De tão incomuns para quem observa, são cenas até difíceis de descrever: cinco mil pessoas de quase 80 nacionalidades diferentes, convivendo e conversando numa profusão de sinais, alcançando um nível de entendimento igualmente difícil de relatar para quem se expressa pela fala e esbarra nas limitações da linguagem verbal. Visitar os Pavilhões da Festa da Uva, convertido no Centro Olímpico da 24ª Surdolimpíadas, em Caxias do Sul, permite experimentar um nível de fraternidade entre etnias e resgatar uma esperança de união que talvez só o Fórum Social Mundial, sediado pela última vez em Porto Alegre no já distante 2005, tenha apresentado em terras gaúchas.
Muitos dos atletas e demais participantes do evento vivem sua primeira Surdolimpíadas, enquanto uma parte igualmente considerável esteve na última edição, realizada em Samsun, na Turquia, em 2017. Poucos são os que acumulam mais do que duas edições no currículo, razão para que o encantamento com a experiência internacional seja visível. Para todo lado que se olha há uma selfie sendo tirada ou uma videochamada conectando a familiares que podem estar nos Estados Unidos, no Quênia ou na Eslovênia. Certos hábitos são realmente universais e a cultura digital é um deles.
Também é universal o gosto por levar uma lembrança, um souvenir do país visitado, e isso explica o movimento da Gift Shop, a loja de presentes instalada em um dos pavilhões. Entre os produtos licenciados estão camiseta, moletons, chaveiros, canecas, bottons e cuias (que despertam curiosidade de boa parte dos estrangeiros). Na tarde da última terça-feira, a equipe alemã de karatê agitou a loja atrás de algumas lembranças para levar na mala.
– Vamos presentear nossos colegas que treinam com a gente e ficaram em casa. São eles que nos ajudam a estar preparados para competir – explica a treinadora, Julia Seeberger.
A treinadora, que competiu por 40 anos e estreia no comando do time de karatê, considera que os Jogos Surdolímpicos são sobre competir, mas também são sobre reforçar vínculos:
– É como se todo mundo já fosse amigo de todo mundo. Nós tivemos essa sensação entre todos os competidores do karatê, e agora passamos a sentir o mesmo encontrando os atletas de outros esportes. Acho que o Brasil é o lugar perfeito para voltarmos a exercitar essa cordialidade presencial.
Nem só a loja de presentes vai ganhar com a vontade dos estrangeiros de levar uma lembrança de Caxias do Sul para os afetos que os aguardam no país de origem. O chefe da delegação venezuelana, Jose Gregorio Ponce, que na tarde da última terça-feira deixava o refeitório do Centro Olímpico com uma sacola cheia de marmitas, quer levar algo mais genuinamente local:
– Ouvi dizer que aqui é uma região que produz uvas e também ótimos vinhos. Qual tu me recomendas? – perguntou à reportagem.
O venezuelano também se disse encantado com o pouco que pôde conhecer da gastronomia local.
– O salame, como pude comprovar, é uma especialidade – elogia, como se salivasse pela iguaria.
Por falar em culinária local, poucos se sentem tão em casa quanto os italianos. Membros da delegação comentam que, ao identificar sua nacionalidade, pelo nome do país e pelas cores do agasalho, o carinho que recebem dos caxienses é imediato.
– Desde o hotel até os motoristas de táxi, muitos caxienses veem nosso uniforme e dizem que sabem falar italiano. A gente já recebeu a recomendação de alguns restaurantes muito bons, mas, como os primeiros dias foram muito chuvosos, a preferência por enquanto foi por ficar no hotel – diz Federico Paria, um dos dirigentes da delegação.
Surdo, Federico fala com a reportagem através da intérprete, Paola Bonifazi. Ele elogia o fato do Brasil e de Caxias do Sul terem abraçado a realização dos Jogos:
– Não é fácil organizar um evento desse porte, principalmente em meio a uma pandemia, e nós somos muito gratos aos brasileiros por terem aceitado esse desafio.
De toda a área de convivência montada nos Pavilhões, onde as delegações têm à disposição lavanderia, casa de câmbio, farmácia e outros serviços, é numa espécie de lounge, ou área de descanso, que as conversas rolam mais soltas. Muitos sentam ou deitam nos puffs espalhados pelo quadrilátero diante de um telão que exibe as competições. Na última terça, o corredor coreano Mooyoung Lee, que é surdo, mas consegue falar em diferentes idiomas, interrompeu o descanso para falar sobre a experiência de viajar desde o continente asiático para representar seu país. Pontuou que a Surdo, além de trazer à tona os valores intrínsecos ao esporte e de evidenciar a comunidade surda, outro fator que une os participantes é a solidariedade com o povo ucraniano, cuja delegação é uma das mais numerosas.
– É muito simbólico nós estarmos reunidos e termos a chance de demonstrar aos ucranianos, que tiveram seu país invadido e enfrentam uma guerra muito dura, que nós estamos unidos e nos importamos – destaca o coreano.
Identificados pela alegria
Ainda na primeira semana da Surdolimpíadas, muitos participantes ainda guardavam, fresquinhas na memória, as lembranças e impressões da cerimônia de abertura do evento, que lotou o Ginásio do Sesi, no último domingo.
Além dos momentos tradicionais de aberturas de Jogos Olímpicos, como o desfile das delegações e o acendimento da tocha olímpica, as apresentações artísticas também chamaram a atenção dos visitantes, na mesma medida em que a alegria de diversas delegações encantaram o público convidado.
O técnico da equipe de atletismo do Gabão, Mouyeme Onanga, comentou que, embora a dimensão do país-sede e de seu país natal seja incomparável (o Gabão tem pouco mais de 2 milhões de habitantes), os dois povos se assemelham pela espontaneidade:
– Depois que nossa delegação passou (no desfile) eu sentei e assisti todas as outras. Os espanhóis, os brasileiros…são povos que a gente se identifica e que contagiam todo o ambiente com sua alegria. O respeito pelo espírito olímpico está acima de tudo.
Entre os 77 países que participam dos Jogos, no entanto, talvez nem mesmo a nação anfitriã demonstre tanta felicidade e desfrute do evento com tanta intensidade quanto o México. Desde a abertura, em que alguns atletas chegaram a desfilar com enormes chapéus ou com as famosas máscaras de lutadores, onde há mexicanos a certeza é de que há sorrisos e brincadeiras.
– É diferente ver um brasileiro ou um mexicano e ver um europeu, um asiático. A gente gosta de gritar, de festejar, de brincar. Além do idioma ser mais parecido, é a forma como nos expressamos que nos aproxima. E aqui em Caxias do Sul estamos ainda mais felizes, porque é a primeira vez que o México participa com uma grande delegação. Somos 61 pessoas, e isso nos deixa muito mais à vontade – observa Jorge Jonathan Montes, diretor-técnico da Federação Mexicana de Esportes para Surdos.
A 24ª Surdolimpíadas segue até o próximo dia 15. As provas são realizadas em diversos pontos de Caxias do Sul e a programação, assim como a cobertura completa, pode ser conferida no site do Pioneiro em GZH e na sessão de esportes do Pioneiro.