Onde está o hip hop, a educação também está. E isso não poderia ser exemplificado de forma mais literal do que nas oficinas do projeto que provocou alunos de sete escolas de Caxias a se expressar por meio das rimas e da batida do rap, ritmo que embala a poesia de um dos movimentos que melhor traduzem a ideologia das periferias. Ao longo de sete semanas, o rapper caxiense Chiquinho Divilas liderou a equipe do Cultura Hip Hop nas Escolas, projeto que surpreendeu pelo engajamento de dezenas crianças e adolescentes das mais diversas realidades, cujo objetivo imediato é a gravação de um CD virtual com músicas escritas e cantadas pelos estudantes. Como objetivo perene, mostra a transformação pelo poder das palavras.
Entre as contempladas pela iniciativa estão instituições que lutam para mudar sua imagem ligada à violência e à evasão, como a Escola Rubem Bento Alves, no Loteamento Vila Ipê, a Escola Paulo Freire, instalada no Centro de Atendimento Socioeducativo de Caxias do Sul (Case), o Instituto Cristóvão de Mendoza, maior escola pública de Caxias, entre outras. A professora de português do Cristóvão, Sandra Regina Ribeiro, que trabalhou a rima com os alunos do turno da noite ao longo de uma semana, destaca que o projeto despertou nos estudantes, inclusive naqueles menos interessados, a vontade de escrever e se expressar:
– O desafio foi para que eles se entregassem à música, se soltassem e soltassem a voz, porque o hip hop é um grito de guerra. Eles venceram a timidez de tal forma que houve até campeonatos entre as turmas disputando qual rimava melhor.
A imersão ocorreu ao longo de uma semana em cada escola, sempre com uma noite de palestra sobre o hip hop; outra de oficina de criação; a terceira de gravação e a última de apresentação para os colegas. Convidados a colocar no papel seus sonhos, anseios e angústias, alunos como César Oliveira, da Escola Dante Marcucci, expressaram aquilo que enxergam como o papel fundamental da educação na construção de uma sociedade justa e com indivíduos conscientes.
– Gosto de escrever sobre como as pessoas devem buscar o melhor caminho para elas. Também sobre o racismo, um pouco sobre política – destaca o menino, que começou a praticar break (dança que dialoga com o rap e é parte da cultura hip hop) aos quatro anos em um projeto do bairro Reolon, e já disputa “batalhas” em diversas cidades do Estado.
Sobre dicas pra transformar seus pensamentos em verso, o jovem é didático:
– A gente começa soltando as palavras no caderno, depois junta elas pra criar os versos, cantando junto pra ver como soam.
Entre os temas que inspiraram as rimas, também despontou a crítica social, que é um dos pilares do movimento hip hop desde o seu surgimento, nos anos 1970. Interessada pela realidade brasileira, a estudante Isabela Dutra, 18 anos, do Cristóvão de Mendoza, abordou o caso da vereadora carioca Mariele Franco, cujo assassinato, em março deste ano, ainda não foi esclarecido.
– Era uma mulher preta, que lutava pelos direitos das minorias, e que teve sua voz silenciada – diz Isabela, que sempre gostou de escrever, mas até participar do projeto mantinha seus textos apenas para si.
Coordenadora pedagógica da Escola Rubem Bento Alves, Joelma Rosa considera que levar o hip hop é uma forma de oferecer às crianças um conteúdo informativo dentro de uma linguagem que faz sentido para eles. Assim fica mais fácil abordar questões importantes, como o respeito às diferenças e a autoestima do jovem da periferia.
– Foi muito proveitoso, principalmente por tratar da importância da expressão oral e corporal junto aos jovens, com muito cuidado para que eles escolhessem as melhores palavras a serem usadas, sabendo que elas ecoam. Coisas como não usar palavrões, como se referir com respeito a uma mulher. Os alunos entenderam que a proposta era falar sobre coisas legais e construtivas – elogia.
“É uma forma de resiliência”
Com a propriedade de quem experimentou na pele uma adolescência desinteressada pelos estudos, que o levou a evadir três vezes da escola, Jankiel Francisco Cláudio, o Chiquinho Divilas, desperta entre os jovens uma empatia compatível com o seu poder de comunicação com esse público. Em cada palestra, inspira pelo menos um novo adolescente desacreditado a buscar a redenção pelo conhecimento e pela cultura, como fez.
Ao elaborar o projeto Cultura Hip Hop nas Escolas, viabilizado pela Lei Municipal de Incentivo a Cultura — com apoio cultural da Marcopolo e realizado em parceria com o Sesc e Festival Brasileiro de Música de Rua —, quis incentivar mais jovens a buscar o protagonismo em suas vidas, especialmente nas áreas mais carentes da cidade.
– O hip hop nos permite transformar em versos e colocar ritmo nos nossos traumas, nas nossas tristezas, naquilo que estamos cansados. É uma forma de resiliência. Estufar o peito e ir em frente, mas sem fazer a coisa errada, porque a gente está toda hora vendo o que aconteceu com quem fez – argumenta o rapper.
Sobre o projeto, Divilas ressalta que é uma forma de contribuir para o empoderamento dos jovens, que por meio da rima e da sua atitude podem passar a reivindicar um futuro melhor.
– O mais emocionante foi ouvir de professores, alunos e alguns pais que a nossa proposta fortaleceu e contribuiu para fomentar saberes e compartilhar vivências. Que tudo isso possa despertar o gosto pela leitura e estudo. Quem ganha é a comunidade – acrescenta Chiquinho.
O CD virtual com as músicas produzidas durante as oficinas será lançado no dia 11 de agosto nas plataformas digitais e no canal Chiquinho Divilas no Youtube. A data é a mesma em que se comemora o nascimento do hip hop (em 1973, no bairro do Bronx, Nova York).
O que eles dizem
Dante querido o rap está contigo
Uma aula desse jeito nunca tinha acontecido
No país do futebol sem justiça social
Estudar é preciso pra você não se dar mal
Hey, hey! Então, não desanima
0 estudo é a cura para sua vida
Hey, hey! Então, não desanima
O estudo é a cura
Para os manos e para as minas
(trecho de Estudar é Preciso,
da Escola Dante Marcucci)
E com tantas dores
Muito sangue derramado jorrou
É de índio, é de pobre
É de preto, é de nobre
E a maioria ninguém sabe quem matou
Expressão e voz ativa só na teoria
Afinal, critica pra tu ver
Se não sai algemado
Eles não querem gritos
Querem todos calados
(trecho de Quem Matou,
do Instituto Cristóvão de Mendoza)