e novembro, período de floração da parreira. A safra na Serra deve ser de 632 milhões de quilos; no Rio Grande do Sul, 695 milhões de quilos. Em 2019, a safra total no Estado foi de 780 milhões de quilos, sendo 690 milhões na Serra.
A estiagem, embora tenha resultado em uma uva de qualidade de forma geral, por pouco não afetou de forma negativa os vinhedos. As perdas também podem ser atribuídas à seca — ela teve menos impacto, mas contribuiu em alguns casos. Na propriedade dos Luza, em Nova Pádua, a família resolveu não contar com o clima e, há cinco anos, implantou sistema de irrigação. A quantia de uvas colhidas na propriedade deve passar dos 200 mil quilos. No ano passado, os Luza colheram 198 mil quilos.
— A gente se obrigou a colocar a irrigação. Não dá para esperar só pela chuva. Sem água, pode perder a própria parreira — diz Fabiano Luza, que cuida da plantação com o pai, Olinto.
A família conseguiu manter a produtividade e ainda irá entregar para a indústria uma uva de ótima qualidade — no caso, para a Cooperativa Nova Aliança, de quem é associada. Os Luza plantam Bordô, Isabel, Carmen e Moscato.
SANIDADE EXCELENTE
Além da graduação acima da média, que garante o sabor mais doce às uvas, esta safra é marcada pela sanidade dos grãos. Com o tempo seco, os cachos ficaram livres da podridão, comum — e prejudicial — se a umidade prevalecesse.
— Sanidade assim só se viu em 2011/2012. Está excepcional — avalia o engenheiro agrônomo da Emater regional Enio Todeschini.
Ainda conforme Todeschini, a vindima 2020 exigiu menos tratamento e, por isso, o risco de ter resíduo de agrotóxico na uva é menor. O produto que chega para a indústria irá garantir, segundo ele, além de bons sucos e vinhos, excelentes vinagres.
— Aqui na nossa microrregião, estamos sem chuva desde o dia 26 de fevereiro. Não sabemos o que vai acontecer daqui para frente. Mas, olhando para trás, foi excelente para a uva — acrescenta Todeschini.
O CICLO DA SAFRA 2020
> O inverno foi de poucas horas de frio, considerado abaixo do normal.
> Os meses de agosto e setembro foram bastante secos (98 e 73mm, respectivamente), dificultando a brotação dos ramos. Com isso, houve nas varas brotação parcial.
> O potencial de produção das plantas foi um pouco diminuído por esses fatores. O efeito, no entanto, depende de cada variedade de uva, sendo umas mais sensíveis que outras.
> Por outro lado, no período de início de outubro até meados de novembro — fases de plena floração e pagamento dos frutos — houve excesso de chuvas. Em Bento Gonçalves, por exemplo, choveu 260 mm somente em outubro. Isso prejudicou a fecundação.
> A forte estiagem em dezembro e janeiro atingiu vinhedos instalados em solos mais rasos, ocasionando uma quebra de produção e de peso dos cachos em diversos vinhedos — mas isso não pode ser estendido a todas as áreas de produção e variedades.
> Diferente da safra passada, não houve incidência importante de fenômenos de granizo ou fortes temporais. Na safra de 2019, o granizo na primavera de 2018 ocasionou perdas enormes em algumas regiões, particularmente na região produtora de Flores da Cunha.
> O clima seco e quente do final da primavera e verão sempre beneficia a qualidade das uvas, tanto para suco quanto para vinho.
> A forte estiagem que começou no início de dezembro até a segunda semana de janeiro e depois se estendeu com chuvas fracas, esporádicas e localizadas fez com que a maturação ocorresse por completo, com uvas sadias, sem podridões, concentradas em açúcar.
> Foram predominantes dias de verão com temperaturas moderadas e noites de céu claro, que favorecem um gradiente de temperatura, beneficiando a síntese de pigmentos e preservando a acidez.
> Uvas delicadas como a Chardonnay e a Pinot Noir foram colhidas com uma qualidade excepcional.
> As principais uvas para suco, como Bordô, Concord, Isabel, BRS Violeta, BRS Carmem, têm apresentado alto teor de açúcares e pigmentos.
> As uvas mais tardias, como a Moscato Branco e a Cabernet Sauvignon, estão com excelente qualidade e também, devem originar vinhos equilibrados e intensos em aromas e sabores.
> O elevado grau de maturação alcançado (entre 20 a 24 °Brix) aumentou a concentração de açúcares das uvas tintas, como a Tannat, a Merlot e a Cabernet Franc. Os vinhos, por consequência, serão mais potentes e encorpados, com taninos mais agradáveis e macios.
MAIOR GRADUAÇÃO PODE AMENIZAR PERDAS
Quanto maior a graduação da uva, mais doce e mais valorizada. Quanto mais próxima do grau 20, a qualidade é maior e o preço pago por ela também. No entanto, isso não significa que os produtores terão mais lucro nesta safra. Conforme Rudimar Menegotto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na variedade Bordô, onde a quebra chegou a 50% em algumas propriedades, o valor pago a mais na graduação não irá compensar as perdas. Talvez na Isabel se tenha algum ganho.
— Conforme a perda, pode amenizar ou compensar — diz.
Para o agricultor Mauro Brustolin, de São Luiz da 3ª Légua, interior de Caxias do Sul, a boa qualidade da uva, de fato, não equilibra as contas. Ele diz que preferia colher uva com grau inferior, mas em quantidade.
— 300 mil quilos com grau ruim é melhor do que 260 com grau melhor — diz o produtor, se referindo ao montante da colheita do ano passado e à quantia que deve ser colhida até o final desta safra.
Apesar da estimativa de perdas de 30% nos 13 hectares plantados pela família, o pai de Mauro, Olmar, ainda prefere uma situação como essa do que fenômenos climáticos como o granizo, que pode ser extremamente prejudicial aos parreirais.
— É melhor assim do que com temporal — pondera Olmar.
PREÇO MÍNIMO
A maior produção na Serra é das variedades Isabel, Bordô e Niágaras — cerca de 80% do volume. Essas variedades são classificadas, conforme tabela do Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), como Americanas e Híbridas.
A Isabel 15 graus é utilizada como referência, já que é a mais produzida, e a graduação é a considerada a normal para a região. Abaixo, os valores estipulados como preço mínimo do quilo pelo governo federal para a safra deste ano.
Isabel
15 graus: 1,0800
16 graus: 1,1340
17 graus: 1,2420
18 graus: 1,3500
19 graus: 1,4580
20 graus: 1,5660
Bordô
15 graus: 1,2960
16 graus: 1,3608
17 graus: 1,4904
18 graus: 1,6200
19 graus: 1,7496
20 graus: 1,8792
Niágaras
15 graus: 1,0260
16 graus: 1,0800
17 graus: 1,1340
18 graus: 1,2420
19 graus: 1,3500
20 graus: 1,4580