rocar a sala de aula pelos encontros virtuais com colegas e professores na plataforma de comunicação Google Meet não foi uma tarefa fácil para Marina Boss Cassini, 15 anos. Forçada a encarar o ensino remoto com a suspensão das aulas presenciais por conta da pandemia, a estudante do primeiro ano do ensino médio do Cetec de repente se viu em apuros para assimilar os conteúdos e repetir o bom desempenho que teve ao longo do ensino fundamental. As notas baixas, além de preocupar, feriram a autoestima e provocaram um episódio de estresse que fez a menina recorrer à terapia, há cerca de um mês.
– Tive muita dificuldade para me concentrar na aula remota. Precisa ser muito mais organizada do que eu sou. Se estou na sala de aula, meu foco está no que está acontecendo. Em casa são muitas coisas que me distraem. Quando passei a não entender mais nada do conteúdo e minhas notas começaram a baixar, passei a me sentir burra e sem vontade de estudar, até o dia que surtei e fui procurar ajuda. Ninguém gosta de se sentir assim – conta Marina.
Outro fator que a jovem, moradora do bairro Panazzolo, relata como um fator que a desmotivou é o cansaço. A rotina da aula virtual, que na sua escola segue os mesmo horários do ano letivo presencial, representa uma carga muito maior quando se está em casa, sozinha diante de uma tela.
– É um pouco monótono e cansativo, principalmente nos dias em que são dois turnos na frente do computador. Chega uma que hora eu simplesmente desisto de conseguir prestar a atenção na aula – admite a estudante.
Problemas como os que Marina apresentou têm sido comuns durante a pandemia e preocupam as escolas e instituições voltadas para a educação, seja na rede privada ou na pública. Diante da demanda crescente, a Secretaria Municipal de Educação elaborou questionários para aplicar a estudantes responsáveis, com perguntas que partem do acesso ao conteúdo, mas também incluem questões mais subjetivas, como as angústias e novos interesses despertados pelo período de isolamento social. As escolas devem finalizar a aplicação até o dia 4 de setembro.
– Uma das formas da aprendizagem acontecer é pelo desejo, pelo prazer, pelo engajamento. Nós queremos entender, especialmente neste período de ensino remoto, como ativar essa vontade de aprender, quais são os assuntos que estão chamando a atenção deles, a fim de tentar mobilizá-los para o ensino à distância, que é a necessidade desse momento. Embora o professor saiba aquilo que é importante ensinar, tem o nosso lado de atender o que o aluno espera da escola – avalia a coordenadora pedagógica da Secretaria Municipal de Edcuação, Carla Zanette.
Para a psicóloga Patrícia Luiza Prigol, responsável por atender a estudante Marina Boff, o que ajuda a explicar a dificuldade no aprendizado remoto, especialmente entre adolescentes, é o choque da ausência da escola como um espaço de formação da identidade autônoma, que se dá fora do controle dos pais e no contato com outros jovens.
– Até a pré-adolescência a pessoa é muito moldada pelo convívio familiar. É na adolescência que ela intensifica seu processo de individuação, de diferenciação do meio familiar e consolidação do seu caráter único. Quando a pandemia impõe a esse jovem a necessidade de estar preso em casa, distante dos colegas, isso provoca um desequilíbrio. No caso da Marina, o bom desempenho escolar é parte importante da validação da personalidade dela. E quando isso foi afetado, influenciou diretamente na autoestima e na motivação para estudar – explica a psicóloga.
Diante de outra preocupação revelada pela paciente, a dificuldade de se concentrar longe da sala de aula, a psicóloga acrescenta que é próprio da idade a necessidade de ter a figura do professor e do colega como alguém que ajude no aprendizado. A organização para estudar por conta própria, de forma solitária e regulando os próprios horários, é algo que vem com a maturidade:
– A pandemia trouxe antecipadamente a necessidade de uma atitude que eles não estão preparados a ter ainda. Os adolescentes não têm a maturidade emocional, nem a autonomia para a pesquisa, para o estudo de forma mais autogerida. Na universidade, o professor, com seu arcabouço teórico, serve mais para consultas. Na escola, o estudante sente mais necessidade da presença física do professor e dos colegas para estimular o seu aprendizado.
As sessões com a psicóloga já surtem efeitos. Marina ainda sente a ausência da escola, mas passou a se cobrar menos e aceitar melhor suas inquietações. Encontrar um espaço para falar e ser ouvida sem julgamentos foi fundamental. Já se sente mais motivada. Não quer, sobretudo, que um ano atípico possa prejudicar toda a sua escalada no ensino médio.
– Na escola, tudo o que tu aprendes é base para o que tu terás de aprender depois. Minha preocupação é a de que essa dificuldade que sinto agora reflita no segundo ano, depois no terceiro, como um efeito bola de neve. Mas hoje já me sentindo melhor comigo mesma, recuperando a vontade aos poucos e aprendendo a não me abalar tanto – destaca a jovem, que sonha em fazer intercâmbio no Canadá após concluir o ensino médio.
Foco para buscar um ensino melhor
Moradora do bairro Kayser e estudante do 9º ano da Escola Municipal Luciano Corsetti, em Caxias, Tauane Cardoso, 14, diz ter tirado de letra a necessidade de estudar em casa. Não que deixe de sentir falta do convívio com os colegas e professores, mas aprendeu a se organizar para tirar o melhor proveito desse período. Ao invés das aulas em tempo real, na sua escola os conteúdos são gravados e postados em um portal virtual, que ela acessa no horário mais conveniente.
