Noite de inverno na Serra Gaúcha combina com sopa de agnolini e vinho, de preferência dessas garrafas sem rótulo. Pois foi esse o cardápio oferecido pelo produtor Claudio Troian ao poeta português Gonçalo Ferraz, que lança neste sábado, a partir das 10h, o livro de estreia Palavras com som, no Arco da Velha Livraria & Café, em Caxias do Sul.
À mesa, além da sopa e do vinho, Gonçalo discorreu sobre sua vida itinerante, de quem saiu de Lisboa em 1996 e só visita Portugal à passeio. Depois de temporadas em Nova York e Manaus, o poeta, que é doutor em biologia e professor da UFRGS, está a morar em Porto Alegre, um dos berços açorianos deste lado de cá do oceano Atlântico, desde 2013.
Gonçalo participou na última segunda-feira, dia 17 de junho, de mais uma edição do Órbita Literária, que é por assim dizer, um dos muitos navios de guerrilha cultural, cujas armas disparam palavras, em prosa e verso. É a segunda vez do poeta cá em terra caxiense, e veio justamente por causa do Órbita, criado em 2012 e que alcançou a marca de 283 encontros.
O jazz, escolha de Troian, compôs uma bela trilha sonora para a entrevista, que vez ou outra, era pontuada por poemas de Palavras com som, e do próximo livro, ainda sem data definida, e título provisório de Compras do mês. Os versos de Gonçalo são cunhados a partir da observação do cotidiano. Há quem despreze esse "olhar da rua", porque entende ser banal. Gonçalo responde, com poesia:
"Você ri, você chora, você perde, você ganha, você esquece... e no fim do dia você topa com um monte de louco sentado no chão de uma praça, que sente tudo o que você sente e que expressa sua alegria falando e escutando poesia".
— O livro foi gestado em saraus e slams, em Porto Alegre. Os versos vêm muito do exercício de procurar uma voz, em que eu, como português, pesquisador e branco, consiga dizer alguma coisa que interesse em um ambiente muito diverso em que eu cresci — revela Gonçalo.
Esse flerte com saraus e slams começou em 2016. O primeiro deles, é inesquecível, conta Gonçalo, porque o conduziu para um encontro arrebatador com o slam.
— Eu estava em casa, sozinho, sem ter o que fazer, e vi um anúncio de um sarau na Cidade Baixa (em Porto Alegre). Fui até lá e li uma poesia do José Régio (pseudónimo do escritor José Maria dos Reis Pereira). Lembro que uma amiga, a Lu Trentin, disse "Gonçalo, esse jeito de poesia que tu gosta, tens de ir em um slam" — recorda.
O encontro com a turma do slam foi amor à primeira vista.
— Eu não tinha nenhuma ideia do que era um slam. Então, nesse mesmo final de semana tinha uma oficina da Mel Duarte, uma slamer de São Paulo. Fui lá ver. Tive muita satisfação por encontrar esse ambiente, que é um lugar como uma alma gêmea — diz, como quem se refere a um amor de toda a vida.
Além desse encontro arrebatador, Gonçalo volta à casa lisboeta para resgatar um singelo fragmento que compõe esse panorama com ainda mais beleza. Seu pai, seu avô e seu bisavô, e talvez gerações anteriores, escreviam poesia.
— Meu pai publicou dois livros de edição do autor. Mas independentemente de escrever poemas e publicar, era natural lá em casa a leitura de poemas. Eu sempre senti que era uma maneira de comunicar coisas importantes. É até piegas, mas eu lembro de ver alguém se lavar em lágrimas ao ler para a família — recorda.
Depois de uma longa pausa, Gonçalo complementa o pensamento.
— Eu olho para aquele tempo, e não sei que qualidade tinham os textos, mas a qualidade que eu reconheço que ficou para mim foi: há coisas que se faz com palavras que faz a gente se despir das barreiras.
É curioso como Gonçalo foi encontrar na rua o mesmo clima que encontrava em casa:
— O slam tem uma atmosfera de generosidade.
AGENDE-SE
O quê: Lançamento do livro Palavras com som, de Gonçalo Ferraz
Quando: sábado, a partir das 10h
Onde: Do Arco da Velha Livraria & Café (Rua Dr. Montaury, 1.570 - Caxias)
Quanto: o livro custa R$ 28
Leia a seguir, a Rima comigo?, um dos poemas contidos no livro Palavras com som. E ouça aqui, o poeta a entoar seus versos.
Rima comigo
Mas com imperfeição.
Dá-me a tua mão
E vamos juntos à procura
De um solo amigo
Onde as nossas raízes
Sintam
Na umidade do chão
A liberdade
De quem sabe
Que abraçando os seus amores
Sossega as dores
E cultiva uma alegria
Tranquila,
Irreverente
E duradoura.
Rima comigo
E quando chegar a hora,
Saberemos terminar nosso poema
Em paz, sem pena.