O primeiro mês de 2023 se foi. Além de ser o abre alas do novo ano, janeiro é conhecido ainda como o mês da Visibilidade Trans. E o dia 29 de janeiro foi escolhido para marcar o Dia Nacional da Visibilidade Trans, no Brasil. A data não passou em branco em Caxias do Sul. No último dia 29 foi realizada a 1ª Marcha do Orgulho Trans, evento, aliás, pioneiro no Rio Grande do Sul.
— O objetivo da marcha é organizar o movimento trans da região e reivindicar os direitos da nossa comunidade, que estão sendo constantemente negados no Estado do Rio Grande do Sul. O significado da atividade é mostrar que existimos e resistimos — aponta Cleo Araujo, diretora da ONG Construindo a Igualdade, uma das organizadoras do evento e a primeira trans empossada vereadora em Caxias.
Nessa reportagem a seguir, mulheres e homens trans chamam atenção para o fato de que é, sim, importante que exista um mês para marcar e pontuar as pautas relevantes e urgentes da comunidade trans. Contudo, eles gostariam que a sociedade fosse mais sensível a estas questões o ano todo, e não apenas em eventos sazonais. E pontuam ainda questões prioritárias como a instalação de um centro de referência em saúde para homens e mulheres trans, pauta de muitos anos e que ainda não encontra um caminho possível em Caxias.
Até janeiro de 2024, há um longo percurso, mas Yan Scherer revela como gostaria de ver a cidade que escolheu para morar:
— Espero que daqui um ano possamos ver muito mais pessoas trans e não apenas na Marcha. Eu quero muito mais pessoas trans trabalhando, quero ver escolas e empresas, com seus grupos equipes apoiando, quero que saiamos das páginas policiais e tenhamos lugar de destaque. Que daqui pra frente tenhamos visibilidade não apenas em um mês. Provavelmente nós não vamos entrar em um livro de história, mas nós estamos fazendo história — diz Yan, que se reconhece como mulher trans, foi Miss RS Diversidade 2019/2021 e, atualmente, é Orientadora no Instituto Mix de Profissões, a única mulher trans na rede de 600 escolas no Brasil.
"Eu já nasci um homem trans"
O caxiense Shai Kolcholinski, 40 anos, carrega mais do que títulos de beleza, ele é empresário no ramo de Tecnologia da Informação. Miss Trans Sul 2023, foi um dos apresentadores da Marcha do Orgulho Trans em Caxias, ao lado da Yan Scherer. Comunicativo, Shai reconhece não ser ainda um ativista, mas intensifica sua representatividade nas redes sociais. Só no Instagram ele tem quase 7 mil seguidores, atualmente.
O único vestido que usei foi no aniversário de primeiro ano de idade.
SHAI KOLCHOLINSKI
— Desde os cinco anos eu uso cabelo curto, brincava de bolinha de gude, andava de bicicleta, lutei Taekwondo (na categoria feminina), nunca namorei um homem, ganhei a minha primeira cueca aos 14 anos, da minha avó. Então, não lembro de uma versão minha maquiado e de cabelo comprido. O único vestido que usei foi no aniversário de primeiro ano de idade — brinca Shai.
Atualmente, ele se relaciona com uma mulher e revela que há quem duvide que ele é um homem trans.
— Eu já nasci um homem trans. Não me descobri na adolescência ou na fase adulta, pode acontecer, claro. Mas comigo foi muito natural, desde criança.
Apesar disso, Shai diz que sua mãe ainda o reconhece como filha.
— Minha mãe até hoje pensa que eu posso reverter. De todas as pessoas da minha família, minha mãe é a única que erra o meu pronome. Eu fui ver a minha avó no hospital, outro dia, e quando minha mãe me viu chegar, ela disse: "Ah, chegou a minha filha. Olha vó, a tua neta". E as enfermeiras me olhando e achando estranho. Eu sempre fui o que eu quis ser.
O valor do apoio dentro de casa
Diversos relatos de jovens que procuram os pais para revelar que se são gays, lésbicas ou trans, explicam que a aceitação em casa faz toda a diferença. Pois, em alguns casos, a repulsa chega a gerar o rompimento das relações e, em grande parte dos casos, a expulsão de casa. Felizmente, com Nicole Rosa foi diferente. Nicole teve a primeira acolhida em casa, com gestos de respeito e compreensão.
Pra mim não importa a questão de gênero, importa o amor que tenho por ela. É um amor que sempre vai existir.
MIRZA ROSA
mãe da Nicole
— Se a minha mãe sempre soube eu não sei. Me assumi pra família não tem nem um ano, mas desde 2018 eu já tinha me assumido para os meus amigos. Só que viver às escondidas estava me afundando na depressão. E eu queria assumi pra minha família, porque, quando a gente sai de casa é apedrejada, então, se não temos o apoio da nossa própria família, de onde é que vamos ter coragem para sair na rua? — revela Nicole, 21 anos, que atualmente trabalha em um estúdio de fotografia.
Numa madrugada, em um período delicado, de conflitos internos pelos quais passava a Nicole, a mãe dela, Mirza Rosa, resolveu chamar a filha pelo WhatsApp para conversar.
— Era uma madrugada, ela não estava em Caxias e estava dizendo umas coisas que eu não estava gostando, inclusive sobre suicídio. Aí eu disse assim: "Tu é a minha filha ou não é?". Porque eu sabia que a Nic era uma pessoa pra ela e os outros enxergavam ela de outra maneira. Só que eu nunca invadir esse espaço. Eu sabia e eu respeitava. Mas a abertura tinha de vir dela — reconhece a mãe.
A ativista Cleo Araujo, diretora da ONG Construindo a Igualdade, que acolhe e dá suporte a pessoas trans que muitas vezes são expulsos de caso, diz que se houvessem mais mães como a da Nicole, nem precisaria existir a ONG.