– Eu acesso os conteúdos, faço resumos, tiro as dúvidas com os professores e vou atrás dos conteúdos complementares que eles indicam. Na escola meu turno é o da manhã, mas em casa prefiro estudar mais pro final da tarde, quando sou mais produtiva – conta a menina, que sonha em ser dentista.
A dedicação tem a ver com os objetivos para o ano que vem. Tauane quer ter as melhores notas possíveis e aprender o máximo para tentar uma bolsa de estudos em escola particular no ensino médio. Também irá prestar a prova para tentar entrar no curso técnico-integrado do Instituto Federal. No momento, a preocupação, além dos estudos, é com a própria pandemia. Diz ser aquela amiga chata, que puxa a orelha dos que não querem respeitar o distanciamento, e considera que não é o momento para retomar as aulas presenciais:
– Por ser estudante, sei como é uma sala de aula e como seria se as aulas presenciais voltassem agora. Ninguém iria respeitar distanciamento, nem manter a máscara o tempo todo. Seria um risco para todos.
Saudade da profe e dos colegas
Na zona rural, onde a maioria das escolas adota o modelo de classes multisseriadas, o vínculo entre professores e alunos costuma ser ainda mais forte do que em escolas maiores. É o caso de São Valentim da 6ª Légua, no interior de Caxias do Sul. Desde março, os 13 alunos da Escola Municipal São Valentim, que atende do 1º ao 5º ano, recebem as tarefas para fazer em casa.
Entre as alunas mais dedicadas da escola está Isabele Vergani, 11. Uma das três estudantes do quinto ano da escola de São Valentim, a menina lamenta não ter mais a companhia dos colegas para brincar no recreio e também da professora, cujas explicações tornavam mais fácil aprender as matérias e tirar dúvidas.
– Como nossa escola é pequena, todo mundo brinca junto no recreio. Sinto muita falta disso. Em casa tem dias que só quero andar de bicicleta, não dá vontade de fazer as tarefas. Mas o que mais sinto falta é a explicação da profe. Aprender só com as folhinhas, sem ouvir as explicações e sem tirar dúvidas, é mais difícil – diz.
Isabele também sente que, com o ensino remoto, a carga de atividades é muito menor do que a da escola:
– O conteúdo que recebo para uma semana é o que eu faria em um ou dois dias de aula.
Segundo a coordenadora da escola, Luciane Francischetti, equalizar as demandas para alunos com diferentes ritmos de aprendizado é um dos desafios que o ensino remoto impõe.
– A gente precisa dosar o nível de exigência para todos, de modo que todos possam aprender e não se sintam cansados. No começo da pandemia recebemos algumas reclamações de pais que consideravam que a carga de atividades estava muito alta, por isso diminuímos o ritmo. O objetivo é que os exercícios proporcionem aprendizagem, mas que ao mesmo tempo os alunos se sintam bem para fazê-los. É algo que ainda estamos encontrando a melhor forma de todos se sentirem bem atendidos – destaca.
Filhos descrentes, pais estressados
Compreender e atacar os problemas provocados pela pandemia é como ter de trocar o pneu com o carro em movimento. No setor de atendimento psicossocial da Secretaria Municipal de Educação, em Caxias do Sul, entre as principais demandas que as escolas fazem chegar ao setor está a dificuldade em fazer os estudantes – e às vezes também as famílias – terem consciência da importância do ensino à distância.
– A gente observa, em visitas e no contato com os familiares, que muitos alunos não acreditam nessa forma do estudo remoto. Eles acham que é perda de tempo, que não vão conseguir aprender. Mas há outras questões por trás. Muitas vezes identificamos que a família não tem computador, que dispõe de um único celular para mais de um irmão, ou que os pais não têm tempo para buscar e devolver as atividades impressas na escola. Quando as famílias têm dificuldade para auxiliar seus filhos, a gente pede que façam contato com os professores de referência, para que eles possam tentar ajudar – destaca Celita Zandonadi, gerente da equipe de atendimento psicossocial da Smed.
Outras situações que preocupam têm relação mais direta com os efeitos da pandemia. Uma é o fato de muitos estudantes perderam familiares por conta da covid-19. Outra, a sobrecarga emocional que recai sobre os ombros dos responsáveis:
– Essa é uma realidade que está impactando conforme a pandemia avança. Casos de pais ou, muitas vezes, avós que eram o suporte da família, e que morreram de covid-19. Isso mexe profundamente com o emocional das crianças. Também há o caso de pais que estão estressados por conta de toda a situação, e isso acaba interferindo na relação deles com os filhos e com a escola. Às vezes chega a desencadear problemas de saúde mental – ressalta Celita.
Na última sexta-feira, a equipe de atendimento psicossocial, em parceria com a Comissão Interna de Prevenção a Acidentes e a Violência Escolar (Cipave) e equipe da Educação Especial da Smed, lançou a cartilha Comunidade Escolar em Tempos de Coronavírus, que reúne informações e orientações para alunos, responsáveis e professores. O material pode ser acessado no site da prefeitura, ou diretamente neste link.