Além de rechear o imaginário ocidental com a paisagem do inferno, Dante Alighieri praticamente inventou o purgatório como um espaço de expiação das almas cujos pecados não foram tão fatais a ponto de as conduzirem à danação infernal. Dante concebeu o Monte Purgatório como uma montanha de caminhos espirais ascendentes. Essa imagem, senhores, convida a um resgate dos tantos problemas que afligiram a população em 2019, causados, muitas vezes, por pecados capitais como avareza, preguiça, ira e soberba.
Dante pescou das mentes aflitas dos passantes queixas envolvendo carências ocasionais ou estruturais da cidade: falta de médicos nas unidades de saúde, vagas insuficientes na educação infantil, crianças demorando na volta às aulas por falta de transporte ou tendo de estudar em uma capela mortuária, buracos e mato tomando as estradas, policiamento comunitário ameaçado por falta de efetivo. Foram queixas pontuais do comum cotidiano, não tão graves quanto a do doente que precisa esperar um ano para consultar um proctologista pelo SUS. Mas são suspiros legítimos de um povo que aspira ao paraíso da plena cidadania.
O purgatório do poder público de Caxias do Sul se acentuou na polêmica tentativa de retirar o município da Região Turística da Uva e do Vinho para inseri-lo, sem sucesso, na mais badalada Região das Hortênsias. O resultado do empenho? Tensão e desgaste. Que aumentaram com as cobranças do Estado sobre a ocupação e a preservação do complexo arquitetônico da Maesa, repassadas ao município e ainda lentas e indefinidas. Que aumentaram também com mais um pedido de impeachment de Daniel Guerra, que culminou no afastamento do prefeito após sessão histórica na Câmara de Vereadores, e com muitas críticas às suas sucessivas viagens.
Pois é, senhores, se não chega a ser o pesado inferno, nem por isso o purgatório é leve. Medidas do poder público seguiram gerando outras tensões na área cultural. Como a quase morte do Financiarte, fundo destinado a financiar projetos artísticos e que foi praticamente nulo em 2019. Ou mais um desprezo ao Carnaval de rua, com o silenciamento forçado das escolas de samba da cidade. Outras críticas vieram da restauração do Monumento à Itália, na Praça João Pessoa, que deixou visível a cicatriz da quebra havida no basalto em forma de bota.
Nem todo pecado, no entanto, tem sua devida culpa facilmente atribuída a certo pecador. De quem seria a culpa pelo roubo da placa de bronze do busto do patriarca da indústria Abramo Eberle? De quem foi o descaso sobre um busto encontrado e do qual ninguém descobriu sequer a identidade do homenageado? A quem se queixar da queda de pedras que interditou trecho da RS-122? Ou do estranho índice de um telefone celular para cada quatro presos no Presídio do Apanhador? E quem pode desatar facilmente os nós que cercam a construção de um novo aeroporto? Mas, assim caminha a humanidade, senhores, entre queixumes cotidianos sobre problemas que podem – e devem – ser resolvidos.
Paraíso
Já foi dado o spoiler de que essa crônica, seguindo a visão de Dante, terminaria louvando o amor que move o Sol e as estrelas. O paraíso encerra a trilogia poética sobre a jornada de Dante pelo mundo espiritual, guiado nesta parte final por Beatriz, seu amor platônico. Dante visita as nove esferas celestiais – associadas aos sete astros visíveis da astrologia e às estrelas mais distantes –, conhecendo as venturas que conduzem o homem ao melhor de si mesmo e ao transcendente. Aqui, exaltemos o que tocou e encantou o espírito coletivo.
Em 2019, Dante alegrou-se com mais uma Festa da Uva. Não quis saber de orçamentos, faturamentos e comparações, mas somente do significado maior de uma festa que exalta a história e a identidade desse povo. Dante e Beatriz gostaram de ver o desfile da festa se encerrar em coreografia, ali, no coração da praça. Também artista, Dante vibrou com as comemorações em torno dos 30 anos da escola Tem Gente Teatrando e os 15 anos do Grupo Ueba. Sorriu feliz ao lembrar os 18 anos do Centro de Cultura Ordovás, com seus múltiplos espaços para a arte e a diversão, enquanto testemunhou o surgimento de outros palcos para tal nobre fim.
Ainda na visão da arte como asas do espírito, Dante aplaudiu, o mural gigante realizado pelos grafiteiros Fábio Panone e Henrique Padilha na Rua Garibaldi; a participação da banda caxiense Catavento no prestigiado festival Lollapalooza, em São Paulo, e o prêmio nacional ao rapper Chiquinho Divilas pelo Hip Hop nas Escolas. O espírito caxiense voou alto também no vôlei do caxiense Fernando Cachopa, que ajudou a seleção brasileira a garantir vaga para a Olimpíada de 2020, no comando de Tite na vitória do Brasil na Copa América, no título do Interior conquistado pelo Caxias no Gauchão, e nas ascensões do Juventude à Série B do Brasileiro e de Esportivo e Brasil-Fa, no cenário estadual.
Ah, senhores, e como não louvar a manifestação da solidariedade como outra centelha divina no humano? Neste ano, diante das dificuldades estruturais por que passa o tradicional Instituto Cristóvão de Mendoza, ex-alunos e a comunidade caxiense se juntaram para um mutirão de limpeza e reparos externos. Foi uma linda demonstração de amor a uma história e à educação. Em união semelhante de corações, músicos de várias partes se juntaram em shows de apoio financeiro ao violonista argentino Lucio Yanel, radicado em Caxias e que enfrenta dificuldades no tratamento de saúde da esposa. E não podemos deixar de lembrar as aplaudidas práticas de pacificação nas escolas, desenvolvidas em Caxias e Bento, que neste ano chamaram a atenção da ONU.
Imortal desde a Idade Média, Dante Alighieri nos ensina o firme enfrentamento das dores mundanas sem jamais perder de vista a redenção final. Como já dito, a chegada de Beatriz (Beatrice em italiano) à Praça Dante Alighieri deixou o poeta mais esperançoso no destino dos homens. Então, que possa o amor, em todas as suas nuances, curar feridas, desfazer desavenças e afinar os corações em direção ao brilho máximo do humano. Muitos problemas virão no próximo ano, mas também luzes e belezas. Palavras de Dante, acreditem.
Assim, senhores, vamos encerrar nossa crônica alterando a máxima citada no portão do inferno, que aqui fica assim: Abraçai toda esperança, vós que entrais em 2020.