— Pra mim não importa a questão de gênero, importa o amor que tenho por ela. É um amor que sempre vai existir. Ainda, de um modo geral, as pessoas pensam que a felicidade dos filhos é viver exatamente nos termos que a sociedade deseja ou como os pais projetam. As pessoas se descobrem e tem todo o direito de ter a vida que elas desejam ter. Por isso, estou sempre com a Nic e, acho, eu era a única mãe com a filha na Marcha — diz Mirza.
Nicole pretende voltar em breve a cursar Psicologia, pois havia deixado de ser estudar por um tempo:
— A Psicologia me ajudou muito. Eu quero poder disponibilizar isso para outras pessoas LGBT que não têm condições disso, porque eu quero ajudar as pessoas assim como fui ajudada através da Psicologia.
Porta que fecha, janela que se abre
Depois de conquistar experiência no ramo da moda, tendo atuado em lojas e boutiques durante 10 anos, sendo que nos últimos seis havia sido como gerente, assim que Yan Scherer decidiu inicia a sua transição, inclusive com terapia hormonal, ela foi fortemente confrontada.
— Minha transição é bem recente. Faz um ano que me assumi como mulher trans. Eu tenho experiência na moda. E quando eu assumi a minha transição eu fui demitida onde eu trabalhava. E foi com as seguintes palavras: "Se tu quer ser um traveco tu vai ser da porta pra fora. Porque aqui dentro tem de ser um "menino" porque é o que combina com essa boutique". Então eu disse não, e saí de lá desesperada — revela Yan, 28 anos, recém contratada pelo Instituto Mix de Profissões, em Caxias.
Provavelmente nós não vamos entrar em um livro de história, mas nós estamos fazendo história.
YAN SCHERER
—Estou no meu primeiro mês e não tive nenhum problema em ser respeitada por ser uma mulher trans. Passei por um processo seletivo e no Instituto Mix priorizaram meu profissionalismo, independentemente de ser eu trans ou não. Desde o começo fui tratada com mulher.
Yan diz que um dos espaços na cidade onde ela se sente à mais vontade e segura é a Level Cult. Se por um lado a Level é reconhecida como uma casa noturna, por outro, reforça Yan, é um espaço de acolhida, amparo, compreensão, e troca de ideias para quem se reconhece LGBT.
— Quando assumi a minha transição, todas as fragilidades da minha vida vieram à tona. Porque tem o preconceito que é muito mais agressivo. E tem a questão hormonal também, com prescrição médica ou não, ele vai ser uma bomba no teu corpo. E é uma TPM 24h.
Após esse processo delicado, Yan revela que, atualmente, tem sido acompanhada por uma psicóloga e a Marcha do Orgulho Trans acabou se tornando uma oportunidade para a sua autoafirmação:
— A minha primeira aparição pós-transição foi na Marcha. Eu estava insegura porque eu não estava me sentindo bem e fiquei preocupada sem saber o que tinha de dizer. E quando eu peguei o microfone pra falar, eu pensei comigo mesma: "Agora eu vou mostrar a mulher que eu sempre fui e nunca tive a coragem de ser".
— Eu disse pra minha psicóloga na terça-feira (dia 31 de janeiro, dois dias depois da Marcha): "Aquilo foi um marco decisivo na minha vida. Agora ninguém mais me para". Porque, até então, eu estava existindo. E a partir da marcha eu passei a viver. O lema da minha vida é: "Eu sou a minha própria boneca que me negaram na infância".
Olhar atento à diversidade
A caxiense pedagoga Marcie Vieira, 38, observa e vivencia os desafios na área da Educação, que, segundo ela, precisa de atenção, compreensão e entendimento por parte do poder púbico e também da sociedade de um modo em geral.
Por ser pedagoga, ela diz que há um conflito na maneira como a legislação encara a inserção de diferentes públicos, como jovens e crianças com deficiências (PCDs), mas não olha com a mesma atenção para as pessoas que se reconhecem LGBT.
— É estranho perceber que existe a lei que obriga a presença de pessoas com deficiências na escola e que os professores se capacitem, e que tu tenhas uma aproximação com Libras, mas isso precisa estar numa lei para garantir. Ou seja, uma lei para garantir que o professor será capacitado e uma lei para garantir que o aluno será atendido e poderá conviver com os demais colegas. E aí tu pensa que não existe nenhuma obrigatoriedade ou orientação para se trabalhar com questões de sexualidade e gênero em sala de aula — pondera.
Marcie aborda a complexa rede de assuntos que se bifurcam e se entrelaçam, e que estão presentes na sociedade, quanto às identidades e gêneros, mesmo que a contragosto de algumas pessoas, quando é convidada para ministrar palestras em Caxias.
— O que eu faço, atualmente, e é um campo importante pra mim, é realizar palestras sobre identidades e gêneros em lugares onde entendem que é importante que eu esteja lá. Já trabalhei, por exemplo, com os alunos do 3º ano do Ensino Médio, porque a professora de Língua Portuguesa entendia que era importante que os alunos estivessem familiarizados com essas questões do universo LGBT, caso o Enem trouxesse alguma questão dessa temática.
Mas para além disso, ela revela que há outro propósito implícito nessa atividade, que é extracurricular, porque acaba indo de encontro aos anseios pertinentes nessa fase escolar, de uma série de jovens e adolescentes:
— Eu entendo o peso transformador para aquele aluno que era eu na época da escola, e quando essa pessoa me vê ali, ao acabar a palestra, quando todo mundo foi embora, essa pessoa me abraça com o olho cheio de lágrima... Então, entendo a importância dessas palestras — avalia Marcie.