Para a professora Daiane Maria Gaiardo, 35 anos, o fato de ainda morar na casa dos pais é tratado com naturalidade. Filha única, vê em Érico José Gaiardo, 79, e Lorena Maria Rech Gaiardo, 69, seus pontos de segurança e exemplos a serem seguidos. A família vive no bairro Kayser, em Caxias do Sul.
Daiane faz parte de um grupo chamado de geração canguru, que, apesar da idade, segue morando com os pais. Segundo dados recentes do IBGE, um a cada quatro brasileiros de 25 e 34 anos (ou mais) ainda reside no lar em convívio com a família.
Tranquila com suas decisões, recorda que em apenas um momento se sentiu pronta para a mudança. Em 2006 foi aprovada no vestibular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). No entanto, após conversar com os pais, a escolha foi por fazer o Ensino Superior na UCS. Em 2011, se formou em Letras e, em 2018, em Pedagogia.
Não existe uma idade certa. As condições são peculiares e relacionadas às necessidades de cada família.
FABIANA VERZA
doutora em Psicologia
Atualmente, Daiane é professora em duas escolas da rede municipal, na Basílio Tcacenco, no Esplanada, e na Senador Teotônio Vilela, no Nossa Senhora das Graças, ambas próximas de casa. Há três anos está em um relacionamento sério, e diz que o fato de morar com os pais jamais atrapalhou suas relações.
— A gente acaba escolhendo os círculos de amizades, e todo mundo se conhece, todos que são meus amigos são amigos deles (dos pais) também. Então, sempre foi muito tranquilo. E eu entendo que se tem alguém a quem eu tenho que honrar são os meus pais — avalia a professora.
Em 2021, a família passou por uma situação delicada. Após perder a voz, aparentemente assistindo a uma partida do time do coração, o Caxias, Erico manteve um quadro de rouquidão persistente e incomum, realizou uma bateria de exames e, depois de passar por diversos médicos, descobriu que estava com um câncer de laringe, com invasão na faringe e no esôfago. Assim, ele precisou fazer um esvaziamento cervical — retirada do aparelho fonador.
O dia que eu sair de casa vai ser para constituir o meu lar também, e meus pais sabem disso.
DAIANE MARIA GAIARDO
professora
A cirurgia aconteceu em um momento delicado da pandemia da covid-19 e, pela idade, a mãe dela não podia visitá-lo no hospital, pois havia restrições naquela época. Coube, então, à professora estar ao lado de Erico em um dos momentos mais difíceis de sua vida.
— Viemos de uma família que sempre observei os tios cuidando dos avós, os primos cuidando dos pais. Então, tudo é muito natural, nada é cobrança. E, com 35 anos, a gente tem consciência de algumas coisas. Mas, realmente, não vejo motivos para sair agora.
Mesmo feliz na casa dos pais, ela está ciente de que, em algum momento da vidam, dará um próximo passado.
— Não é que eu moro na casa dos meus pais, eu moro em um lar. O dia que eu sair de casa vai ser para constituir o meu lar também, e meus pais sabem disso. Não é por questão econômica, porque eu procuro ter as minhas fontes de renda — complementa Daiane.
Se no passado os próprios pais repassavam a pressão de os filhos saírem cedo de casa, construírem uma casa e formarem uma família por meio do casamento, atualmente, esse condicionamento tem perdido forçã. Daiane tem o apoio para todas as suas escolhas, inclusive a de ainda não ter saído ainda de casa.
— Eu não gosto de interferir, ela que deve saber. Quanto a casamento (e consequentemente sair de casa) ela que decide. É a vontade dela, ela tem que pensar no futuro dela — afirma Erico.
“Não existe uma idade certa”, diz psicóloga
São diversos os fatores que devem ser levados em consideração para a tomada de decisão de sair da casa dos pais, como explica a doutora em Psicologia pela PUC-RS Fabiana Verza. O contexto familiar, somado as inseguranças financeiras e, mais recentemente, climáticas, podem ser questões fundamentais.
— Não existe uma idade certa. As condições são peculiares e relacionadas às necessidades de cada família. Temos que avaliar pontos importantes como, por exemplo, contribuição do filho e da filha, contribuição financeira, contribuição no auxílio da gestão doméstica, contribuição nos cuidados com algum ente familiar, com algum idoso, ou contribuição pela própria ausência parental de algum membro da família — pontua Fabiana.
Ela acredita que cada vez mais tem se tornado comum o adiamento da saída da casa dos pais. Em alguns casos, na avaliação da doutora, isso pode ser positivo.
— Porque os filhos conseguem aumentar o nível de escolaridade, não precisam associar a saída de casa ao casamento, à maternidade e à paternidade. Os filhos ganham mais tempo para se profissionalizar, se qualificar, amadurecer e fazerem as suas escolhas de forma mais assertiva. Isso inclui, talvez, apenas morar sozinhos, não casar, não ter filhos, morar com amigos, sair do país, ou sair da cidade. Eles conseguem mais tempo para elaborar (os planos).
Contudo, também podem ocorrer pontos negativos, como afetar a independência. Até por isso, Fabiana diz que é necessário o diálogo entre pais e filhos, principalmente para estabelecer os limites de como deverá ser essa relação, e que é fundamental que os filhos contribuíam com as tarefas domésticas.
Sem motivos para sair da casa da mãe
— Nunca tive a vontade de morar sozinha, não sei se eu me daria bem, eu gosto de ter gente por perto.
A frase é da professora Marina Regal Comandulli, 47 anos. Ela, que dá aulas em uma escola da rede privada de Caxias do Sul, não vê motivos para sair da casa mãe, a aposentada Vera Regina Regal Comandulli, 74.
Somos muito amigas, sempre fomos muito amigas.
VERA REGINA REGAL COMANDULLI
mãe de Marina
Há 43 anos elas moram em um apartamento na região central de Caxias. O pai de Marina faleceu há 18 anos e, nesse período, ela também viu o irmão mais velho e o mais novo saírem de casa. Mesmo assim, afirma que essas situações nunca se tornaram em um peso para suas decisões.
— Eu brinco com a minha mãe que pago aluguel aqui. Eu ajudo, com certeza, com o condomínio, algumas contas, comprar comida. Nunca pensei: "não vou porque não tenho dinheiro". Foi algo de ficar, ficar com a família mesmo — explica.
Mãe e filha se entendem facilmente. Elas têm acordos informais sobre ajudas financeiras e até mesmo de saúde. É claro que por vezes acabam tendo discussões, mas rapidamente são resolvidas. Elas também têm a companhia do Thor, um cão da raça shih tzu, de dez anos.
Mesmo morando com a mãe, Marina diz que isso não atrapalha a sua independência. Já teve dois relacionamentos mais sérios, e não sente que eles tenham sido impactos por ainda residir com a mãe.
— Somos muito amigas, sempre fomos muito amigas. Os irmãos diziam: "ela é a filha preferida". E eu dizia: "com certeza, é a única filha preferida que eu tenho"! — brinca Vera, reforçando a boa relação que mantém com a filha.
Sabe o que é a Geração canguru?
Um termo tem ganhado cada vez mais força no Brasil nos últimos anos é “geração canguru”. Refere-se a pessoas entre 25 e 34 anos que seguem morando com os pais e só pensam em sair quando se sentem mais seguros.
Segundo dados do IBGE, um a cada quatro brasileiros dessa faixa etária, ainda permanece residindo com os pais. A proporção é de 60% homens e 40% mulheres.
A psicóloga relata que, em alguns casos, o fenômeno também conhecido como "ninho cheio", pode ocorrer por praticidade e comodismo por parte dos filhos, independentemente das condições financeiras por eles conquistadas. Por isso, ela alerta:
— Quando o ninho (familiar) deixa de ser um ninho e passa a ser uma gaiola, em que pais e filhos muitas vezes se sentem engaiolados dentro dessa dinâmica, começa a gerar incômodos e sofrimentos, levando muitas pessoas a desenvolverem crises familiares.
O segredo para ajustar essa engrenagem familiar é o diálogo, reforça Fabiana Verza.